Vulcano e os irmãos perdidos de Mercúrio (parte 1)

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Impressão artística de um pequeno (e hipotético) asteroide vulcaniano.

O século XIX foi pródigo na descoberta de asteróides, cometas e planetas. O primeiro grande evento astronômico dos 1800s foi a descoberta de Ceres, então considerado um planeta, logo no dia 1º. de janeiro de 1801. Décadas mais tarde, um matemático francês encontrou Netuno nos confins do Sistema Solar. Seu nome era Urbain Le Verrier e ele passou a vida acreditando ter descoberto um outro planeta, Vulcano.

Mercúrio sempre teve uma órbita um pouco esquisita para os padrões da gravidade newtoniana. Em 1840, o diretor do Observatório de Paris, François Arago (1786-1853), apresentou esse problema a Urbain Le Verrier (1811-1877). Três anos mais tarde, o matemático francês apresentou uma teoria, que seria testada, sem sucesso, durante o trânsito de Mercúrio de 1843.

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Urbain Le Verrier

Embora na mesma época estivesse muito ocupado descobrindo Netuno, Le Verrier não desistiu do problema e passou a década e meia seguinte fazendo uma rigorosa série de medições de Mercúrio e observações de 14 trânsitos. O resultado desse estudo foi publicado em 1859 e demonstrava que o periélio de Mercúrio avançava um pouco a cada órbita, num fenômeno chamado precessão do periélio. Isso não era novidade; o problema é que a discrepância entre o valor estimado e o valor observado era de 43 arcossegundos por século. Foi então que o matemático francês postulou que essa disparidade poderia ser causada pela presença de um pequeno planeta no interior da órbita mercuriana. Le Verrier batizou-o de Vulcano.

Em 1846, Le Verrier já havia sido muito bem-sucedido na descoberta de Netuno usando seus movimentos friamente calculados cálculos. Assim, sua teoria foi entusiasticamente recebida, tanto por astrônomos profissionais quanto por amadores. Estava aberta a temporada de caça a Vulcano.

Ainda em dezembro de 1859, o matemático francês recebeu uma carta de um médico e astrônomo amador, Modeste Lescarbault, da vila de Orgères-en-Beauce, não muito longe de Paris. Le Verrier fez uma visita-surpresa ao médico-astrônomo e soube que ele havia visto um pequeno ponto negro na superfície do Sol em 26 de março de 1859. Tendo observado o trânsito de Mercúrio de 1845, Lescarbault supôs estar diante de outro trânsito, só que de um objeto desconhecido. Improvisando com um velho relógio e o pulso de um paciente(!!), o Dr. Lescarbault estimou a duração do trânsito em 1h17min09seg.

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Observatório do Dr. Lescarbault.

Embora a mancha vista pelo médico de província pudesse ser uma mancha solar e sua medição fosse tosca até para os padrões do século XIX, Le Verrier aceitou alegremente essa evidência e, em 2 de janeiro de 1860, anunciou a descoberta de Vulcano na Academia de Ciências da França.

Com base na observação de Lescarbault, Le Verrier calculou a órbita de Vulcano: o planeta deveria estar a 21 milhões de km do Sol, numa órbita quase circular. Seu período de revolução seria de 19 dias e 17 horas, e a órbita teria exatos 12 graus e 10 minutos de inclinação em relação a eclíptica.

Dada a credibilidade e a fama de Le Verrier, começaram a chover relatos de trânsitos inexplicados. Alguns amadores clamavam (ou clamariam) ter visto o novo planetinha anos antes, mas não sabiam explicar como ou quando. Por exemplo, o amador inglês F. A. R. Russell alegava ter visto um trânsito intra-mercuriano às oito da manhã de 29 de janeiro de 1860 — e só. Muitos anos mais tarde, o americano Richard Covington diria ter visto um ponto bem-definido atravessando o disco solar por volta de 1860.

Curiosamente, nenhum trânsito de Vulcano foi visto em 1861 — o que não fazia sentido, dado a brevidade de sua translação. No ano seguinte, em 22 de março, um certo Mr. Lummis, de Manchester, Inglaterra, teria visto o evento junto com um colega.

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Com base nessa outra observação, dois astrônomos, Benjamin Valz (1787-1867) e Rudolphe Radau (1835-1911), calcularam independentemente o período orbital. Para Valz, seriam 17 dias e 13 horas. Para Radau, 19 dias e 22 horas. Sendo que nada disso combina com os cálculos do próprio Le Verrier!

Essas discrepâncias na suposta órbita de Vulcano eram cada vez mais comuns. Praticamente cada um dava um período. Alguns até propunham dois planetas intra-mercurianos. Como mais complicava do que simplificava o sistema solar e por nunca ter sido observado de maneira convincente, Vulcano foi sendo lentamente esquecido pela comunidade científica. Em 1877, o planeta morreu de vez junto com Le Verrier, o homem que jurava tê-lo descoberto.

A órbita de Mercúrio só seria explicada com exatidão pela teoria geral da relatividade, de Einstein, em 1915. Embora ainda não tenham sido detectados, é possível que haja alguns asteróides na zona vulcanoide. Mas isso não quer dizer que a busca pelo planeta Vulcano acabou: ele pode estar entre os irmãos perdidos de Mercúrio.

(continua)

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