Autoimunidade: Pra que te quero?

Fundo verde com um simbolo de + no canto e uma mulher usando máscara laranja e luvas cirurgicas azuis.

Você com certeza já ouviu os termos autoimunidade e doenças autoimunes (como a esclerose múltipla e diabetes) em conversas do dia a dia, seja entre amigos, familiares, visitas a clínicas e hospitais, ou mesmo na internet, televisão ou rádio. Atualmente, cada vez mais o diagnóstico de doenças autoimunes vem aumentando, o que tem ajudado muito no tratamento delas. Contudo, muitas vezes confundem-se os termos doenças autoimunes e autoimunidade, com essa última sendo endemonizada ao tocar no assunto. 

Mas será que a autoimunidade é realmente ruim para nós? Hoje vamos pensar um pouco mais sobre isso.

Como o corpo consegue diferenciar o que é nosso e o que é externo?

As células do nosso sistema imune possuem formas específicas de reconhecer o que é nosso (próprio) e o que é externo ao nosso corpo (não-próprio). Para isso, nós utilizamos um sistema quase de “cara-crachá”, com as células do nosso apresentando partes de si mesmas às células de defesa para mostrar que elas são quem dizem ser. É a partir desse sistema de vigilância que nosso sistema imune consegue reconhecer bactérias, células modificadas (infectadas por vírus ou cancerígenas), fungos, etc.

E como isso acontece?

Vamos pensar em uma situação hipotética:

Uma célula Natural Killer está se movendo entre as células da pele. Essa Natural Killer é uma das células mais comuns do sistema imune,  participando desse processo de vigilância e sendo especializada em matar células modificadas. Ali na pele, todas as células estão mostrando pedaços de proteínas próprias para a Natural Killer (NK), e ela está reconhecendo essas células como próprias do corpo. Até que uma célula meio diferente apresenta um pedaço de proteína (também chamado de Antígeno) que a Natural Killer não reconhece. A célula NK prontamente se aproxima mais dessa célula diferente e libera várias moléculas que acabam por matá-la.

A Natural Killer não tinha como saber, mas a célula em questão estava diferente porque estava infectada por um vírus, sendo que o antígeno que ela apresentou era uma proteína viral e não uma proteína própria. A única coisa que a Natural Killer sabia era que aquela proteína não era própria do corpo e, por causa disso, havia algo de estranho com a célula em questão, por isso ela deveria ser morta. 

Onde quero chegar com isso?

É a partir desse processo de cara-crachá, apresentando pedaços de proteínas nossas para as nossas próprias células de defesa (todo esse processo é chamado de Apresentação de Antígeno) que conseguimos matar rapidamente muitas células que estão em estado de mutação inicial ainda, ou que já são cancerígenas mas não começaram a se multiplicar muito, ou mesmo que estão infectadas com vírus. 

As células mais especializadas que temos para fazer esse trabalho são os chamados Linfócitos T Citotóxicos, um tipo de linfócito T que carrega várias enzimas capazes de matar células, seja abrindo buracos nas suas membranas ou iniciando um processo chamado Apoptose, que nada mais é do que um suicídio que a célula faz (em termos técnicos, é chamado de Morte Celular Programada, pela célula direcionar todo o seu maquinário para realizar essa única função de se matar). 

Curiosidade:

O linfócito T citotóxico leva esse nome justamente pelas enzimas que ele carrega serem tóxicas para outras células. Esses linfócitos não são afetados pelas enzimas que estão dentro deles, devido a tais moléculas estarem protegidas dentro de pequenas vesículas que eles carregam internamente. Quando um linfócito deste encontra uma célula modificada, ele libera essas vesículas em cima dessa célula estranha e todos os efeitos mencionados acima acontecem. Esses linfócitos também são chamados de T CD8, devido a uma proteína muito específica que eles têm em sua membrana que leva o nome-código de CD8.

Como essas células sabem reconhecer o que é próprio e o que não é próprio?

Pois bem, todos os linfócitos passam por um processo chamado maturação de linfócito (T ou B, ambos os tipos de linfócitos passam por processos similares). Nesse processo os linfócitos são apresentados a vários autoantígenos (nesse caso específico, um autoantígeno é um pedaço de uma proteína nossa, que o nosso corpo produz, por exemplo, a insulina e o colágeno). Duas coisas são testadas nesse processo: 

1) se esses linfócitos são capazes de reconhecer esses autoantígenos e 

2) com quanta força (aqui chamada de Avidez) essas células se ligam a esses autoantígenos. 

Aqueles linfócitos que não reconhecem os autoantígenos acabam sendo mortos, assim como aqueles que reconhecem com muita avidez. A ideia por trás desse processo é impedir que uma célula que não reconhece as nossas proteínas como próprias, saia vagando pelo corpo e destruindo as nossas outras células (visto que ela não reconhece as nossas proteínas como algo do nosso próprio corpo). A outra ideia é impedir que mesmo uma célula que reconhece as proteínas mas que se liga muito forte a elas (sendo que nessa situação, tal linfócito também vai liberar suas enzimas citotóxicas), também saia por aí matando as nossas células. 

Ao final, nós queremos manter somente aqueles linfócitos que reconhecem as nossas proteínas como próprias, mas não com muita avidez, chegando no ponto ideal de se ligar a uma célula nossa, reconhecer ela como própria (caso seja apresentado um autoantígeno — o “cara crachá”) e soltar ela antes de matá-la. Esse processo de maturação de linfócitos é tão eficiente que, para o caso dos linfócitos T, a cada 100 linfócitos T que começam o processo de maturação, somente 5 chegam ao final deste, com os outros 95 morrendo durante o percurso. 

Curiosidade:

Todo esse processo de selecionar os linfócitos que respondem aos nossos autoantígenos sem ser com muita avidez é chamado de Tolerância Central, devido ao corpo estar “ensinando” (e aqui uso aspas porque o corpo não ensina nada efetivamente mas sim mata as células que não respondem como desejado) esses linfócitos a tolerar as outras células do nosso corpo.

Ok, e o que tudo isso tem a ver com autoimunidade e doenças autoimunes?

Tudo o que temos falado até agora é sobre o processo de autoimunidade e o surgimento de doenças autoimunes! A autoimunidade é um processo fisiológico e natural do nosso corpo, sendo responsável pela eliminação de células modificadas, sejam estas cancerígenas ou infectadas por vírus. Lembra do exemplo dado com a célula Natural Killer ou o linfócito T citotóxico matando uma célula com vírus? Esses processos todos são processos autoimunes!

Quer dizer que a autoimunidade é boa para nós?

Como tudo na biologia (e principalmente na imunologia): depende. Precisa haver um balanço nesse processo todo. 

Uma doença autoimune vai surgir justamente quando tiver um desbalanço nesse processo, com os linfócitos e outras células do sistema imune adaptativo reconhecendo nossas células como algo não próprio (ou externo ao nosso corpo) e começando a destruí-las. Dependendo da onde isso acontece, temos doenças bem conhecidas como: psoríase (células da pele sendo mortas), diabetes do tipo 1 (células do pâncreas sendo mortas), tiroidite de Hashimoto (células da tireóide sendo mortas) e esclerose múltipla (células do sistema nervoso central sendo mortas).

Ah, então seria melhor se não existisse a autoimunidade?

Bem… não exatamente.

Vamos imaginar duas situações:

  • Autoimunidade é pouco eficiente: 

Nessa situação, nossas células de defesa são incapazes de reconhecer as outras células do nosso corpo como externas e assim não existe quaisquer chances de uma doença autoimune se iniciar. Contudo, justamente por causa disso, quando surge uma célula cancerígena no organismo, ou quando um vírus infecta uma célula do corpo, nosso sistema imune não vai conseguir reconhecer isso como algo patogênico e tais células não serão mortas. Em pouco tempo, poderíamos morrer em decorrência do câncer se espalhar pelo resto do corpo (processo esse chamado de metástase), ou em consequência dos processos patológicos ocasionados por uma infecção viral.

  • Autoimunidade é muito eficiente:

Nessa situação, nossas células de defesa são muito eficientes em reconhecer quaisquer células do corpo que estejam com o menor grau de mutação ou modificação possível. Nesse cenário não existe chance de um câncer aparecer, porque no primeiro instante que uma célula cancerígena surge, o sistema imune está vigilante para matá-la. As infecções virais também são resolvidas rapidamente, pois quando um vírus começa a se multiplicar dentro de uma célula, as células do sistema imune já o descobrem e matam a célula hospedeira. Entretanto, pelo sistema imune estar tão vigilante, ele acaba por ficar “paranóico” e assim ele começa a atacar células do corpo sem que haja qualquer sinal de modificação nelas, simplesmente porque ele não reconhece mais essas células como próprias. E então começamos a ter doenças autoimunes generalizadas, com os linfócitos e outras células do sistema imune adaptativo atacando todo e qualquer tecido corporal.

Ou seja, a autoimunidade, ao reconhecer aquilo que faz parte do próprio corpo, é ótima para nós. Ela evita que um câncer cresça e se espalhe pelo nosso organismo, através da ação de vigilância e morte realizada pelos linfócitos T citotóxicos e células NK. Além disso, é através desse reconhecimento do não-próprio que nosso corpo evita o espalhamento de agentes causadores de doenças, como os vírus. Entretanto, o processo de tolerância não é simples e, somado a diversos outros fatores que  ainda vamos abordar, pode sofrer um desbalanço, podendo originar doenças autoimunes como o lúpus e esclerose múltpila, que mostram a faceta maligna da autoimunidade.

Aproveite o início dessa jornada em busca do equilíbrio do sistema imune, e até mais!

Saiba mais em: 

  • Cohen, I. R., & Lohse, A. W. (1991). Physiology and pathophysiology of autoimmunity. Seminars in liver disease, 11(3), 183–186. https://doi.org/10.1055/s-2008-1040435
  • Bluestone, J. A., & Anderson, M. (2020). Tolerance in the Age of Immunotherapy. The New England journal of medicine, 383(12), 1156–1166. https://doi.org/10.1056/NEJMra1911109
  • Zitvogel, L., Perreault, C., Finn, O. J., & Kroemer, G. (2021). Beneficial autoimmunity improves cancer prognosis. Nature reviews. Clinical oncology, 18(9), 591–602. https://doi.org/10.1038/s41571-021-00508-x
  • Tlaskalová-Hogenová, H., Mandel, L., Stĕpánková, R., Bártová, J., Barot, R., Leclerc, M., Kovárů, F., & Trebichavský, I. (1992). Autoimmunity: from physiology to pathology. Natural antibodies, mucosal immunity and development of B cell repertoire. Folia biologica, 38(3-4), 202–215.
  • Ezerzer, C., & Harris, N. (2007). Physiological immunity or pathological autoimmunity–a question of balance. Autoimmunity reviews, 6(7), 488–496. https://doi.org/10.1016/j.autrev.2007.02.009
  • Pashnina, I. A., Krivolapova, I. M., Fedotkina, T. V., Ryabkova, V. A., Chereshneva, M. V., Churilov, L. P., & Chereshnev, V. A. (2021). Antinuclear Autoantibodies in Health: Autoimmunity Is Not a Synonym of Autoimmune Disease. Antibodies (Basel, Switzerland), 10(1), 9. https://doi.org/10.3390/antib10010009

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