Deus e o Acaso sob uma Perspectiva Cognitiva

ResearchBlogging.org“Nada na vida acontece por acaso”. Toda vez que algo me acontecia (um problema no trabalho, um resultado negativo de uma prova, etc.), minha mãe me dizia essa frase. Se era apenas para consolar, eu não sei, mas a verdade é que até mesmo a existência dessa frase não é por acaso.

Nós, seres humanos, não gostamos do acaso. Sentimentos de acaso, bagunça e caos são sentimentos aversivos. Sentimentos assim incomodam o nosso sistema cognitivo. O ser humano está o tempo todo (desde criança) buscando compreender e estabelecer relações causais entre as coisas que acontecem. Dizer que A ou B acontecem por acaso não satifaz nossa cognição.

Mas esses sentimentos existem. E como seres adaptativos, estamos sempre buscando lidar com eles. Uma das tentativas de lidar com os sentimentos causados pela idéia do acaso é a crença na existência de um Deus controlador, ou uma força espiritual superior que controla e coordena todos os acontecimentos e ações humanas. Em outras palavras, acreditar em um Deus controlador funciona como uma excelente ferramenta para combater o sentimento aversivo e incômodo causado pela idéia do acaso.

Essa hipótese foi testada experimentalmente por um grupo de pesquisadores da Universidade de Waterloo no Canadá. Aaron Kay, David Moscovitch e Kristin Laurin estavam interessados em saber se uma manipulação experimental (prime) destinada a eliciar sentimentos sobre o acaso também aumentaria a crença em fontes sobrenaturais de controle. Colocado de forma mais simples, a pergunta desses pesquisadores foi a seguinte: se fizermos com que as pessoas sintam que as coisas acontecem por acaso, será que isso aumenta a crença de que existe uma força sobrenatural (i.e., Deus) que tudo controla?

Para testar essa hipótese, os pesquisadores recrutaram pessoas para participarem de um estudo que supostamente investigaria “os efeitos de um suplemento medicinal nas percepções de cores”. Eles falaram com os participantes que eles tomariam uma pílula (suplemento medicinal) e depois fariam uma série de atividades de percepção de cores. No entanto, para metade dos participantes, os pesquisadores disseram que a pílula poderia causar um pequeno efeito colateral: ansiedade. Para a outra metade, os pesquisadores disseram que não haveria nenhum tipo de efeito colateral. Após tomar a pílula, os participantes deveriam responder a um questionário (supostamente não-relacionado com o experimento) enquanto esperavam o efeito da pílula acontencer.

O questionário (que na verdade era o experimento propriamente dito) consistia de um grupo de palavras que os participantes tinham que utilizar para formar frases. Para metade dos participantes, as palavras eram palavras relacionadas com a idéia do acaso (chance, caótico, sorte, desordem, etc.). Para a outra metade, as palavras não tinham essa conotação. Após executar essa tarefa, os participantes responderam a uma série de perguntas que acessavam a crença deles em Deus e outras forças espirituais.

A idéia básica do experimento era a seguinte: o grupo de pessoas que leu as palavras relacionadas à idéia do acaso ficariam “ansiosas” (sentimento causados pela idéia do acaso) e isso supostamente aumentaria a probabilidade de que essas pessoas acreditassem em Deus e outras forças sobrenaturais. No entanto, se essa ansiedade pudesse ser atribuída á uma outra fonte (a pílula, por exemplo), a crença em Deus e outras forças sobrenaturais seria menor. Em outras palavras, eles queriam saber se quando não sabemos a causa de algum acontecimento (o que elicia sentimentos do acaso), atribuímos causa à uma força espiritual/sobrenatural maior (Deus é a causa. Ele quis assim). Mas se sabemos das causas dos acontecimentos, essa atribuição não necessariamente acontece.

Os resultados que os pesquisadores encontraram foi exatamente esse: no geral, o grupo de pessoas que leu as palavras relacionadas à idéia do acaso tendeu mais a acreditar em Deus e forças sobrenaturais quando comparado com o grupo de pessoas que leu as palavras controle (não-relacionadas com a idéia do acaso). No entanto, esse efeito experimental desapareceu quando a causa da ansiedade poderia ser atribuída à pílula (o grupo que tomou a pílula e foram informados sobre o efeito colateral). Todas essas diferenças foram estatisticamente significativas.

O estudo sugere que a crença em fontes sobrenaturais de controle parece sim funcionar como uma defesa cognitiva ao sentimento aversivo causado pela idéia de que as coisas acontecem por acaso. É cada vez maior, em Psicologia Cognitiva, o número de pesquisas que busca compreender as bases cognitivas que permitem que os seres humanos lidem com as crenças no sobrenatural, com pensamentos e atitudes religiosas, com superstições e com a idéia de que existe uma força superior (Deus, por exemplo) que controla tudo e todos.

Esse estudo, de fato, contribui para esse corpo de pesquisa e, certamente, essa pesquisa não aconteceu por acaso. 🙂

Reference:

Kay AC, Moscovitch DA, & Laurin K (2010). Randomness, attributions of arousal, and belief in god. Psychological science : a journal of the American Psychological Society / APS, 21 (2), 216-8 PMID: 20424048

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3 respostas para Deus e o Acaso sob uma Perspectiva Cognitiva

  1. Fernanda Poletto disse:

    >Muito bom!!!

  2. RobertoCR disse:

    Gostei muito do artigo.
    Apenas um questionamento: as conclusões do experimento podem variar de acordo com a estrutura cultural de uma população?

  3. RobertoCR disse:

    Putz, só depois de enviar a pergunta visitei a home page e li seu texto de despedida. Por favor descarte meu questionamento. E boa sorte.

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