Em 1690, após publicar seu Ensaio acerca do Entendimento Humano, John Locke recebeu uma carta entusiasmada de um fã. Mas o autor da carta não era qualquer fã: seu nome era William Molyneux.
Apesar do sobrenome, Molyneaux era um renomado “filósofo natural” e político irlandês. Casado com uma mulher cega, o ilustre fã de Locke propôs em sua carta um curioso problema: um cego que recobrasse a visão poderia diferenciar, visualmente, formas que só conhecia pelo tato?
Eis o problema de Molyneaux em seus termos originais:
Suponha um homem, nascido cego e agora adulto, que aprendeu pelo toque a distinguir entre um cubo e uma esfera do mesmo metal e do mesmo tamanho, de modo a dizer, quando ele sente uma ou outra, qual é o cubo e qual é a esfera. Suponha então que o cubo e a esfera sejam postos sobre uma mesa e o homem cego possa agora ver. Pergunta: Se apenas por sua vista, antes de tocá-las, ele poderia agora distingui-las e dizer qual é o globo e qual é o cubo?
Na própria carta, Molyneaux já apresentou sua resposta:
Não. Pelo pensamento ele obteve a experiência de como um globo ou como uma esfera afetam seu toque. Entretanto, ele não alcançou a experiência de saber que o que afeta seu toque assim ou assado deve afetar sua visão assim ou assado…
Intrigado pelo problema proposto pelo filósofo-mor da Irlanda, Locke incluiu a questão em uma edição posterior de seu Ensaio acerca do Entendimento Humano. O pai do empirismo inglês também acrescentou sua resposta:
Eu concordo com esse pensativo gentleman [Molyneaux], de quem tenho orgulho de chamar meu amigo, em sua resposta para esse problema. Eu sou da opinião de que o homem cego, à primeira vista, não seria capaz, com certeza, de dizer qual seria o globo e qual seria o cubo, se ele apenas olhasse para eles, mesmo que ele pudesse infalivelmente nomeá-los pelo toque e certamente distingui-los pela diferença sentida em suas formas.
Depois disso, o Problema de Molyneux teve grande repercursão no mundo filosófico. Em 1709, George Berkeley chegou às mesmas conclusões dos propositores. Quarenta anos mais tarde, motivado pela questão, Denis Diderot escreveu sua Carta sobre os cegos para benefício daqueles que veem como uma crítica ao nosso conhecimento da realidade última.
O Problema de Molyneaux ainda se mantém entre as questões não-resolvidas da filosofia. Apesar dos imensos avanços nos estudos neurológicos desde o fim do século XVII, não há como dar uma reposta certa por que é quase impossível resolvê-lo empiricamente por falta de cegos que recuperam a visão instantaneamente. Segundo a literatura médica, menos de duas dezenas de pessoas ganharam a visão após um longo período de cegueira congênita nos últimos 1000 anos.
O caso mais próximo do proposto por Molyneaux é o de uma garota que recuperou a visão aos 12 anos após ser operada de catarata bilateral congênita. Ostrovsky et al. estudaram o caso e informam que a menina só pôde reconhecer visualmente os membros da família seis meses após a operação, mas levou até um ano para reconhecer objetos familiares apenas com a visão.
REFERÊNCIAS
LOCKE, John. An Essay Concerning Human Understanding, book II, chapter IX, 8. Disponível on-line em: http://www.gutenberg.org/cache/epub/10615/pg10615.html
OSTROVSKY, et al., “Vision following extended congenital blindness” [Visão após extensa cegueira congênita], Psychological Science. Vol. 17, nº. 12. Dezembro de 2006. pp. 1009-1014. Disponível em .pdf.