Da griffe ao fast fashion: uma análise das estratégias de produção de coleções colaborativas, por Bárbara Venturini Ábile
Uma vez clara a noção de que as coleções colaborativas são vendidas como um encontro improvável, investigamos os aspectos que poderiam justificar a existência de uma imagem de diferença e superioridade de marcas de luxo em relação às fast fashions – mesmo que estejamos falando de duas marcas de roupas. Percebemos que as marcas de luxo foram historicamente construídas como isoladas e diferentes das outras formas da produção de roupa, processo que tem origem na fundação da alta costura. No entanto, esse mesmo processo de isolamento também nos permitiu comprovar nossa hipótese: a de que o encontro entre marcas de luxo e fast fashion, na verdade, nada tem de inusitado.
Isso porque o espaço de produção da alta costura (apesar de reproduzir seu isolamento) sofre, desde sua criação, um contínuo movimento de expansão, no qual a griffe – assinatura do costureiro, que através da transubstanciação simbólica transformava economicamente e simbolicamente uma peça de roupa – passa a ser explorada comercialmente. Tal exploração adquire novas proporções no cenário de globalização, a ponto de ocorrer uma mudança que consideramos ser a condição para a existência das coleções colaborativas: a transformação da griffe em um nome que passa a qualificar produtos, que é protegido por lei e regido por regras do mercado, ou seja, em uma marca.
Uma vez que as griffes tornam-se marcas, elas adquirem uma característica ambivalente que permite sua atuação na esfera simbólica (em referência à sua griffe) e na esfera comercial e racionalizada (através da sua marca). Ou, para utilizarmos termos do vídeo publicitário mencionado no primeiro texto, as marcas de luxo possuem uma atuação voltada para seus produtos de “jardim” e para seus produtos de “floresta”. É por isso que afirmamos que hoje essas marcas vivem na tensão entre a reprodução de sua imagem de restrição e sua prática de difusão de seus produtos. Esse movimento das marcas explica porque essas coleções colaborativas conseguem ser vendidas enquanto algo improvável.
Processos teórico-metodológicos
Para desenvolver a pesquisa, nos aprofundamos primeiramente no objeto que escolhemos a partir dos relatórios anuais de cada fast fashion, comparando essas informações com aquelas que víamos divulgadas na mídia especializada de moda, nacional e internacional. Também participamos de eventos sobre o tema, principalmente naqueles com participação de representantes da Riachuelo. Isso, somado com minha experiência anterior enquanto funcionária da marca (que foram uma espécie de “pré-campo”), permitiu com que eu conseguisse uma entrevista com a diretora de marketing da empresa.
Também buscamos compreender o funcionamento do mercado de luxo, investigação realizada ao longo do intercâmbio de pesquisa no departamento de Antropologia Global do Luxo do Collège d’Études Mondiales. Foram de grande contribuição as jornadas de estudos e seminários, o contato com arquivos, as visitas a museus de moda, além da pesquisa e análise bibliográfica de autores como Didier Grumbach, Jean Castarède, Jean-Noël Kapferer, Marc Abélès, Marie-Claude Sicard, Miqueli Michetti, Philippe Perrot e Valerie Steele. Concomitantemente, fazendo um movimento de deixar o objeto indicar o caminho que a análise deveria seguir, construímos as ideias do texto a partir de autores como Marcel Mauss, Max Weber, Pierre Bourdieu, Renato Ortiz e Walter Benjamin.
Contexto histórico
O cenário do encontro entre marcas de luxo e marcas fast fashions é composto por um espaço de produção de roupas financeirizado e globalizado. Nele, encontramos várias formas de produção de roupas atuando sob regras próprias e organizadas em seus espaços específicos. Dentre elas, há o universo onde habita as fast fashions e um outro universo onde habita as marcas de luxo. Contudo, o isolamento do universo das marcas de luxo não impede que seus componentes se encontrem com os componentes outros universos em algum momento.
O encontro entre esses dois universos incompatíveis resulta em um compartilhamento de espaço. Nessa zona comum, os poderes específicos produzidos nos universos separados passam a ser mobilizados em um mesmo espaço. Enxerga-se então a coexistência dos poderes específicos de cada universo, desiguais entre si, e que quando se juntam, produzem um poder particular. Este, por sua vez, pode ser descrito como a somatória da força simbólica e econômica das marcas de luxo com a força econômica das fast fashions.
Tomando essas considerações como premissa, finalizamos a pesquisa demonstrando as vantagens das coleções colaborativas para cada uma das marcas envolvidas. Também refletimos sobre a posição desse tipo de co-branding que, apesar de se vincular a um discurso de “democratização na moda”, não passa de um “esnobismo no antiesnobismo”, segundo a definição do próprio Lagerfeld.
Esta pesquisa foi possível graças ao apoio financeiro da Capes e da FAPESP. E também contou com o auxílio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, principalmente do Departamento de Sociologia. Da mesma forma, sem o acompanhamento dos colegas do Grupo de Estudos em Bourdieu (GEBU) e do Collège d’études mondiales da Fondation Maison Sciences de l’Homme, essas reflexões não teriam sido tão produtivas.
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