Parte 2
José Fornari (Tuti) – 04 de dezembro de 2019
fornari @ unicamp . br
No artigo anterior, eu tratei do que havia definido como sendo as 3 perspectivas da criatividade musical que compõem o “nature” (natureza) da essência que permite com que uma obra musical se torne interessante para os ouvintes. Este fato depende dos processos criativos do ouvinte, do músico intérprete (da performance) e do compositor. Com relação ao “nurture” (nutrir), este é composto pelos elementos externos que influenciam as 3 atuações criativas, seja de modo espontânea (como uma mudança sociocultural que engendra uma mudança estética) ou intencional, como é o caso da “indústria de cultura”, termo cunhado pelo filósofo Theodor Adorno, rapidamente mencionado anteriormente que trata a produção cultural e artística (entre outras, a musical) como mercadoria, cuja produção é voltada a maximizar seu consumo pelos ouvintes (conforme vimos no primeiro artigo desta série, sobre a indústria do K-pop), ou mesmo fomentar ideologias hegemônicas (como é o caso da produção musical que enaltece um padrão comportamental interessante ao mercado).
A criatividade é aqui definida sob uma perspectiva evolutiva de produção mental de novos e válidos conceitos. A meu ver, esta é composta de dois processos independentes porém cooperativos, que chamo aqui de reprodução e seleção de conceitos originais e úteis (ou seja, criativos). A reprodução cria novos conceitos baseados em outros dois subprocessos, aqui chamdos de combinação e variação. A combinação, como o nome sugere, combina elementos de outros conceitos anteriores, já conhecidos e estabelecidos, criando assim um novo conceito que pode ser visto como um tipo de “colagem” de conceitos anteriores. A variação insere pequenos ajustes e elementos novos nesse conceito recém criado, tornando-o único; diferente de todos os conceitos anteriores. A ação constante do processo de reprodução gera assim um conjunto crescente de conceitos novos; possíveis candidatos para serem utilizados em um dado objetivo (por exemplo, uma frase melódica ou poética para uma canção, uma possível solução para um problema não determinístico, etc.). Já o processo de seleção trata de eliminar os conceitos que não se adequam ao propósito da ação criativa daquele instante.
A lógica define 2 tipos de raciocínio: a dedução e a indução. A dedução utiliza conceitos estabelecidos para gerar conclusões (ex: sabendo-se que 1+1=2, então, com certeza 2+1=(1+1)+1=3). A indução testa novos conceitos (ex: se xˆ2=4, então x pode ser 2, mas também pode ser -2). A dedução parte de uma teoria (algo que já se sabe, que acredita ser verdadeiro) e daí segue para gerar hipóteses, observações e conclusões. A indução parte de algo que se supõe (um conceito que se quer averiguar como verdadeiro ou falso), normalmente através de observações, de onde segue para uma possível constatação de repetições, ou seja: padrões, de onde se constrói uma hipótese e, se esta for verificada, torna-se então uma teoria. A meu ver, o processo dedutivo é dogmático enquanto que o processo indutivo é especulativo, ou seja, científico, mas ambos são utilizados tanto nas ciências (por exemplo, a dedução para aplicar um teorema) quanto nas crenças (por exemplo, a indução para ratificar um dogma) e nas artes (na criação e utilização de uma teoria estética). Porém, ambos juntos não explicam o processo criativo. Em outras palavras, se a dedução usa o conceito verificado e a indução verifica um conceito, como os conceitos são gerados? A resposta está numa terceira forma de raciocínio que a mente humana possui e realiza constantemente, porém, ao contrário da dedução e da indução, a meu ver, este processo é realizado de modo subconsciente. Este é chamado de abdução. A abdução gera novos conceitos, os quais são posteriormente testados pelo raciocínio indutivo e utilizados pelo raciocínio dedutivo. O processo de geração de conceitos originais e úteis da abdução, a meu ver, ocorre de modo subconsciente e se vale de processos mentais que podem ser explicados pelo modelo evolutivo de teoria da criatividade acima mencionado, envolvendo os processos de reprodução e seleção. A meu ver, a misteriosa e insondável abdução é de fato a essência da criativa humana.
Estes 3 modelos que representam os modos mentais de inferência nos permitem aprender e utilizar um conhecimento adquirido para entender e interagir com a complexidade, tanto externa e objetiva (o universo que nos cerca) quanto interna e subjetiva (o nosso universo interno, de nossas memórias, pensamentos e emoções). Sua função é mais teleológica do que ontológica; ou seja, não nos interessa tanto entender a essência do complexo, tanto quanto nos interessa saber como interagir com a complexidade, e assim usa-la a nosso favor. Uma vez aptos a navegar numa determinada complexidade, estabelecem-se bases epistemológicas para compreende-la através de modelos filosóficos ou da lógica matemática, até que este deixe de ser complexo. Assim a ciência avança e subimos mais um degrau na escada do conhecimento humano, onde podemos passar a interagir com novas e anteriormente insondáveis complexidades. Para mim, a fronteira entre ciência e arte ocorre neste horizonte de complexidade; onde a arte intuitivamente interage com esta e a ciência tenta compreende-la.
A estética é o ramo da filosofia que lida com a definição e o entendimento do belo. Tem-se nesta uma natureza funcional (ou teleológica) direta, do que instiga nossas predileções (como as belas cores de uma fruta madura, pronta para servir de alimento) bem como uma natureza indireta (como uma flor, que nos é bela apesar de não representar alimento ou a saciação de qualquer outra necessidade fisiológica, mas que pode representar a promessa da futura ocorrência de frutos e caça). O filósofo Daniel Dennett tem uma famosa palestra do TED, intitulada “Cute, Sexy, Sweet and Funny” (meigo, atraente, doce e engraçado), que fala sobre a natureza evolutiva daquilo que nos atrai, seja pela ternura, sensualidade, sabor ou comédia; cada qual cumprindo uma função evolutiva específica, importante para a sobrevivência e a manutenção da nossa espécie.
Referências:
Abduction Stanford Encyclopedia of Philosophy https://plato.stanford.edu/entries/abduction/
Novelty, complexity. and hedonic value https://link.springer.com/content/pdf/10.3758/BF03212593.pdf
Aesthetic Preference: Anomalous Findings for Berlyne’s Psychobiological Theory https://www.jstor.org/stable/1423259?seq=1
Matthew M. Hurley, Daniel C. Dennett and Reginald B. Adams, Jr. “Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind”. An evolutionary and cognitive account of the addictive mind candy that is humor. MIT press. 2011.https://mitpress.mit.edu/books/inside-jokes
Como citar este artigo:
José Fornari. “Complicação, complexidade e criatividade musical – parte 2”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 04 de dezembro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/12/04/38/