Wakanda: paraíso tecnológico e terra da representatividade (vol.9, n.1, 2018)

Localizado na África Oriental, Wakanda é o país fictício mais tecnológico do mundo e detentor do metal fictício mais precioso dos quadrinhos, o vibranium. O novo filme da Marvel Comics acompanha a história do Pantera Negra, T’Challa, recém coroado como rei de Wakanda. No seu ritual de coroação, T’Challa toma um chá produzido com a erva coração, uma planta encontrada somente naquelas terras, e isso lhe confere habilidades especiais, como maior força e velocidade, fator de cura mais acelerado, sentidos mais aguçados, entre outras.

O novo rei wakandano, assim que assume o posto de seu pai, parte para uma missão de resgatar uma quantidade de vibranium roubada pelo cientista Ulysses Klaw e, para tanto, recebe o apoio de sua irmã, Shuri, a responsável pela área tecnológica do país, e das guerreiras Okoye, chefe da guarda de Wakanda, e Nakia, espiã e uma grande humanista.

Como o vibranium é extremamente valioso e poderoso, devido às suas propriedades, e como este metal só existe em Wakanda (e existe em altíssima quantidade), os wakandanos possuem uma enorme preocupação em manter o país escondido do resto do mundo. Para proteger seu povo e evitar que outros países invadam suas terras para explorá-las, os cientistas de Wakanda desenvolveram uma cobertura holográfica em suas fronteiras.

 

A Tecnologia de Wakanda

São muitas as tecnologias incríveis que o país possui, como carros voadores, trens de levitação magnética, displays holográficos, aeronaves por controle remoto, botas que não emitem barulho, traje retrátil, etc. Mas, para esse texto, vamos focar em uma tecnologia em particular:

O uniforme do Pantera Negra.

Shuri apresentando o uniforme do Pantera ao T'Challa (cena do filme da Marvel Comics)
Shuri apresentando o uniforme do Pantera ao seu irmão, o rei T’Challa (cena do filme da Marvel Comics)

Desenvolvido pela tecnologista Shuri, este uniforme é algo que a nossa ciência ainda não consegue reproduzir. No entanto, podemos tentar explicá-la através de leis naturais há muito conhecidas por nossos cientistas. Ela se baseia fundamentalmente no princípio da conservação da energia, que garante que a energia não pode ser criada nem destruída, apenas transformada.

Quando uma bala é disparada por um vilão e está se movimentando em direção ao Pantera Negra, ela possui uma altíssima energia cinética, devido à sua alta velocidade. Quanto mais energia a arma fornecer para a bala, mais energia cinética ela terá (ou seja, mais rápida ela estará). Quando a bala atinge o uniforme do rei wakandano, essa energia cinética associada ao movimento da bala é absorvida pelo seu uniforme e, de alguma forma, armazenada. O mecanismo por meio do qual essa energia é armazenada é desconhecido, mas há algumas teorias para isso.

Representação de uma bola se movimentando contra uma mola, comprimindo-a, e depois sendo empurrada de volta. Gif retirado do wiki do Departamento de Física Aplicada III, da Universidade de Sevilla.

Se você chutar uma bola de futebol na direção de uma mola, presa a uma parede, a bola vai empurrá-la até que ela fique bem comprimida. Na medida em que a mola vai sendo comprimida ela vai ganhando uma energia que chamamos de potencial elástica, enquanto a bola vai perdendo energia cinética (ou seja, perdendo velocidade). Quando a bola para por completo, significa que ela transferiu toda a sua energia cinética para a mola. Esta, que agora está completamente comprimida, buscará o seu estado natural (nem comprimida nem esticada) e, assim, irá empurrar a bola para o lado oposto. Com isso, a energia potencial então armazenada na mola será convertida novamente em energia cinética da bola e ela será arremessada de volta.

Algumas pessoas teorizam a possibilidade do vibranium, metal do qual é feito o uniforme wakandano, possuir uma estrutura atômica similar a várias molas infinitamente pequenas, que ao receberem qualquer impacto físico, adquirem uma energia potencial elástica, como se essas micro molas ficassem comprimidas. O grande trunfo do seu uniforma é a capacidade de armazenar essa energia potencial, distribuí-la ao longo do traje e emiti-la de volta, sob o comando mental de T’Challa. Isso já é um mistério que apenas a ciência wakandana sabe a resposta. Mas quem sabe um dia chegamos lá!

Representação do Diameno sendo atingido por uma bala e tornando-se mais rígido que um diamante. Imagem retirada do site IFLScience.

Outra propriedade do seu uniforme é a sua enorme leveza e flexibilidade associada a uma extrema dureza quando atingida por algum impacto, o que garante a proteção do Pantera, mas sem comprometer sua agilidade na batalha. Essa propriedade não é algo tão distante do mundo real. Em 2017, foi publicado um artigo na revista científica “Nature Nanotechnology”, no qual os cientistas descrevem o desenvolvimento do Diameno, um material composto por duas camadas Grafeno, possuindo assim uma espessura igual à de dois átomos. Dobrável como uma folha de alumínio, o Diameno enrijece imediatamente diante de qualquer impacto, sendo uma ótima alternativa para coletes à prova de balas. A tecnologia é muito recente, e cara de ser desenvolvida, mas é questão de tempo até que se torne comercial.

 

Ciência é coisa de mulher negra?

Mulheres negras de Wakanda: (da esquerda para a direita) Shuri, maior cientista de Wakanda; Nakia, espiã e grande ativista; General Okoye, líder guerreira do exército Dora Milaje (formado exclusivamente por mulheres negras); e Ramonda, a rainha-mãe de Wakanda

Uma razão importante para o filme estar sendo tão aclamado é o fato de, finalmente, os produtores de Hollywood estarem se atentando para a importância da representatividade no cinema.

Assistir a um filme com todo o elenco principal formado por negros, que não estão limitados a papéis cômicos, irrelevantes, vilanescos, ou servindo de escada para outros personagens brancos, é algo muito significativo.

Uma pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora, Dr.a Zélia Ludwig, tem dedicado seu tempo, além de produzir vidros para a Nasa e outras coisas incríveis em seu laboratório, a estudar como a mulher – e, principalmente, a mulher negra – tem sido tratada nas universidades e institutos de pesquisa.

Arte de divulgação da palestra da Dr.a Zélia Ludwig no evento Ciência ao Bar, com uma de suas frases.

Em palestra realizada no evento de divulgação científica “Ciência ao Bar”, ela afirma que “nas disciplinas de exatas não se vê muitas mulheres, por quê? Porque não tem modelo. Você quer ser aquilo que você vê”. Segundo a pesquisadora, não há muitos modelos de mulheres na ciência e a causa disso está em fatores que vão desde os brinquedos que os pais dão aos seus filhos, e as frases que sua própria filha está acostumada a ouvir na escola – como “matemática é uma habilidade natural de meninos”, até os casos mais notórios e violentos de preconceito no ambiente acadêmico.

Um dos vários casos que ela relata é o do dia em que ouviu de um professor seu, quando fazia pesquisa na Universidade de São Paulo, que ele não gosta de orientar nenhuma mulher na universidade, porque:

“quando ela é solteira ela fica correndo atrás de namorado e não dedica ao trabalho; quando ela está casada ela reclama do marido e corre atrás dos filhos; e quando ela está separada ela lamenta de tudo isso, então ela é um problema pra mim”.

Por isso, colocar uma mulher negra como a mais importante cientista de um país extremamente desenvolvido, mostrando que mulheres (e mulheres negras) podem, sim, ser cientistas – ou mesmo guerreiras – é algo muito significativo e importante.

 

As diferentes formas de se defender uma mesma causa

Toda essa discussão racial que se pode fazer sobre a obra também é feita dentro da própria diegese, o universo onde a narrativa se passa. Apesar do grande embate entre antagonista e protagonista, ambos lutam pela mesma causa, a proteção do seu povo.

Cena do filme X-Men 2 (2003), em que Charles Xavier e Magneto (que estava preso) jogam xadrez.
Cena do filme X-Men 2 (2003), em que Charles Xavier e Magneto (que estava preso) jogam xadrez.

A divergência entre eles é apenas na forma como essa luta deve ser feita. Tal qual o pensamento do professor Xavier, em X-Men, o rei T’Challa aposta em uma proteção defensiva e pacífica do povo de Wakanda, preferindo esconder-se do que pegar em armas e se impor perante o mundo. Já Erik Killmonger, com pensamento mais próximo de Magneto, defende a supremacia wakandana através da luta armada e não admite que um povo tão forte e desenvolvido se esconda nas sombras.

É impossível falar de Pantera Negra sem associá-lo ao Partido dos Panteras Negras que emergiu nos EUA na década de 60, embora seja sabido que não houve influência de um para o outro. Neste período, três grandes grupos surgiram nos Estados Unidos, com a intenção de lutar pelos direitos da população negra. Os Panteras Negras se diferenciavam dos demais movimentos por apostarem em uma luta armada de seus militantes, sendo considerados por isso um grupo radical e, consequentemente, sofrendo uma atroz perseguição da polícia.

Foto de Martin Luther King e Malcolm X (1964)
Foto de Martin Luther King e Malcolm X (1964)

Muitos comparam o antagonista Erik Killmonger com o líder negro Malcom X, que, diferentemente do seu contemporâneo Martin Luther King, defendia a supremacia e o separatismo dos negros e aceitava a prática da violência como forma de proteção. Embora ambos defendessem a mesma causa: a liberdade, segurança e os demais direitos dos negros.

Outras pessoas enxergam em Erik Killmonger, este personagem tão complexo que não pode ser chamado de vilão, o retrato do homem negro, nascido nos guetos, criado pela vida, fortemente oprimido pelo sistema e que, como forma de defesa e reação, se torna um sujeito violento e, por isso, marginalizado.

 

O fato é que Pantera Negra é um marco importante para o cinema. Enquanto X-Men pode ser visto como uma ótima metáfora a favor da luta das minorias sociais, como a população negra e LGBT, Pantera Negra escancara o problema do preconceito racial, nos lembrando que ele existe até hoje e, ao mesmo tempo, oferecendo um modelo de sociedade negra, matriarcal, extremamente desenvolvida tecnológica e cientificamente, e que não precisou abrir mão de suas ancestralidades, seus ritos e sua religiosidade para alcançar tal estado.

 

Se a tecnologia de Wakanda demorar a chegar no mundo real, que pelo menos cheguem mais mulheres e negros na nossa ciência, estamos precisando muito!

 

 


-> Esse texto é uma versão expandida de uma coluna que escrevi para a revista Ciência Hoje (edição de agosto/2018)

Lucas Miranda

Físico e mestre em Divulgação Científica pela Unicamp. É professor no Sistema Anglo de Ensino, Colunista da Revista Ciência Hoje, Coordenador do projeto Ciência ao Bar e Cinegrafista, Editor e Tradutor na TV NUPES (Fac. de Medicina - UFJF)

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