Capítulo 25
Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?p.173-179
2 de setembro de 2020
Fábio de Andrade Machado
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Revisão: Érica Mariosa Moreira Carneiro
Edição: Maurílio Bonora Junior
Arte: Carolina Frandsen P. Costa
Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”.
Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo, se você crê em Deus por fé apenas (sem evidência), você não estaria sendo irracional ou ilógico.
Semana epidemiológica #36
Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto
723 óbitos registrados no dia (115.557 ao todo)
Esse argumento sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos, até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:
Crítico da hidroxicloroquina:
— Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina
Defensor da hidroxicloroquina:
— Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.
O que para mim é curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal, no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento:
(p1) — Se unicórnios existem, deveria existir alguma evidência deles como registro fóssil
(p2) — Não existe evidência de unicórnios no registro fóssil.
Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.
“Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.
Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.
Porém, nem todas as proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:
(p1) — Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
(p2) — A remoção do gene não afeta a cor da pena
Nesse caso, não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.
O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos traz à hidroxicloroquina.
Hidroxicloroquina
Querida entre três de cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento à COVID-19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri [1, 2]).
Nota dos Editores:
Posteriormente, se viu que o tratamento com somente azitromicina ou hidroxicloroquina não resultava em uma melhora do paciente. Além disso, foi visto também que o tratamento combinado com ambas as drogas aumentava o risco de vida (mortalidade) do paciente.
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Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos.
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Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidências problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID-19 [3, 4], políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos.
E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente a argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?
Para entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é ligando-se a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismo, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas proposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
(p1) — Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID-19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas células pulmonares humanas.
(p2) — Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
(p3) — Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.
Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID-19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demonstrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que, em células de rim, a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades.
Ao invés disso, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloroquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavírus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:
(p1) — Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID-19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas células pulmonares humanas.
(p2) — Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
(p3) — Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.
(p4) —
Nota dos Editores:
Volte ao capítulo 21 para rever a localização da TMPRSS2
O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.
Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república [5].
Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós. ■
Nota do Autor:
Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problemáticas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar à conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a única “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).
PARA SABER MAIS
- Wang, Manli, Ruiyuan Cao, Leike Zhang, Xinglou Yang, Jia Liu, Mingyue Xu, Zhengli Shi, Zhihong Hu, Wu Zhong, and Gengfu Xiao. Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro. Cell research 30, no. 3, 269-271, 2020. Disponivel em: https://doi.org/10.1038/s41422-020-0282-0
- Liu, Jia, Ruiyuan Cao, Mingyue Xu, Xi Wang, Huanyu Zhang, Hengrui Hu, Yufeng Li, Zhihong Hu, Wu Zhong, and Manli Wang. Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro. Cell discovery 6, no. 1, 1-4, 2020. Disponivel em: https://doi.org/10.1038/s41421-020-0156-0
- Boulware, David R., Matthew F. Pullen, Ananta S. Bangdiwala, Katelyn A. Pastick, Sarah M. Lofgren, Elizabeth C. Okafor, Caleb P. Skipper et al. A randomized trial of hydroxychloroquine as postexposure prophylaxis for COVID-19. New England Journal of Medicine 383, no. 6, 517-525, 2020. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2016638
- Cavalcanti, Alexandre B., Fernando G. Zampieri, Regis G. Rosa, Luciano CP Azevedo, Viviane C. Veiga, Alvaro Avezum, Lucas P. Damiani et al. Hydroxychloroquine with or without azithromycin in mild-to-moderate COVID-19. New England Journal of Medicine 383, no. 21, 2041-2052, 2020. Disponivel em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2019014
- Preite Sobrinho, Wanderley. Pílula do câncer: o que é e por que o Bolsonaro quer liberar remédio vetado. UOL, 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/01/15/pilula-do-cancer-o-que-e-e-por-que-bolsonaro-quer-liberar-remedio-vetado.htm