>Lingva Latina morta non est

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 O Latim não está morto. A língua de Ovídio, Júlio César e da Antiguidade Clássica está em franco renascimento, graças à internet e à curiosidade de jovens do mundo todo.

O Latim, há séculos considerado como língua morta, está ressuscitando graças à internet (sive interrete) e à comunidade global de latinistas. E eles não são apenas velhos saudosos dos tempos do latim do colégio ou monges fundamentalistas do Vaticano. Muitos latinófilos (ou seriam latin lovers?) são, na verdade, jovens admiradores que estão redescobrindo – e reinventando – a primeira flor do Lácio.
“Noli Fumari”: em uma estação de trem em Wallsend,
Inglaterra, uma placa bilíngue mostra que o latim está vivo.

Como o latim andava meio sumido, seu vocabulário teve que ser modernizado. Muitos termos modernos foram inventados pelos monges do Vaticano, único país que mantém o Latim como língua oficial. Entretanto, como não há uma autoridade única – nem todos, com razão, reconhecem a autoridade vaticana – há múltiplas versões para termos e nomes modernos. Alguns usam o nome original para se referir a algo, enquanto outros criam e usam formas latinizadas. Um exemplo interessante e comum é “Estados Unidos”. Alguns referem-se aos EUA em latim como United States; outros como Civitates Foederatum.

Quando se fala em invenções bem mais recentes que o latim clássico, a coisa pode ficar complicada, pois aí o consenso é difícil. Ferrovia, por exemplo, e por extensão, trem, pode acabar virando, em latim coisas tão díspares quanto Ferrivia, trenus, tramen, agmen, hemaxosticus (sic) e até mesmo Ferrovia. Na cidade, você pode entrar num trólebus ou então em um trolleycarrus, ou num coenautocinetum publicum ou, melhor, num electrolaophorum. Se você tiver dinheiro, pode comprar um carro (carrus), que também chamamos de automóvel (ou então, em latim, autocinetum, automobile ou ainda autoraedum).
Há quarenta anos, os homens chegaram à Luna num Rochete (foguete) e meio orbe (mundo) viu tudo pela televisoria ou ouviu pela radiophona (pelo rádio). Hoje, você navega na interrete usando  uma computaralia ou um ordinatralis (computador ou ordenador). Se você tiver denarium, pode acessar através do seu telephonula ingeniosa (smartphone) Evidentemente, para acessar a interrete, é preciso ter um coniuctio (uma conexão). Depois, você pode usar seu mus (mouse) para tangere (clicar) em ligamenis, nexus ou nodi (links, ou linques ou elos ou ligações; em português também é um quid pro quod).
Se você quiser, pode extrahere (baixar) emepe-tre (mp-3) de rockica musica e grave metallum (rock e heavy-metal), iazzica e modanovae (jazz e bossa nova), classica, electronica, pop musica, ou até mesmo punkica musica  (punk) e — por que não? — funkica.
TÁ, LEGAL, MAS E DAÍ?
E daí que, sendo uma língua que estava “morta” e  que está renascendo, o latim pode ser considerado uma língua internacional perfeita, pois não está ligada a nenhuma nação moderna – o Império Romano extinguiu-se há muitos séculos. Assim, politicamente falando, o latim é neutro e pode ser adotado por (quase) todo mundo. Como é uma língua natural e razoavelmente unificada, não conta com as imperfeições e falta de cultura das línguas internacionais artificiais, como o Esperanto, o Volapuk, e outras dissidentes. Há poesia, música, livros, revistas e programas de rádio e podacasts em latim.

Cuidado romanos! Asterix em latim!

Além disso, o latim já tem — e sempre teve — grande influência junto à mais internacional das comunidades, a comunidade científica. O latim é fundamental para se entender Biologia e Direito e, em menor escala, Geografia e Astronomia.
Infelizmente, não se pode dizer que o latim tenha neutralidade ideológica, pois os principais falantes do latim no mundo moderno são os clérigos da Igreja Católica. Eles, por exemplo, traduziram “humanista” como “ártium liberálium cultor” (algo como “artista liberal”, em referência aos humanistas do Renascimento e não aos humanistas seculares do mundo moderno). “Filantropia” é que foi traduzida como “Humanitas”.
O latim vaticano é (como era de se esperar) conservador e inflexível; peca muitas vezes por usar expressões com mais de uma palavra para designar coisas modernas e simples. “Playboy”, por exemplo, no entender dos vaticanistas, é o mesmo que iúvenis voluptárius, ou jovem voluptuoso. 
Regulus: o Pequeno Príncipe que fala latim.

Os críticos do uso do latim como lingua franca global sempre afirmaram que o idioma latino só é facilmente reconhecível e inteligível para os falantes das línguas neolatinas (Italiano, Francês, Espanhol, Português e Romeno) ou de línguas que sofreram uma influência considerável, como o Inglês e o Alemão ou de línguas com estrutura de desinências semelhante, como o Russo. Assim, o latim, embora politicamente
neutro, seria intrinsecamente eurocêntrico.

Isso pode até ser verdade e certamente deve ser muito difícil para os orientais, árabes, indianos ou africanos apender latim. Mas há que se levar em conta que a maioria das línguas com grande número de falantes (todas as línguas citadas, além do mandarim chinês) tem uma ou outra influência latina, o que facilita o aprendizado. O latim tem prestígio não só por nascença, mas por maioria de votos.
É muito fácil, porém, deixar o Vaticano ou a ideologia de lado mesmo quando se fala de latim (ou em latim). A maior autoridade independente é, sem dúvida, a comunidade que edita e mantém a Vicipaedia (a wikipedia latina)  que muito faz para modernizar – sem distorcer – uma língua com mais de 2700 anos de tradição.
DE LIBERA ENCYCLOPAEDIA

Um dos criadores da Vici é Josh Rocchio, americano, estudante universitário da University of Maryland. Fã de Ovídio e baterista nas horas vagas, ele diz que ficou “encantado com a estrutura e simplicidade do latim e como se pode expressar conceitos complexos em poucas palavras”.

Como qualquer cara de 28 anos, ele usa jeans e camiseta e não toga. Segundo Rocchio, o projeto começou como um meio de praticar o latim que aprendeu durante um curso gratutito de latim que ganhou enquanto estudava matemática. A paixão foi tão grande e arrebatadora que acabou fazendo-o abandonar números e fórmulas para estudar Latim e Grego Clássicos.
Latinistas profissionais aprovam a iniciativa. Mesmo que artigos escritos por novatos sejam cheios de errata, “o que é bom é realmente muito bom”, segundo Robert Gurval, chefe do departamento de Literatura Clássica da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
Eis um exemplo de artigo da Vicipaedia considerado bom. Um excerto do texto sobre Harry Potter:
Harrius Potter, aut Henricus Figulus (Anglice: Harry Potter) est persona ficta et actor princeps in “mythistoria” fabulosa, creatus ab Anglica scriptrice Ioanna Rowling (cui fabulae auctrici nomen est J. K. Rowling), cuius acta et facinora narrantur in librorum serie eodem nomine appellata. Seriei primus liber anno 1997 editus est. Usque ad 2007, septem libri editi sunt.
Dá pra entender perfeitamente e sem muito esforço que Harry Potter é o personagem principal de uma história fabulosa criada por J.K. Rowling, escritora inglesa. O primeiro livro foi editado em 1997 e até 2007 sete livros foram lançados.

Tela inicial e cena da versão latina de Zelda II

Aliás, também há diversas versões latinas de ícones da cultura moderna: a saga de Henricus Figulus, o Pequeno Príncipe, Asterix e até o videoludum Zelda II foram traduzidos para a língua de Virgilio.

NEXUS (para aprender e gastar o seu latim):
  • Curso de Latim — apostila de 98 páginas disponível no scribd; pode ser baixada gratuitamente.
  • google/la — o maior buscador do mundo, em latim;
  • Vicipaedia — versão latina da wikipedia; como é uma inciativa libre, onde o consenso é fundamental, é uma boa fonte de textos e vocabulário moderno;

  • Ephemeris — notícias em latim; a página peca apenas por ter um visual que já deve ter uns 10 anos sem mudanças;
  • Audi Nuntios Latinos per interretepodcasts hebdomadários de notícias em latim feitos por uma rádio finlandesa (com textos);
  • Vocabula computatralia — vocabulário de informática; dicionário bilíngue inglês-latim feto por uma universitária alemã (isso é que globalização!);
  • Glossarium Anglico-Latinum — dicionário inglês-latim; útil para quem já sabe inglês;
  • Adagia — página com provérbios em latim;
  • Lexicon Recentis Latinitatis, sive Parvun Verborum Novatorum Lexicum — Vocabulário oficial de termos modernos de Latim do Vaticano;
  • Regulus — o Pequeno Príncipe em Latim (infelizmente, só na Amazon. Mas dá pra ver algumas páginas)
  • Zelda II – Expeditio Lincihack (cantherius?) para jogar o clássico Zelda em uma língua igualmente clássica.
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    • Quattuor pueri Liverpolii | hypercubic

      […] O uso de músicas e outras artes (como filmes, por exemplo) é comum no ensino de uma língua estrangeira em todo o mundo. Exceto quando essa língua é estrangeira no mundo inteiro e não tem uma cultura pop. Esse é o caso do latim, que pode estar sumido mas não está morto. […]

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