Buscando a bússola

"UF CSE Classroom Blackboard Desks Red Seats Brick Walls Overhead Projector", imagem do usuário cdsessums e licenciada no modelo CC BY 2.0.

Ao revirar o baú dos textos escritos durante o doutorado, encontrei esta postagem, publicada no blog “A vida pública da Sociologia”. Esse espaço virtual, criado pelo professor João Marcelo Maia (CPDOC/FGV), permaneceu ativo de fevereiro de 2015 a agosto de 2017.
Quando escrevi esses comentários, em 2016, minha percepção sobre o ensino de sociologia estava exclusivamente enviesado pela formação que tive no CPDOC, durante a graduação, e na Unicamp, durante a pós-graduação. Ocorreram, desde então, tantas transformações políticas e sociais no Brasil que senti a necessidade de reler as sugestões. Consigo brevemente listar alguns fatores que alteraram a organização do fazer científico: a redefinição das políticas de financiamento do ensino e da área de CT&I, a crescente demanda por investimento em divulgação científica, a força política do discurso da “Sociologia Pública”, o recrudescimento da crise da mídia impressa (afetando a divulgação científica), entre outros processos coetâneos.
Em 2017, atuei por um semestre na função de estagiário auxiliar do docente de “Pensamento Social do Brasil”, disciplina obrigatória para estudantes de Ciências Sociais da Unicamp. Dois anos depois, ingressei na licenciatura, então tive a oportunidade de cursar o estágio curricular obrigatório e supervisionado. Essas experiências afetaram o meu modo de analisar a docência, especialmente na observação direta das relações interpessoais dentro da sala de aula e nos corredores das instituições de ensino.
É inegável que a blogosfera também sofreu alterações nos últimos anos, assim como as redes sociais digitais mais populares do Brasil (como Instagram, Twitter e Pinterest). Além disso, a crise sanitária do COVID-19 gerou inúmeras consequências na comunicação e nos sistemas educacionais. Então, chegou a hora de revisitar minhas oito sugestões e talvez reformulá-las:

1. a pandemia intensificou a realização de eventos virtuais, provocando uma expansão da divulgação científica de várias áreas, inclusive nas Humanidades;
2. o tema da Sociologia no Ensino Médio foi inserida na agenda de docentes universitários das Ciências Sociais por causa das alterações institucionais provocadas pela Reforma do Ensino Médio (instituída por lei federal em 2017), então nos espaços mais legítimos da produção acadêmica o assunto foi debatido;
3. ainda há poucos estímulos para produções coletivas e para estimular a criatividade docente, como as iniciativas de compartilhamento de experiências em relatórios publicados em espaços de fácil acesso;
4. com a emergência do debate sobre gestão de dados na produção científica – seguindo os princípios FAIR (Findable/Localizável, Accessible/Acessível, Interoperable/Interoperável e Reusability/Reutilizável) para tratamento de dados –, bancos de dados compartilháveis estimulariam cientistas sociais a pesquisar bibliografias, ementas e até recursos didáticos nas diferentes instituições de ensino;
5. o Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio) foi criado em 2018, ou seja, o desafio de analisar e teorizar o ensino de sociologia não se restringe apenas às aulas das licenciaturas, avançando para a pós-graduação de forma institucionalizada;
6. durante o estágio supervisionado, testemunhei o uso bem-sucedido de novas tecnologias e entendi que a capacidade de adotar qualquer ferramenta de ensino depende do tirocínio de quem leciona;
7. cada vez mais se fala de ciência aberta, sociologia pública, descentramento da teoria, teoria pós-colonial, porém poucos esforços foram feitos para publicizar relatórios ou quaisquer textos sobre as experiências de estágio docente de pós-graduandos (atuando como monitores nas disciplinas da graduação), de discentes da licenciatura ou de docentes recém-contratados nas Instituições de Ensino Superior (IES);
8. ao me deslocar do Rio de Janeiro para São Paulo, quando fui cursar a pós-graduação, fiquei surpreso aos perceber a ineficiência das IES na construção de roteiros para apresentar a sua estrutura administrativa e seu organograma a quem está chegando ao campus. Não seria necessário um passeio institucional, apenas explicar as áreas de ensino, pesquisa e extensão da universidade para ingressantes em um curso de mestrado ou de doutorado.

Desde 2016, considero que ocorreram avanços nos itens 1, 2, 5 e 6. Contudo, analisando os itens 3, 4, 7 e 8, vários problemas continuam afligindo a formação de docentes que se preparam para lecionar no ensino básico, nas escolas técnicas ou nas carreiras universitárias.
Realizado desde 2009, o Encontro Nacional para o Ensino da Sociologia na Educação Básica (ENESEB) é promovido com apoio da Sociedade Brasileira de Sociologia. Nesta postagem no blog da Sociedade Brasileira de Sociologia, as professoras Simone Meucci (UFPR)  e Sueli Guadelupe de Lima Mendonça (UNESP/Marília) explicam a intrínseca relação entre a organização desse tipo de evento e a institucionalização da Sociologia Escolar no Brasil. A Lei Nº 10.639, de 2003, e a Lei Nº 11.684, de 2008, alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional, pois, respectivamente, tornaram obrigatórios o “ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” nos anos iniciais do Ensino Médio e o ensino de Filosofia e de Sociologia “em todas as séries do Ensino Médio”.

O blog “Café com Sociologia” foi criado em 2009 e, aos poucos, tornou-se um hub de informações sobre a área de ensino de sociologia, abrangendo revista, podcast e redes sociais. O volume 1 da “Revista Café com Sociologia” foi publicado em 2012, periódico vinculado à Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS) desde 2017.
Essa entidade, criada em 2012, também publica os anais dos congressos nacionais, o Observatório Nacional de ensino de Ciências Sociais e o periódico Cadernos da ABECS. Aqui é possível ler a ata da fundação da ABECS, entidade sediada na unidade de São Cristóvão do Colégio Pedro II.

Durante o processo de escrita dos meus relatórios, obrigatórios nos estágios supervisionados da licenciatura, inúmeras vezes pensei em explicar o funcionamento da escola, descrever o espaço e avaliar a sua organização burocrática. Com o meu treinamento de cientista social, jamais abandonaria a análise da cultura organizacional e das crenças que regulam os comportamentos em um ambiente restrito e controlado por hierarquias como as escolas.
Ainda é mais fácil encontrar o debate sobre a Sociologia como matéria escolar do que a reflexão a respeito do preparo de novos docentes nas instituições de ensino superior. Sem um engate entre gerações, torna-se uma tarefa hercúlea propor disciplinas sem orientação básica de qual caminho seguir. Qual a bibliografia básica de um curso de pensamento social? Quais autores são indispensáveis? E como essa seleção dos clássicos pode ser criticada e reformulada pelas gerações vindouras? Tais questões seriam parcialmente respondidas se houvesse um esforço coletivo de armazenar e sistematizar práticas exitosas de ensino e de difusão científica nas Ciências Sociais. Assim, neófitos teriam alguma bússola para buscar atalhos na proposição de cursos e de atividades didáticas em quaisquer níveis de ensino.

Aqui e ali o blog “A vida pública da sociologia”, em 2015, serviu como espaço para o professor João Marcelo divulgar suas ideias a respeito do currículo da sociologia e da história da disciplina. Nos pontos a seguir, sumarizei aqueles trechos que considerei atinentes às sugestões:

  • a diversificação das eletivas ofertadas têm direta relação com a composição do corpo docente e seus interesses mais recentes;
  • algumas disciplinas apenas sobrevivem como “cavalos de batalha”, espelhando as disputas internas em qualquer departamento;
  • devido à dificuldade de mudar a grade por causa dos limites burocráticos, alguns temas e algumas ementas permanecem mas sofrem alterações na prática docente para poupar o trabalho de formalizar a mudança da disciplina;
  • apesar dos avanços dos debates pós-coloniais, resiste a naturalização do trio “fundador” (Marx, Weber e Durkheim) e do seu processo de canonização;
  • esse modo de contar a história da disciplina é excessivamente europeu, como a se a formação da sociologia fosse exclusivamente ocidental;
  • os manuais sintéticos ganharam espaço devido à necessidade de contar de forma resumida mais de 200 anos da história disciplinar para públicos que não pretendem se especializar no universo da sociologia profissional (nas escolas e nas universidades);
  • por fim, as obras dos autores canônicos sempre são apresentadas como um “todo coerente”, sem explicar “as contradições inerentes à qualquer trajetória intelectual”, os anacronismos, as mudanças conceituais, os diálogos com outros intelectuais, etc.

Acredito que teríamos uma bússola se houvesse investimento na construção de uma plataforma colaborativa que disponibilizasse, de forma resumida, programas de curso, ementas e outras produções docentes vinculadas às Ciências Sociais em cada IES do país.

Sobre Luã Leal 34 Artigos
Luã Leal é o responsável pelo blog Vértice Sociológico. Mestre e doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Ciências Sociais/CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV). Meus interesses de pesquisa estão relacionados à sociologia da cultura e ao pensamento social.

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