O que são boletins epidemiológicos?

TV mostrando dados epidemiológicos de uma doença ao redor do mundo

Durante a pandemia de covid-19 muito se falou sobre como políticas públicas em saúde ajudariam a lidar com a transmissão do SARS-CoV-2, como estas deveriam ser pautadas em resultados científicos e não somente na crença de uma pessoa ou mesmo em uma canetada. Mas como surge uma política pública? No que se baseiam os secretários de saúde ao aconselhar um prefeito, governador ou presidente de como agir frente a um problema de saúde pública como a covid-19, dengue, mpox ou mesmo agravos de saúde não relacionados a doenças, como violência doméstica e acidentes de trabalho? Uma das ferramentas para isso são os boletins epidemiológicos!

Primeiro, o que é a epidemiologia?

A epidemiologia surgiu como campo científico no final do século XIX, a partir da estatística moderna. A epidemiologia é o campo da ciência que estuda quais são os fatores que influenciam como as doenças — e mais atualmente outros problemas de saúde coletiva — afetam populações humanas, tudo isso utilizando de informações demográficas (idade, gênero, lugar de moradia, peso, altura e muitas outras). O maior objetivo da epidemiologia é identificar problemas e, aliando isso a diversas informações técnicas, fornecer informações que ajudem a tomada de decisão política de um gestor. Essa atividade é chamada de Vigilância Epidemiológica.

De acordo com a lei 8.080 de 1990 (a mesma lei que instituiu o SUS). A vigilância epidemiológica é um:

“conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos.”

Em outras palavras, é a prática do levantamento de dados e investigações voltadas a entender os problemas de saúde em uma população, avaliando as medidas de controle desses problemas (sejam doenças ou não). Posteriormente, essas informações são passadas para um secretário de saúde, que irá (junto de outras pessoas) ajudar o prefeito, governador ou presidente a pensar em uma política pública.

Mas engana-se quem pensa que nessa história de criar políticas públicas se usa somente informações vindas da epidemiologia. Durante a pandemia de covid-19 ficou muito claro como só conhecimentos oriundos da medicina, biologia e epidemiologia não eram capazes de lidar com um problema de saúde pública tão grande como uma pandemia. Obviamente que o caso da covid-19 é um extremo, mas justamente por causa disso que ele é tão claro em indicar como, para construir boas políticas públicas de saúde, também são necessários conhecimentos de economia, história, sociologia e tantas outras áreas que ficam relegadas ao ostracismo ao focar somente na medicina e epidemiologia.

Como é o trabalho da vigilância epidemiológica?

Desde 1985, o Brasil publicava o Guia de Vigilância Epidemiológica (originalmente sob o nome Manual de Vigilância Epidemiológica), um extenso documento que trazia informações detalhadas de como profissionais da saúde deveriam fazer investigações epidemiológicas de casos de doenças e epidemias, incluindo como deveria ser essa notificação (ou seja, a comunicação para as secretarias de saúde) e a análise posterior desses dados. Nessa época, a vigilância epidemiológica era muito focada em lidar com doenças infecciosas transmissíveis, por exemplo, a poliomielite, sarampo, tuberculose, dengue, febre amarela, doença de chagas, hepatite, HIV, leptospirose, raiva, rubéola, malária e diversas outras (para uma lista completa veja a página 24 da última edição do Guia de Vigilância Epidemiológica). 

O guia de vigilância epidemiológica do Brasil nasce como uma importante ferramenta do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE). O SNVE foi criado em 1975,  pouco tempo após o fim da campanha de erradicação da varíola no Brasil, unindo diversas instituições públicas e privadas voltadas a notificar casos de doenças e agravos de saúde, e coletando dados sobre a situação da saúde da população em todos os níveis (municipal, estadual e federal). Atualmente o SNVE é um dos componentes do Sistema Único de Saúde (SUS). 

Foi o SNVE que, a partir de 1976, tornou obrigatória a notificação de um conjunto de doenças transmissíveis consideradas de maior relevância nacional, pois eram doenças importantes ou que poderiam gerar sequelas sérias no cenário da época. Posteriormente, esse conjunto de doenças foi transformado no Sistema de Doenças de Notificação Compulsória, que passou por diversas revisões ao longo dos anos.

Durante esse momento foi definida uma lista nacional, que também já passou por diversas revisões em que foram selecionadas novas doenças e agravos. A principal dessas revisões aconteceu em 1998, quando o Centro Nacional de Epidemiologia promoveu uma extensa mudança, detalhando melhor o processo de notificação e os critérios utilizados para a seleção de doenças e agravos que deveriam ser notificados. 

Como é feita essa listagem hoje em dia?

Atualmente essa seleção é designada por Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública, indicando tanto as doenças e agravos que devem ser notificadas quanto a qual instância (federal, estadual ou municipal) e a frequência que tais notificações devem ser feitas (imediatas ou semanais). A notificação compulsória é a comunicação obrigatória sobre um caso suspeito ou confirmado de uma determinada doença, agravo ou evento de saúde pública. Essa notificação é realizada por médicos, profissionais de saúde e/ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde (sejam estes públicos ou privados) para uma autoridade de saúde (normalmente a secretaria de saúde municipal ou estadual).

Mas e se eu viajei, peguei uma doença, fui diagnosticado em um estado e depois voltei para minha casa em outro estado. Quem é que notifica o meu caso?

A notificação compulsória é obrigatória para quem fez o diagnóstico! No caso acima, no estado em que a pessoa estava viajando. Na maioria das notificações, existem dois campos de identificação de município: o município de residência do cidadão e o município onde ocorreu a notificação. Assim, conseguimos ver tanto os municípios que estão notificando mais quanto os municípios com mais pessoas residentes infectadas.

Mas como tudo muda, a vigilância epidemiológica também mudou…

Com o passar do tempo, novas estratégias e tecnologias foram incorporadas às ações de saúde pública. Nesse contexto, a vigilância epidemiológica não conseguia mais cobrir todos os agravos de saúde que deveriam ser monitorados, principalmente alguns novos temas que tinham entrado para a Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública em 2014. Pensando nisso, nesse mesmo ano, o ministério da saúde publicou um novo documento chamado de Guia de Vigilância em Saúde. A vigilância em saúde é entendida como: 

“um processo contínuo e sistemático de coleta, consolidação, disseminação de dados sobre eventos relacionados à saúde, visando o planejamento e a implementação de medidas de saúde pública para a proteção da saúde da população, a prevenção e controle de riscos, agravos e doenças, bem como para a promoção da saúde.”

Esse processo de revisão foi bastante importante, pois mostrava como a própria visão do ministério da saúde quanto ao que eram problemas de saúde pública também estava mudando, entendendo a necessidade de se lidar com problemas de saúde que não eram, necessariamente, doenças infectocontagiosas. 

Atualmente, tanto a Lista Nacional de Notificação Compulsória de Doenças, Agravos e Eventos de Saúde Pública quanto o Guia de Vigilância em Saúde estão atualizados, trazendo informações sobre diversos novos problemas de saúde pública como acidentes de trabalho e com animais peçonhentos (como aranhas e serpentes), a própria covid-19, a mpox, violência doméstica, sexual e tentativa de suicídio (você pode ver a lista completa aqui). 

Mas, afinal, o que são os boletins epidemiológicos?

Pois bem, vimos que existe a grande área da epidemiologia; dentro dessa área está a atividade da vigilância epidemiológica, que vai levantar informações sobre a saúde (e seus problemas) da população, que serão apresentadas para os formuladores de políticas públicas. Mas como essas informações são apresentadas? É aí que os boletins epidemiológicos aparecem!

Os boletins epidemiológicos são documentos publicados pelo ministério da saúde e pelos centros de vigilância das secretarias de saúde estaduais e municipais, inclusive, em muitos casos o ministério da saúde produz um boletim federal após ser informado por boletins municipais ou estaduais. Pois bem, esses documentos são utilizados para comunicar informações relevantes e qualificadas, com base técnica e científica, para auxiliar na tomada de decisão referente à saúde pública no Brasil.

Vários tipos de informações podem ser lidas em um boletim epidemiológico, como: descrições de monitoramento de potenciais patologias com possibilidade de levar a emergências de saúde pública (como aconteceu com a covid-19); análises do cenário epidemiológico de doenças ocorrentes, resultados de investigações quanto a surtos de doenças e outros temas relacionados à vigilância em saúde do Brasil, etc.

Como os boletins epidemiológicos surgiram no Brasil?

Os primeiros boletins brasileiros surgiram ainda na década de 1960, mas sem esse nome que conhecemos. Na época estava acontecendo a chamada Campanha de Erradicação da Varíola, responsável por coordenar e executar as ações de vacinação em massa contra a varíola no nosso país. O Boletim da Campanha de Erradicação da Varíola surgiu nesse momento como uma ferramenta de divulgação de dados sobre as ações da campanha.

Foi somente em 1974, com o fim da campanha, que esse boletim foi reformulado e passou a ser chamado de Boletim Epidemiológico. Entre idas e vindas, o modelo do boletim epidemiológico foi sendo atualizado de tempos em tempos, contudo, como esse documento é elaborado e como as informações dele são comunicadas não são coisas totalmente padronizadas até hoje.

Com o avanço da vigilância em saúde sobre a vigilância epidemiológica (que não desapareceu, mas sim foi absorvida pela primeira), não só se iniciou a notificação de agravos e evento de saúde pública, como também começou-se a publicar boletins epidemiológicos sobre esses agravos, consolidando informações sobre estes. Atualmente não existem somente boletins epidemiológicos de doenças! Muitos agravos e eventos de saúde pública, como suicidio e reações a vacinas, também geram seus próprios boletins epidemiológicos.

Fui olhar na minha cidade, mas não achei os boletins epidemiológicos de uma doença em específico. Por outro lado, o meu estado produz o boletim. Por que essa diferença?

Tudo vai depender do estado da doença! Se uma determinada cidade ou estado decreta emergência a partir de uma incidência X (na Dengue, por exemplo, são 300 casos por 100.000 habitantes), aí naturalmente isso vem acompanhado de boletins epidemiológicos diários, feitos pelo estado ou município que está com problema. Por outro lado, se esse limiar de casos não for atingido, as autoridades de saúde continuam a monitorar casos esporádicos, mas sem produzir boletins epidemiológicos com maior frequência. Dependendo dos casos, pode ser feito somente um boletim por ano.

Por que é importante falar sobre os boletins epidemiológicos?

Por serem documentos oficiais que trazem dados de populações de cidades, estados e do próprio país, os boletins são muito importantes para estudos populacionais e ecológicos, mostrando como uma doença se espalhou no território durante um período ou como foi a tomada de decisão política nesse mesmo período. Dessa forma, os boletins são documentos históricos, capazes de nos indicar como estava a conjuntura política, social, econômica e mesmo científica de uma época.

Contudo, no Brasil, tivemos um grande problema quanto a isso. Em 2021 houve um apagão de dados que fez com que perdêssemos o acesso a todos os boletins epidemiológicos federais (isso é, aqueles que traziam informações sobre todo o país) até 2018, retirando o acesso de pesquisadores, gestores e curiosos a mais de 40 anos de informações epidemiológicas sobre muitas doenças que ainda afligem nosso país, como a AIDS, dengue, malária, hepatite, tétano e diversas outras.

Isso foi um grande golpe para muitas pesquisas, pois (dentre outras utilidades) não é mais possível compararmos os surtos atuais de doenças com os de anos anteriores para sabermos como devemos proceder; ou mesmo se estamos piores, ou melhores. Os dados municipais e estaduais ainda estão públicos, entretanto, os dados federais (aqueles que tiveram o acesso públcio removido) eram uma forma de olhar para essa quantidade esmagadora de informações de forma muito mais consolidada, podendo avaliar o Brasil como um todo.

Ter informações sobre a nossa própria população nos ajuda muito em nos preparar contra problemas de saúde. E os boletins epidemiológicos são essenciais para se ter esse entendimento. Por exemplo, é a partir desses documentos que o ministério da saúde pode alertar sobre:

  • Surtos de doenças novas, derivadas de vírus emergentes, como foi o SARS-CoV-2 e outros vírus próprios do Brasil, por exemplo, o Mayaro e Oropouche;
  • Surtos e epidemias de doenças mais conhecidas, como sarampo, AIDS, dengue e zika;
  • Informações relacionadas a campanhas de vacinação;
  • E outras muitas informações;

Dessa forma, ao perder quatro décadas de documentos assim, o Brasil tomou um grande golpe para lidar com muitas doenças. Alguns poucos dados vez ou outra aparecem em sites que tinham cópias deles, mas ainda assim resta muito pouco do que havia antes. Conhecer nossa população e o estado da saúde dela é muito importante para conseguir lidar com problemas de saúde.

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