A arte, a fonte e o mijadouro (V. 4, N. 6, 2018)

Imagine que alguém esteja indo a um museu, para ver uma exposição, e uma das obras que essa pessoa encontra seja um… mijadouro. Isso mesmo, um urinol, objeto produzido com a finalidade de que nele se despeje urina.

Pois isso aconteceu. Em 1917, o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) inscreveu a obra Fonte (imagem anterior) na exposição da Associação de Artistas Independentes de Nova Iorque. Depois de alguns desentendimentos entre os membros da comissão julgadora, o trabalho foi aceito, uma vez que a proposta do evento era expor todas as obras inscritas.

Esse episódio teve um grande impacto no mundo da arte, com consequências que se fazem sentir até os dias de hoje. Vamos entender por quê?

Primeiro de tudo: a fonte e a arte

Devido a sua importância na vida cotidiana e também a seus significados simbólicos, fontes foram constantemente retratadas na história da arte. Em alguns casos, elas próprias eram a obra, como a Fontana di Trevi, na Itália, muito visitada até hoje, por turistas de todo o mundo.

Fontana di Trevi, uma das mais importantes fontes da Itália, idealizada no período Barroco (século XVII), pelo artista Bernini.

Naturais ou artificiais, as fontes sempre foram fundamentais para a vida nas cidades. Quando elas ainda não contavam com sistemas de abastecimento, era nas fontes que as pessoas iam buscar a água necessária para realizar as atividades diárias. Assim, foram essenciais para organizar a vida urbana.

Mas, além desse papel social e histórico, fontes faziam – e ainda fazem– parte do imaginário das pessoas, que muitas vezes as associam à sorte, à magia e à riqueza. Assim, era mais do que esperado que esse elemento da vida social e cultural sempre tenha estado presente nas manifestações artísticas, na maior parte das vezes simbolizando algo positivo ou importante.

Anel etrusco datado de ap. 550 a.C. A cena nele representada – que inclui uma fonte com cabeça de leão – remete a um episódio da Guerra de Troia.

Arte e rebeldia

Mas o que será que Duchamp pretendia ao colocar um mictório no museu e ainda dar a ele o nome de fonte? Por que ele converteu um objeto que era visto de uma forma lírica e até idealizada, em outro, cujo destino era receber dejetos?

Para entender seus motivos, precisamos voltar ao contexto em que o artista estava inserido: o das vanguardas europeias, conjunto de movimentos artísticos que sacudiu a Europa nas primeiras décadas do século XX. Todos esses movimentos questionavam a arte como era feita até então, predominantemente acadêmica.

A fonte, pintura de Jean-Auguste Dominique Ingres ligada ao Neoclassicismo, movimento da primeira metade do século XIX, marcado por rígidas regras de representação.

Os artistas das vanguardas acreditavam que essa arte, artesanal e cheia de regras, não correspondia mais à sociedade em que viviam, marcada por grandes transformações, como a urbanização e a industrialização crescentes.

Duchamp estava ligado ao Dadaísmo, movimento que questionava, de maneira muitas vezes radical, o papel da arte e do artista nessa nova sociedade. E foi o que ele fez. Colocou algo “feio” no lugar de algo que sempre fora considerado bonito. Com isso, denunciou o esgotamento de toda uma tradição artística  focada no prazer visual que a obra de arte poderia dar.

Ready-mades

Mas as questões suscitadas pelo urinol não terminam aí. Ele choca não apenas por ser algo “feio” no museu, mas principalmente porque não foi feito pelo artista, e sim comprado numa loja. É um objeto comum, de uso cotidiano, que qualquer pessoa poderia comprar. Duchamp inaugurou o uso de objetos industrializados, produzidos em série, no lugar da obra feita pelas mãos do artista. Criava, assim, a noção de ready-made, que teve grande impacto na arte.

A Roda de bicicleta, de 1913, foi um dos primeiros ready-mades de Duchamp.

Porque, até então, a habilidade em fazer algo com as próprias mãos era condição para ser artista. Mas isso não correspondia mais a uma sociedade que produzia artefatos em série, nas indústrias. A arte precisou mudar para refletir as mudanças ocorridas em seu tempo.

Duchamp e o contemporâneo

A importância das obras de Duchamp para a arte contemporânea foi imensa. Por exemplo, elas possibilitaram a introdução de objetos da vida cotidiana no lugar dos materiais tradicionais, algo que é muito comum nas práticas artísticas da segunda metade do século XX até hoje, como já vimos em algumas postagens do blog (clique aqui). Seria impossível pensar os trabalhos de hoje fora desse contexto de aproximação entre arte e vida.

Outro aspecto fundamental é que, ao tirar o fazer artístico da esfera do artesanal, Duchamp transforma o artista num propositor de ideias e práticas. A arte foi se tornando, assim, cada vez mais conceitual. E a obra de arte perdeu seu aspecto quase sagrado e único,  para converter-se em um jogo entre artista e público. Um desafio, muitas vezes cheio de ironia, que nos leva a pensar no que a arte de ontem e a de hoje podem vir a significar.

Depois da Fonte, Duchamp ainda fez outras propostas, todas elas relevantes para a arte atual. Mas isso será assunto para outras postagens…

 

Guerrilla Girls: mulheres e museus (V. 4, N. 3, 2018)

“As mulheres precisam estar nuas para entrar no museu?”

Essa pergunta já foi feita pelas Guerrila Girls  em diversos museus do mundo. Sempre com a mesma (estarrecedora!) resposta: são pouquíssimas as mulheres artistas presentes nos acervos dessas instituições; e imensa a quantidade de nus femininos, em geral produzidos por homens.

Ok. Não temos nada contra os nus. Muito pelo contrário, entendemos a presença do corpo nu na arte como algo extremamente rico, como tratamos no post “Quem tem medo de artista?”.

Mas essa diferença discrepante entre o número de artistas mulheres e de mulheres nuas retratadas não seria sinal de que algo está errado?

Primeiro de tudo: quem são as Guerrilla Girls?

As artistas usam máscaras de gorila e nunca mostram seus rostos. Uma forma de chamar a atenção para a causa que defendem.

Guerrilla Girls é um coletivo artístico formado por ativistas feministas. Elas lutam para trazer a discussão sobre igualdade de gênero e de raça para o ambiente artístico.

Aparecem em público utilizando máscaras de gorila e começaram suas ações em 1985, espalhando pelas ruas de Nova Iorque seus cartazes irônicos e ácidos. Atualmente seu ativismo continua forte principalmente na internet. De 1985 até hoje, mais de 55 artistas já passaram pelo grupo, que segue anônimo.

Isso mesmo! As Guerrilla Girls nunca mostram o rosto. Elas fazem isso para chamar a atenção para sua causa, e não para suas aparências.

As artistas já estiveram em muitos museus do mundo, inclusive no MASP, em São Paulo, durante o ano de 2017.

Num de seus cartazes mais famosos, que circula com frequência nas redes sociais, elas listam as “vantagens” de ser uma artista mulher. Na verdade, são falsas vantagens, que denunciam o fato de que dificilmente uma mulher terá tanto sucesso no meio artístico quanto um homem. 

Não fazer sucesso. Não ser chamada para exposições. Essas são algumas das críticas feitas pelas Guerrilla Girls ao sistema da arte.

Por que isso acontece?

As ações das Guerrilla Girls nos fazem pensar sobre os motivos dessa desigualdade entre homens e mulheres no mundo artístico. O fato de quase não haver obras de mulheres nos museus pode nos fazer acreditar que elas não estão lá porque não são boas o suficiente.

Pensar assim é um erro.

Mulheres nunca puderam participar da vida social e artística como os homens. Elas não podiam ter uma profissão. Muito menos a profissão de artista.

Vamos dar um exemplo concreto. Você já ouviu falar em Maria Anna Mozart (1751-1829)? Ela era irmã do famoso músico Amadeus Mozart. Quatro anos mais velha do que ele, Nannerl Mozart, como era conhecida, era uma excelente musicista e se apresentava regularmente com seu irmão. Mas, logo que se tornou uma moça, foi proibida pelo pai – que era seu professor –  de continuar sua carreira. Naquela época, uma mulher artista não era vista com bons olhos pela sociedade.

Os irmãos Mozart retratados por Louis Carrogis Carmontelle em 1764. Igualmente talentosos, apenas o menino pôde dedicar-se à carreira de músico.

Agora imagine quantos talentos como o de Nannerl foram desperdiçados? Isso ocorreu em todas as artes. Inclusive nas artes visuais, em que poucas mulheres conseguiram espaço. Uma delas foi…

Artemisia Gentileschi (1593-1653)

Auto-retrato de Artemisia Gentileschi, cerca de 1630. Artemisia foi uma das maiores pintoras de seu tempo e uma das poucas mulheres a ser citada por historiadores da arte.

Sua vida não foi fácil. Filha de Orazio, um pintor barroco muito conhecido em Roma, Artemisia cresceu no ateliê de seu pai e com ele aprendeu o ofício de pintora. Apesar de seu grande talento, sofreu preconceito por acharem que, na verdade, pintava os quadros com ajuda do pai. Era comum também que seus trabalhos fossem tidos como obras de grandes pintores. Isso aconteceu com a famosa pintura Judith decapitando Holofernes, que, durante muito tempo, foi considerada uma obra de Caravaggio.

Artemisia Gentileschi, Judith decapitando Holofernes, c. 1620. Durante muito tempo, essa importante obra foi atribuída a Caravaggio.

Aos 18 anos foi violentada por um pintor, hospedado por seu pai em sua casa. Durante um ano, ela permaneceu calada. Mas então resolveu acusá-lo. Enfrentou a desconfiança de toda a cidade. E seu agressor pôde optar entre ser punido e sair da cidade.

Depois disso, sua obra tornou-se uma forma de denúncia, com pinturas bastante alusivas à opressão sofrida pelas mulheres. Artemisia foi redescoberta na segunda metade do século XX e tornou-se um dos símbolos da luta por igualdade entre os gêneros.

Do século XX para cá, a participação feminina nas artes aumentou, assim como ocorreu nas demais áreas. Mas ainda falta muito para que nosso imaginário sobre as mulheres artistas se transforme. Prova disso é a baixa representatividade feminina nas instituições artísticas, que as Guerrillas Girls não cansam de denunciar.

Arte feia (V. 3, N. 11, 2017)

No último post falamos dos recentes ataques sofridos por artistas contemporâneos brasileiros, que tiveram sua expressão cerceada. De lá para cá, a polêmica sobre a liberdade do artista – e da arte – cresceu, atingindo importantes instituições, como o Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Os comentários dos que defendem essas ações incluem a ideia de que os artistas não fazem arte. Alguns afirmam também que a verdadeira arte se perdeu em algum momento do passado, em que as obras eram realmente bonitas. Para eles, o que se faz hoje é feio e, portanto, não pode ser considerado artístico.

Em outras palavras, tem-se a impressão de que a arte do passado era bonita, e que a do presente é feia. Mas será que isso é verdadeiro?

Primeiro de tudo…

Beleza e feiura não são conceitos estáticos, eles mudam conforme o momento histórico e a sociedade em que se desenvolvem. Cada cultura tem o seu belo e o seu feio. Eles não são idênticos aos de outras culturas e inclusive podem variar numa mesma sociedade, com o passar do tempo.

Isso significa que algo hoje considerado feio, pode ser bonito no futuro, e inclusive artístico.

Uma falsa impressão

Arte não é sinônimo de beleza. Ela sempre se relacionou com o feio de alguma forma, em todos os momentos históricos.

No senso comum, predomina a ideia de que, para algo ser artístico, deve retratar, de maneira bela, o que é naturalmente belo. Por exemplo, uma paisagem natural, o retrato de uma criança, etc.

Assim, só seria artístico algo tido como bonito no sentido da contemplação, isto é, aquilo que é “bom de olhar”, porque desperta em nós sentimentos pacíficos, como calma e bem-estar.

Mas o fato é que o feio sempre esteve presente nas obras artísticas, como na pintura que segue.

Peter Paul Rubens, Cabeça de Medusa, c. 1617.

Nesse caso, podemos dizer que Rubens , importante pintor do período conhecido como Barroco, pintou algo feio (no sentido de não ser bom de olhar) de uma forma bonita. Essa forma bonita era aquela tida como “a correta” em sua época e, portanto, aceita por todos.

O feio, aqui, existe para referir-se a uma conhecida história: o mito da Medusa.

Modernismos…

Mas a arte não precisa apenas retratar o feio de forma bonita. Ela pode fazer isso “de forma feia”. É o que começa a acontecer, de maneira muito intensa, no período histórico conhecido como Modernismo.

Não é à toa que as pessoas, em geral, associam a arte moderna à feiura. É que, nesse momento histórico, artistas começaram a se voltar contra a maneira de fazer arte tida como correta.

Isso ocorreu porque as sociedades ocidentais mudaram muito profundamente, num curto período de tempo. E as formas de fazer arte que se desenvolveram até então não interessavam mais aos artistas.

Numa sociedade urbana, industrializada, marcada pela velocidade do trem e dos automóveis, e que em breve se veria diante de duas grandes guerras mundiais, não era mais possível ter uma atitude contemplativa e idealizada.

Eles queriam tratar desse novo mundo de uma maneira inteiramente nova e que correspondesse ao que era vivido. Para isso, subverteram as artes tradicionais e passaram a incorporar novos materiais artísticos ao seu fazer.

Pablo Picasso, A musa, 1935.
Para falar da sociedade em que viviam, artistas modernos subverteram a maneira tradicional de fazer arte.

Em resumo, artistas modernos e contemporâneos não desejavam mais representar o mundo de maneira idealizada. Eles queriam falar sobre uma sociedade marcada pelo caos e pela ruína, usando a matéria oferecida por essa mesma sociedade.

É isso o que faz César, na série de trabalhos intitulada Car compression. Ele se apropria de carcaças de carros descartadas para fazer esculturas.

Ao utilizar o lixo da sociedade de seu tempo, César constrói um monumento a ela. Propõe ao espectador não a contemplação, mas a reflexão crítica: o choque de ver, no lugar do belo, algo feio, mas que traduz o modo de viver contemporâneo, marcado pelo excesso de consumo e, consequentemente, de lixo.

Essa talvez seja a principal chave para compreender a arte de hoje: ela não é feita para a pura contemplação, mas para fazer sentir o nosso mundo e pensar sobre ele.

 

Referências:

ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.

ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Quem tem medo de artista? (V. 3, N. 8, 2017)

Um homem nu, imóvel, dentro de uma bolha de plástico inflável. Por seu corpo, escorre uma substância viscosa e transparente, que seca e vai tornando mais difíceis seus movimentos. Quando a substância está completamente seca, ele começa a se mexer, realizando uma série de movimentos para se livrar da espécie de casca – ou segunda pele – que sobre ele se formou.

Essa cena poderia fazer parte de um filme de ficção científica, mas é uma breve descrição da performance do artista paranaense Maikon K. No dia quinze de julho de 2017, ele foi preso pela Polícia Militar, em Brasília, durante a exibição dessa performance, intitulada DNA de DAN. A alegação dos policiais para a prisão foi a prática de ato obsceno, uma vez que Maikon estava nu e realizava a ação em frente ao Museu Nacional da República, dentro de uma mostra de teatro.

O caso teve grande repercussão na mídia e toca numa questão incômoda: não é raro que artistas sejam vítimas de ações arbitrárias ou até mesmo sejam perseguidos por instituições que representam o poder estabelecido.

Isso não acontece por acaso.

Primeiro de tudo…

Artistas incomodam.

Como vimos no post anterior, artistas buscam ampliar as potencialidades de um meio expressivo. Eles querem ir além do que já foi feito. E além do que já foi dito. Em outras palavras, eles falam do que têm vontade, da maneira como desejam. Assim, acabam por produzir obras que desestabilizam o olhar e desafiam o entendimento, gerando muitas vezes estranhamento e até mesmo rejeição por parte do público e da crítica.

E isso não é ruim. Para falar a verdade, faz parte do diálogo que se estabelece entre artista e espectador. Podemos não gostar do que ele produz, questionar ou mesmo ignorar suas obras. Mas nunca proibi-lo de criar com liberdade. Nesse caso, saímos da esfera do gosto e da apreciação para entrar na do autoritarismo.

Se a proibição ocorre por parte de instituições oficiais, o caso torna-se ainda mais grave. É sinal de que ou o autoritarismo já está instalado, ou há grandes chances de que se instale como política oficial, com graves consequências para todos os cidadãos.

Corpo, nudez e arte

A alegação de que o artista deveria ser preso por estar sem roupa desconsidera um fato muito importante: o corpo humano – inclusive o corpo nu – sempre esteve presente nas artes, seja como objeto de estudo e representação, seja como próprio meio da obra, o que é muito comum na arte contemporânea, especialmente com as performances.

As motivações dos artistas para utilizar o corpo como tema ou meio de seu trabalho variam de acordo com o momento histórico em que vivem (ou viveram), ou mesmo com suas motivações pessoais.

Na antiguidade clássica, por exemplo, o corpo humano era considerado a perfeita expressão de uma beleza idealizada, harmônica. Mais tarde, no Renascimento, para artistas como Leonardo da Vinci, o corpo era objeto de conhecimento artístico e científico. Também houve momentos em que o corpo foi visto como veículo das expressões humanas mais profundas (no Expressionismo, por exemplo).

Da antiga Grécia até os dias de hoje, nota-se o enorme interesse dos artistas pelo corpo humano.

 

Um dos muitos estudos anatômicos de da Vinci. No Renascimento, esse tipo de desenho – proibido pela Inquisição por ser feito a partir da observação de cadáveres – tornou-se uma prática artística bastante comum.

 

Pintores expressionistas transfiguram as formas, inclusive do corpo, numa tentativa de trazer para a exterioridade emoções intensas.

Nos dias de hoje, é comum os artistas tratarem o corpo de maneira a levar o público a refletir sobre a existência humana, numa sociedade que deseja controlar os corpos.

A performance DNA de DAN, por exemplo, coloca o espectador diante de questões como estas: o que significa ter um corpo, num ambiente dominado pela artificialidade? É possível o ser humano libertar-se da “casca” de cultura tecnocientífica que o “recobre” , para viver num corpo livre?

São muitas as reflexões que podemos fazer a partir de propostas artísticas como essa. Por isso, quando se trata de arte, é preciso ir além de uma compreensão rasa, que, por exemplo, associa nudez a crime.

Críticas ao artista são possíveis, mas devem ser feitas de forma não autoritária, considerando a necessidade de debate. Isso é fundamental numa sociedade que se pretenda democrática: zelar pelo direito de livre expressão não só de seus artistas, mas de todos seus cidadãos.

Arte contemporânea é assim mesmo… (V.3, N.6, 2017)

No post anterior, demos o primeiro passo para nos aproximarmos da arte atual: aceitar que ela é o que pode ser. Por razões sociais e históricas que discutiremos em futuras postagens, aconteceu de ela ser assim. Mas… Assim como?

Primeiro de tudo…

Por enquanto, nos referimos à arte contemporânea de maneira bastante ampla, dizendo que ela é “estranha”, “difícil”, “diferente do que esperávamos”.

Tudo isso é verdade, mas ainda é pouco.

Se quisermos entender (e perceber!) melhor a produção artística de nosso tempo, precisamos compreender o que a palavra “assim” quer dizer nesse caso.

O fato é que ela quer dizer muitas coisas.

A arte contemporânea pode assumir diversas formas, tratar de vários temas. Em outras palavras, ela é marcada pelo ecletismo.

 

Viva a liberdade!

Dizer que ela é eclética significa afirmar que uma de suas características fundamentais é a diversidade. Os artistas contemporâneos não estão presos a uma doutrina ou escola artística, como acontecia no passado. Não há regras a serem seguidas e eles podem criar o que quiserem. Eles são livres para escolher.

Essa liberdade criativa se manifesta em muitos dos aspectos das obras (trataremos disso em outros posts!), mas sem dúvida a face mais visível desse ecletismo se revela nos materiais de que elas são feitas.

O artista inglês Liam Gillick afirma que hoje os materiais artísticos parecem ter sido comprados em “lojas inadequadas”. E tem razão!

Enquanto artistas do passado tinham uma opção limitada de escolhas (grafite, carvão, tinta, argila, por exemplo), os de hoje podem usar qualquer coisa. Mesas, cadeiras, pedras, sapatos, feno, barras de ferro, fotografias antigas. Tudo pode se transformar em material para a arte.

De 1950 para cá, tudo tem se transformado em material artístico. Liam Gillick, por exemplo, usou lenha para fazer essa escultura.

Mas isso não quer dizer que os materiais artísticos tradicionais não sejam mais utilizados. Eles não apenas são usados, como muitas vezes têm seu uso potencializado, por estarem lado a lado com materiais não-convencionais.

Foi justamente o que fez o artista cujo trabalho abre este post. Andrey Rossi utilizou uma mistura de materiais convencionais e não-convencionais, compondo uma  assemblage.

Com carvão e sanguínea sobre papel, ele fez desenhos ao mesmo tempo realistas e “estranhos”. Esses desenhos foram “acoplados” a um livro em cuja capa está encrustado o crânio de um pássaro. O marcador de páginas é uma mecha emaranhada de cabelos. Além disso, há anotações datilografadas e recortes de livros rasurados.

Todos esses diferentes materiais foram arranjados de maneira a compor um todo significativo, que se oferece a nossa fruição.

Esse trabalho nos faz pensar sobre a natureza do conhecimento que se encontra dentro de livros, mas também sobre o fazer artístico, que pode, por exemplo, tomar um livro antigo como suporte para uma colagem.

Mas não é só isso

Ele pode ser compreendido como uma imagem emblemática do que aconteceu com a arte de uns tempos para cá: ela não cabe mais dentro de limites fechados. Esparrama-se para além do aceito. Desafia explicações possíveis. Não se deixa aprisionar por aquilo que está escrito nos livros, embora muitas vezes se apoie sobre eles.

E é por isso que ela é legal: por oferecer-se aos artistas como liberdade de escolha, e aos espectadores, como desafio de interpretação.

 

Referência para a escrita deste texto:

Bourriaud, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins, 2009.

 

Mas isso é arte? (V. 3, N. 5, 2017)

Imagine o seguinte: você vai a uma exposição e se depara com centenas de bancos de madeira espalhados pelo espaço expositivo. O que você acharia disso? Legal? Ou muito, muito estranho?

Algumas pessoas consideram trabalhos como esses não só estranhos, mas incompreensíveis. E, por isso, não têm vontade de visitar museus ou galerias.

Mas… Vamos tentar entender por que a arte de hoje é assim?

Primeiro de tudo…

Saiba que esse estranhamento é comum até mesmo entre pessoas acostumadas com a arte que se faz atualmente.

Isso ocorre porque, muitas vezes, esse é justamente o sentimento que o artista quer despertar em nós.

Além disso, chegamos às exposições esperando ver aquilo que julgamos ser arte: pinturas, como as de Leonardo da Vinci, por exemplo.

Esse é o tipo de obra que queremos ver, porque aprendemos que arte é isso. Está nos livros, e todos nós sabemos que a boa arte, a arte de verdade, é assim.

Leonardo da Vinci, Anunciação, óleo sobre madeira, 1472.
A pintura dos grandes mestres: a arte que queremos ver?

Claro que Leonardo da Vinci é um grande artista. E suas pinturas, simplesmente fantásticas.

Mas não podemos esperar que os artistas de hoje pintem como ele, ou façam o que ele fez, simplesmente porque eles não vivem na mesma época, nem na mesma sociedade de Da Vinci.

A arte do presente não é igual à do passado. Como toda atividade humana, ela muda com o tempo, adquire significados novos e até mesmo inesperados.

Por motivos que discutiremos em outras postagens, a arte contemporânea é assim: muitas vezes difícil de entender.

E é aí que chegamos a outro ponto importante.

Não entendi nada!…

Acontece que arte não é só para entender. É também para sentir, para perceber. É sentindo, percebendo (e também compreendendo) que passamos a olhar para as obras de outra maneira.

Vamos dar um exemplo. Para Ai Weiwei, artista chinês que fez o trabalho Bang (imagem destacada), bancos não são só bancos.

Na China, havia a tradição de pais deixarem para seus filhos um banco de madeira, que ficava numa mesma família por várias gerações. Com a industrialização do país, essa tradição praticamente acabou. Bancos passaram a ser objetos descartáveis, feitos de plástico e metal.

Com seu trabalho, o artista nos convida a perceber – e sentir! – aqueles bancos de outra maneira: não mais como objetos do cotidiano, mas como testemunhas de uma cultura em transformação.

Em outras palavras, esses bancos são os restos de uma tradição em desaparecimento.

E porque o artista quis chamar nossa atenção – e nossos sentidos – para isso, transformou-os em material artístico, espalhando-os pelo espaço e simulando uma explosão.

Então, como lidar melhor com a arte?

Uma boa dica para perder o medo de ir a exposições é encarar a arte como diálogo e os locais de exposição como espaços em que esse diálogo pode acontecer.

Ir a uma exposição é se dispor a uma conversa – com o artista, e também com sua cultura. E ver um trabalho artístico é permitir-se ser tocado por ele. E querer, depois disso, ver outros e outros mais. E falar deles com seus amigos, com sua família, com seus professores.

E ampliar ainda mais os muitos significados que uma obra de arte pode assumir.

 

Referências para a escrita deste texto:

 

Isto é… Contemporânea! (V. 3, N. 3, 2017)

Bem-vindos ao incrível mundo das artes visuais!

Aqui vocês vão conhecer artistas, temas e procedimentos da arte atual.

As postagens do Contemporânea são pensadas jovens de todas as idades. E podem se constituir em fonte de pesquisa para alunos e professores que queiram inserir discussões sobre arte contemporânea em sala de aula.

Preparados? Então vamos lá! Apertem os cintos e boa viagem!