Entre a infância e a adolescência, passei boa parte do meu tempo transitando da escola para uma biblioteca. Durante muitos anos, eu ia estudar na Biblioteca Estadual Celso Kelly, atualmente denominada Biblioteca Parque. Na fase de escolha para o vestibular, tornou-se uma opção bastante plausível ingressar em algum curso das Humanidades. Esse processo de formação, de alguma forma, condicionou minha forma de interpretar as Ciências Sociais.
Quando eu era um pré-adolescente na Biblioteca Celso Kelly, no silêncio de um espaço que ainda contrasta com o caos da Avenida Presidente Vargas, ficava impressionado com a organização das estantes. E, no fluxo de visitantes, havia gente que ia estudar, devolver livros, dormir, entre outros usos possíveis da biblioteca situada na região central da capital fluminense.
Em janeiro de 1984, um incêndio destruiu parte do acervo e interditou por alguns anos o acesso do público ao prédio. O governo estadual fluminense anunciou em agosto do mesmo ano a parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) para o concurso do projeto da nova sede da biblioteca. Enquanto as consultas estavam suspensas, o acervo foi transferido para o antigo prédio da UERJ, situado na Rua Fonseca Teles, São Cristóvão. Essa história contarei em outra postagem, pois quando conheci a biblioteca estadual, no início dos anos 2000, já havia sido construída a nova sede.
Essa introdução serve apenas para explicar minha permanente curiosidade com o silêncio dos corredores das bibliotecas. Durante o período de pesquisa na pós-graduação, as estantes com livros registrados com o código de assunto 390 foram as mais consultadas por mim. A disposição dos livros no espaço de consulta revela implicitamente o prestígio das áreas. Os corredores silenciosos das bibliotecas se transformam quando florescem controvérsias nas Ciências Humanas. Estudantes, então, se apressam para consultar as novas tendências, encontrando os livros esquecidos que podem novamente despertar interesse. Em diferentes ocasiões, tentei organizar essa ideia, sintetizada em duas metáforas: “estantes silenciosas” e “corredores vazios”.
Durante as minhas visitas à biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sempre ficava surpreso quando via alguém perto dos livros catalogados com o código 390 da Classificação Decimal de Dewey (CDD). Entre 2018 e 2019, consultei frequentemente a estante da classificação 398, para livros sobre folclores, costumes e lendas, e ao me deparar com outro consulente sempre aumentava a minha curiosidade. Quais as outras pessoas interessadas nos estudos de folclore? Quais livros procuravam na biblioteca?
Por causa da escrita da tese, precisei passar um bom tempo na Biblioteca Mercedes Reis Pequeno, situada na sede da Academia Brasileira de Música. Em quase todas as minhas visitas, eu era o único consulente, passava todo o tempo da consulta perto da bibliotecária, sempre pedindo orientações sobre o acervo. Esses relatos, embora fragmentados, justificam o meu fascínio pelos livros pouco consultados.
Na condição de usuário de bibliotecas, sempre me interessou analisar as políticas que organizam esse serviço. Em 1992, o Decreto Presidencial Nº 520 instituiu o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas. Entre os objetivos para a implementação do SNBP figuram o incentivo aos serviços bibliotecários em todo o país e a melhoria do funcionamento da rede de bibliotecas, que deveriam atuar como centros de ação cultural e educacional.
O Jornal da USP publicou em 2022, 30 anos após a assinatura do Decreto Presidencial Nº 520, um texto sobre o desinvestimento nas bibliotecas públicas, com entrevistas gravadas pela Rádio USP. De acordo com o levantamento do SNBP, concluído em 2021, existiam 5293 bibliotecas públicas, além das escolares, das universitárias, das especializadas e das comunitárias. A biblioteca pública, por definição, é um equipamento cultural mantido por um dos três níveis de administração pública (municípios, estados ou governo federal), seu acervo é heterogêneo para atender diferentes tipos de leitura e de usuários. Com os dados do IBGE, extraídos da Pesquisa de Informações Básicas Municipais, preparei um quadro para comparar o percentual de municípios com três tipos de equipamentos culturais entre 1999 e 2021.
Quadro: percentual de municípios brasileiros com os equipamentos culturais entre 1999 e 2021
1999 |
2009 |
2021 |
|
Museus |
15,5% | 23,3% | 29,6% |
Bibliotecas Públicas |
76,3% | 93,2% | 88,3% |
Livrarias |
35,5% | 28% | 15% |
É inegável a crise do impresso que afetou o mercado livreiro. Ademais, os burburinhos das controvérsias nas Humanidades também foram digitalizados. Em uma livraria, o best seller sempre ocupa lugar de destaque, mas as prateleiras estão repletas de outras opções para os clientes. Qualquer pesquisador da área de Humanidade vive cercado de livros, porém raramente somos estimulados a pensar em questões como a construção material do artefato (escolhas tipográficas, por exemplo) ou como as categorias classificatórias (formuladas de acordo com o CDD) influenciam a nossa seleção ao caminhar pelos corredores das bibliotecas.
Desde a minha entrada na graduação, vi algumas tendências que mobilizaram cientistas sociais no mercado das ideias, mesmo que tardiamente as questões tenham aparecido nos circuitos intelectuais do Brasil: debates pós-coloniais, judiciarização da política, politização do judiciário, crise da democracia, mudanças climáticas, trabalho plataformizado, a matéria escolar Sociologia no ensino médio, etc. Todos esses temas correspondem a problemas sociais, políticos e econômicos que interessam a quem olha as mudanças sociais com uma lupa. Como consequência, nas estantes com livros impressos e nas bibliotecas digitais reverberam mais frequentemente os assuntos do momento. Até a moda passar. Mesmo nos seus corredores vazios, as bibliotecas públicas, assim como as universitárias, registram as tendências de uma época, os livros que foram obrigatórios ou clássicos para um determinado público mas que perderam o seu prestígio.
Faça um comentário