Os que os olhos não lêem, o Facebook inventa, deturpa e faz memes

Screenshot 2015-06-21 12.32.33No último domingo, a Folha de São Paulo divulgou uma matéria sobre parte da minha vida profissional. Foi um reconhecimento legal que veio após a minha entrevista para o Jovem Nerd e Azaghal no Nerdcast 460. A reportagem original da Folha de São Paulo chegou até a ser modificada e reproduzida pelo Yahoo Brasil na seção Inspire-se. Confesso que tive um sentimento bom ao saber que minha história poderia servir de inspiração para alguns milhões de brasileiros que lutam todos dias pra alcançar o famoso “vencer na vida”

No entanto, a internet é um lugar engraçado e perigoso. Engraçado por que nela as pessoas conseguem expressar suas habilidades criativas ao extremo. E perigoso por que essas mesmas habilidades cognitivas são intrinsecamente falhas e limitadas.

Em menos de 24 horas, essa minha história — que tinha o objetivo claro de servir de inspiração para muitos jovens brasileiros — virou gancho para debates políticos, com um show de comentários do tipo: “esse não precisou de cotas“, “e depois dizem que não existe meritocracia“, “só falta o PT dizer que foi ele que ajudou“, “esse não sofreu de coitadinho“, e o meu favorito “esse concerteza não votaria no PT“.

Vamos deixar algumas coisas bem claras aqui: toda e qualquer interpretação e discussão acerca da reportagem é válida desde que seja minimamente coerente com o que a reportagem diz. Leia novamente as duas matérias e conte quantas vezes é mencionada a palavra cotas. Isso mesmo: zero vezes. No entanto, o fato dessa palavra não ter aparecido nem uma vez nas reportagens não garante a interpretação de muitos de que “esse não precisou de cotas“. As coisas que acontecem na nossa vida, acontecem dentro de um contexto muito maior do que aquilo que a nossa cognição geralmente consegue conceber e processar. E nessa reportagem, eu não menciono absolutamente nada com relação ao momento político-social em que eu me formei, ou das várias assistências governamentais que utilizei ou não. Utilizar a reportagem e minha história para esse tipo de argumento é errado e evidencia uma tremenda idiotice e falta de pensamento crítico.

Nossa cognição é péssima no que diz respeito a probabilidades. Nunca conseguimos pensar criticamente no todo, e sim em eventos isolados. Quando um evento isolado se torna parte da nossa memória, logo achamos que aquilo é regra. E como regra é algo previsível, logo achamos que aquele evento isolado é previsível. Muitos leram a minha história e já partiram pra conclusão de que essa é a regra no Brasil para que jovens negros e pobres vençam na vida. Mas deixa eu contar pra vocês uma coisa: não é. O Brasil tem mais de 200 milhões de pessoas. Mais de 20% desse total vive na pobreza. E desse percentual, poucos “vencem na vida”. E isso certamente não é somente por falta de esforço e força de vontade.

Qualquer explicação que coloque essa culpa “somente” no estado (seja ele de esquerda ou direita) é uma explicação no mínimo simplória para um problema histórico e altamente complexo. E como todo problema complexo, a solução não vai surgir a partir de uma pessoa, um governo ou um comentário falacioso no Facebook. Muitas vezes a nossa contribuição para resolver problemas complexos precisa ser pequena e pontual.

A minha contribuição foi de compartilhar um pouco da minha história e dar uma motivação extra para aquele jovem que naturalmente pensa em desistir quando surge algum obstáculo obstruindo seu sonho (o que é muito natural). E se você ainda não sabe como contribuir (o que também é natural), pode começar pela não destruição da contribuição dos outros.

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Crédito da foto @ceticismo

 

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9 respostas para Os que os olhos não lêem, o Facebook inventa, deturpa e faz memes

  1. marcely disse:

    Parabéns.....isso sim é um exemplo de vida

  2. Helber Marcondes da Silva disse:

    Infelizmente os brasileiros (não sei se por culpa das redes sociais ou outros motivos) querem tanto ter a razão em suas opiniões pessoais que deturpam histórias vitoriosas para se adequarem à sua visão de mundo. São pessoas que acreditam em verdades absolutas e que não podem ser questionadas, e tiram de contexto qualquer assunto que encontram.

  3. Mateus disse:

    Oi André!

    Acompanho um pouco da sua trajetória desde que você primeiro apareceu no nerdcast.

    Toda vez que leio ou ouço algo de você, renovo minhas esperanças de que é possível ter sucesso sem pisar nos outros ou esquecer daqueles, que por n motivos estão numa situação difícil.

    Admiro imensamente seu caráter, humildade, perspicácia e trabalho. Continue brilhando.

  4. Rayra disse:

    André, como sempre uma colocação perfeita! Muita gente adora transformar exceção em regra...
    Um tapa na cara! Muito obrigada por esse texto! Você me representa muito <3

  5. Pingback: Exploda sua mente com cultura boa! - Coxinha Nerd

  6. Pingback: Comportamento e cérebro humano | Pense Mundo Podcast

  7. Sandro disse:

    André,
    O conheci no NerdCast, deste de então, sempre que posso o acompanho. Principalmente nos podcasts. Torço por ti e para aqueles que inspiram na sua trajetoria.
    O compartilhar no "facebook", sem refletir, penso (por observação) que tornou-se algo banal. Penso que seria maravilhoso, cada um fazer sua contribuição, com objetivo de melhorar o proximo. " E se você ainda não sabe como contribuir (o que também é natural), pode começar pela não destruição da contribuição dos outros". O desejo é grande, e poderia melhorar muito, ao adotar este pequeno detalhe.
    Valeu mais uma vez.

  8. Gabriel disse:

    As pessoas adoram utilizar o caso de outras para justificar seus preconceitos. Triste ver um belo exemplo de perseverança virar uma discussão sobre classes sociais e "raça", questiono os meios de comunicação, será que eles não utilizaram seu exemplo justamente para esse propósito? Enfim, me estendi mais do que gostaria, deixo meus sinceros parabéns pela sua jornada André.

    • Gabriel,

      Deixa eu ver se entendi: "as pessoas adoram utilizar o caso de outras para justificar seus preconceitos". Qual preconceito? De que uma pessoa de uma etnia ou outra, ou quem sabe de uma origem social ou outra, possa atingir o mesmo nível cognitivo com base em seu treinamento.

      De que não há uma diferenças em performance cerebral levando-se em conta apenas a etnia? Há um nome para isso: e é a hoje tão mal falada meritocracia.

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