O MERCADO da DÚVIDA na guerra contra regulamentações

Imagine que você é dono de uma MEGA empresa de cigarros, por volta da década de 1950/1960, e começam a surgir várias pesquisas científicas dizendo que o cigarro faz muito (mal tanto para quem usa, quanto pra quem convive com fumantes). Você, magnata da indústria do tabaco, iria deixar uma meia dúzia de nerds de jaleco destruir o seu negócio milionário? Eu não sei você, mas os verdadeiros magnatas da indústria do tabaco não deixaram.

Neste texto, vamos falar sobre uma estratégia usada pela indústria do tabaco – e, mais tarde, pela indústria de pesticidas e de combustíveis – que tinha como objetivo descredibilizar a ciência e barrar toda e qualquer forma de regulamentação.

Este conteúdo foi originalmente produzido em vídeo, mas se preferir pode lê-lo logo depois do player!

Quando começaram a surgir pesquisas científicas sobre os malefícios do cigarro, as empresas de tabaco – que seriam enormemente ameaçadas por essas descobertas – tiveram uma ideia muito boa. Basicamente, elas compararam alguns cientistas e os instruíram a darem várias entrevistas para a mídia dizendo que discordavam das pesquisas que apontavam que cigarros faziam mal.

A imprensa, na ânsia de ouvir “os dois lados” sobre um mesmo assunto, começou a dar voz a esses verdadeiros negacionistas dos malefícios do cigarro e a colocá-los pra debater, de igual pra igual, com cientistas sérios que realmente pesquisavam sobre tabaco. O que estes cientistas vendidos tinham que fazer era apenas dizer que a ciência não chegou a nenhuma conclusão sobre o assunto, que “existem estudos” que mostram que o cigarro não faz mal, que não há provas suficientes de que cigarro faz mal. Em suma, o papel desses indivíduos era plantar dúvidas. Quando isso não era suficiente, eles recorriam ao ataque pessoal, na tentativa de descredibilizar os cientistas de verdade e as suas pesquisas.

Mas isso funcionava?

De fato, a mídia passava uma impressão de que realmente havia um debate em aberto na ciência, acerca dos malefícios do cigarro, porque a população não fazia ideia da proporção entre as pesquisas que comprovam os malefícios do cigarro e as pesquisas que afirmam que cigarro não fazia mal (que, na verdade, nem existiam).

“A indústria percebeu que você pode criar a impressão de controvérsia na ciência simplesmente fazendo perguntas”.

Naomi Oreskes (historiadora da ciência da Universidade de Harvard)

Esse método de implantar dúvida nas pessoas através da mídia funcionou para a indústria do tabaco por 50 anos. O objetivo desses magnatas era atrasar ao máximo a chegada de uma regulamentação mais rígida (como veio a acontecer depois). Mas cada dia que eles ganhavam sem regulamentação era um dia a mais de lucro. 

Agora, vamos guardar essa história e avançar algumas décadas.

Aquecimento Global

No início dos anos 2000, o debate sobre o aquecimento global se acalorou muito nos EUA. Nessa época, o Al Gore estava disputando a presidência dos EUA com o George W. Bush. O ambientalista Al Gore, além de ter ganhado um Oscar pelo seu documentário sobre aquecimento global (“Uma verdade inconveniente”), ainda foi laureado com o prêmio Nobel da Paz, por isso sua presença no debate político ajudou muito a fomentar esse debate sobre o meio ambiente e o clima.

Nessa época, a historiadora Naomi Oreskes começou a achar muito estranho um comportamento da imprensa nos Estados Unidos de afirmar que o aquecimento global era um tema controverso, um tema em debate, em aberto, sem consenso científico.

A Naomi, que tem a investigação científica “na veia”, resolveu ir atrás disso e analisou todos os quase 1.000 artigos publicados sobre aquecimento global de 1992 a 2002. E ela descobriu o seguinte:

Todas as pesquisas científicas concordavam que a intensificação do aquecimento global era devido ao aumento da produção de gases estufa.

Aquecimento global e o mercado da dúvida

Quando a Naomi publicou esse achado na revista Science, dizendo que havia, sim, consenso na ciência e que este não é um debate em aberto, ela começou a sofrer muitos ataques, muitas ameaças.

A historiadora foi mais além e começou a investigar quem eram esses indivíduos que a estavam atacando. Nessa investigação, a Naomi não só descobriu que eles também estavam atacando outros cientistas, de outras áreas, como descobriu vários documentos que provavam que esses caras tinham trabalhado no passado para a indústria do tabaco.

A indústria de combustíveis fósseis não só usou a mesma estratégia da indústria do tabaco, como pagou os mesmos cientistas.

Um desses cientistas foi o famoso Fred Singer, um físico dos Estados Unidos que atacou veementemente as pesquisas sobre os malefícios do cigarro e, anos depois, atacou as pesquisas sobre as mudanças climáticas, e atacou também as pessoas que estavam pesquisando isso.

Investigando melhor o Singer e outros, a Naomi percebeu que a motivação deles para mentir e negar essas descobertas científicas não era apenas financeira, mas política.

Todos os ataques que esses poucos cientistas fizeram à ciência, eram no sentido de defender o livre comércio, de tirar a possibilidade do governo regulamentar o tabaco, regulamentar o uso de pesticidas, regulamentar a emissão de CO2. Esse medo de uma ação estatal mais forte era fruto de um medo do comunismo.

Isso não tem um cheiro de Guerra Fria? Sim, e não à toa!

Além de físico, o Fred Singer serviu às forças armadas e desenvolveu minas pro exército durante a 2ª Guerra Mundial. Esses negacionistas eram cientistas da Guerra Fria, profundamente anti-comunistas, que não queriam ver o governo interferindo em nenhuma empresa. É um tipo de pessoa que chama os ambientalistas de “melancias”: porque são verdes por fora e vermelhos por dentro.

Aquecimento global e o mercado da dúvida

Ou seja, se em algum momento você acreditou que existe um debate em aberto na ciência sobre o aquecimento global, que os cientistas não chegaram a um consenso sobre esse assunto, é porque vc caiu nessa estratégia.

Esse mercado da dúvida vem sendo muito usado quando o assunto é regulamentação, e ele funciona. E uma das razões para funcionar tão bem é um certo despreparo (ou uma má intenção) da mídia. Usando a bandeira de neutralidade, os veículos de comunicação tentam sempre dar voz aos dois lados, a dois pontos de vista discordantes.

Isso faz sentido quando você chama um democrata e um republicano pra comentar sobre um assunto político, ou uma pessoa de direita e outra de esquerda pra debater reforma da previdência.

Mas quando um desses lados é a ciência – trazendo fatos científicos – e o outro lado é qualquer pessoa – dizendo algo que não é um fato científico, ou mesmo tentando semear dúvida sobre os fatos – aí nós temos um problemão. Colocar essas duas afirmações como equivalentes, ou como dois lados diferentes, dois pontos de vista, duas opiniões, não é neutralidade, é mau-caratismo.

Se você quer conhecer mais dessa história da indústria do tabaco, dos pesticidas, dos combustíveis, se quiser entender melhor essa estratégia e os indivíduos por trás disso, eu recomendo fortemente o livro “Mercadores da dúvida” ou, pra quem tem mais pressa, o documentário.


Leia mais:

MERCADORES DA DÚVIDA: CIENTISTAS CONTRA A CIÊNCIA

PALESTRA DE NAOMI ORESKES SOBRE SUA PESQUISA

DOCUMENTÁRIO “MERCADORES DA DÚVIDA” NO YOUTUBE FILMES

Lucas Miranda

Físico e mestre em Divulgação Científica pela Unicamp. É professor no Sistema Anglo de Ensino, Colunista da Revista Ciência Hoje, Coordenador do projeto Ciência ao Bar e Cinegrafista, Editor e Tradutor na TV NUPES (Fac. de Medicina - UFJF)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *