Na última postagem deste blog, escrevi brevemente sobre a minha relação com a Biblioteca Estadual Celso Kelly. À medida que eu descobria novas informações sobre aquele prédio, aumentava a minha pretensão de relatar as consequências do incêndio ocorrido em 1984. A geração nascida no início da década de 1990 testemunhou alguns desastres nos edifícios públicos do Rio de Janeiro. Houve o alagamento da Biblioteca Nacional (2012/2016), o incêndio do Museu Nacional (2018), o abandono das obras do Museu da Imagem e do Som, obra cuja pedra fundamental foi lançada em janeiro de 2010 e hoje sobraram apenas escombros em Copacabana. Em São Paulo, um laboratório do Butantan foi atingido por um incêndio (2010), outras chamas destruíram um auditório no Memorial da América Latina (2013) e o Museu da Língua Portuguesa (2015).
Restringi a lista a alguns incidentes nas duas maiores cidades do país. Antes de todos esses acontecimentos trágicos, a biblioteca estadual, situada na Avenida Presidente Vargas, sofreu um incêndio em janeiro de 1984. A partir desse verão, o acervo da biblioteca passou por inúmeras intempéries. O fogo consumiu parte do acervo e o que foi preservado foi transferido para um prédio da UERJ. A obra de reinauguração distanciou o público da biblioteca por três anos (janeiro de 1984 a março de 1987).
Heloisa Tolipan publicou, no Jornal do Brasil, a reportagem “Biblioteca Nacional sofre com consultas fora do seu objetivo” no dia 2 de março de 1986. Segundo a diretora Maria Alice Barroso, houve aumento da demanda dos usuários por causa do encerramento das atividades de duas bibliotecas: a Demonstrativa Castro Alves e a Estadual Celso Kelly, ambas situadas na região central da capital fluminense.
A Biblioteca Demonstrativa fechou as portas para o público quando a Associação dos Servidores Civis do Brasil (ASCB) pediu o espaço que havia cedido. O texto da reportagem explicava que o município do Rio ainda mantinha 20 bibliotecas regionais e duas volantes, com acervo circulando dentro de ônibus, além das bibliotecas escolares e municipais. A única biblioteca pública estadual na cidade do Rio era a Celso Kelly.
Ao estudar a história das organizações das bibliotecas, especialmente o financiamento e as classificações técnicas, revela-se pelas frestas a relação entre conhecimento e poder. Fruto de convênio entre a ASCB e o Instituto Nacional do Livro, a biblioteca foi inaugurada no prédio do IPASE, situado a poucos metros da Biblioteca Nacional. A instituição foi inaugurada no âmbito das comemorações pelo nascimento do poeta Castro Alves (1847-1947). Em contraste com sua vizinha mais famosa, a Biblioteca Demonstrativa permitia o livre acesso dos usuários às estantes. Também havia permissão para o leitor levar o livro para casa, no regime do empréstimo temporário. Em 1948, a seção de adultos registrou 21.737 leitores.
O cineasta Humberto Mauro, em 1956, dirigiu o curta-metragem institucional “Biblioteca Demonstrativa Castro Alves: uma biblioteca modelo”, financiado pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo e pelo Instituto Nacional do Livro. Este filme, P&B e com duração de 10 minutos e 30 segundos, foi disponibilizado no Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca Brasileira. O discurso do prof. Hélio Gomes Machado, diretor da seção de Bibliotecas do INL, sumariza alguns pontos que destacarei a seguir:
– esse tipo de instituição era parte do movimento de criação de novas bibliotecas,
– o objetivo era disseminação do livro entre as camadas mais pobres da população brasileira;
– a biblioteca modela deveria ser sempre situada em região central das cidades, com mobiliário funcional e ambiente confortável;
– heterogeneidade do acervo permitiria atingir diferentes tipos de público;
– a criação de seções infantis e juvenis dentro da biblioteca ampliaria a circulação de livros e de leitores;
– a existência de um auditório facilitaria a organização de programação cultural;
– devido ao manuseio dos volumes, era imprescindível a encadernação para qualquer livro brochura;
– por fim, a organização das fichas catalográficas facilitaria a consulta no armário do fichário catalográfico.
A poucos metros da Avenida Rio Branco, a Biblioteca Castro Alves era um ponto de referência para o público interessado em bibliotecas, especialmente os passantes da Cinelândia e do Castelo. Situada ao lado do Campo de Santana e da zona comercial conhecida como SAARA, também Biblioteca Estadual sobreviveu aos desafios de manutenção de um espaço público para leitura. Em área próxima à estação ferroviária Central do Brasil, ao Comando Militar do Leste e ao Palácio Itamaraty, o fluxo de pessoas nas cercanias do prédio sempre foi intenso.
Em 12 de março de 1987, o Caderno B do Jornal do Brasil noticiou a inauguração da nova sede da Biblioteca Estadual Celso Kelly, usando um título bastante adequado: “Biblioteca Pública pronta a toque de caixa”. O texto assim descrevia o projeto assinado pelo arquiteto Glauco Campello: “inspirada nas concepções mais modernas de bibliotecas, como o célebre Beaubourg parisiense, a Biblioteca Estadual contará com um amplo sistema de computação”, um espaço com “linhas modernas” e “farta luz natural invadindo os amplos salões“.
No suplemento dominical, em 14 de junho de 1987, o mesmo Jornal do Brasil repercutiu a presença do público na sede da biblioteca situada na Avenida Presidente Vargas. A capa, com espaço dedicado principalmente à confusa conjuntura da redemocratização, destacava as incertezas da tabela de preços congelados pela Superintendência Nacional do Abastecimento (Sunab) e as tensões nas comissões da Constituinte, sobretudo os dilemas relacionados à reforma agrária. O texto de Cláudio Figueiredo, com fotos de Vantoen Jr., foi escrito a partir da premissa que aquele era um “ambiente democrática de cultura”. Como informava ao público: “o Rio já tem sua biblioteca moderna inspirada no Centro Georges Pompidou”. Nas palavras da então diretora, Ana Ligia Medeiros, o objetivo era a “dessacralização do livro”, contraponto nítido ao modelo de consulta da Biblioteca Nacional.
Inaugurado no final do primeiro governo Brizola (1983-1987), o prédio foi aberto ao público com obras inacabadas, nem todo o acervo de 100 mil obras havia sido transferido a tempo. O sucessor no cargo de governador, Moreira Franco, assumiu em março de 1987. Nos primeiros meses de funcionamento, a nova biblioteca recebia cerca de 1500 visitantes por dia, chamando atenção, além do acervo de impressos, o setor dedicado ao audiovisual.
De acordo com o renomado antropólogo Darcy Ribeiro, vice-governador e Secretário de Ciência e Educação do mandato do governador Brizola, o projeto abrangeria a coordenação de todas as bibliotecas situadas nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs). Para o idealizador, a nova biblioteca seria “o maior salão de leituras do mundo”.
O incêndio ocorreu há 40 anos, mas os dilemas das bibliotecas públicas permanecem na formação do público leitor do Brasil. De outubro de 2008 a março de 2014, em nova fase de obras, a biblioteca fechou para uma reformulação da sua concepção. Reaberta poucos meses antes da Copa do Mundo, a instituição passou a ser denominada Biblioteca Parque do Rio de Janeiro, atualmente sob administração da organização privada Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG). Não lembro quando ocorreu minha última visita, embora tenha passado várias vezes em frente à biblioteca desde a reinauguração.
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