Espionagem antibacteriana

Em cada pontinho deste meio de cultura foi aplicada uma gotinha de uma substância diferente. Os dois pontos maiores identificam os novos antibióticos, produzidos sem uma bactéria sequer. [Imagem: Sean Brady/divulgação]

Fábricas de antibióticos microscópicas existem por todo canto, mas não é fácil fazê-las produzir para nós. Que tal tentar copiar a receita?

“Agente infiltrado passa por diversas empresas e rouba segredos industriais.” Se as bactérias tivessem jornal, essa poderia ser uma manchete para descrever o trabalho dos pesquisadores da Rockfeller University que acabam de descobrir mais dois antibióticos. Em tempos de crescente resistência microbiana a essas substâncias, essa é uma excelente notícia.

Para quem não sabe, as bactérias produzem antibióticos naturalmente, para se defender de outras bactérias. Mas está cada vez mais difícil extrair essas micro armas químicas e usá-las a nosso favor. Embora não faltem bactérias produtoras de antibióticos por aí, elas nem sempre se adaptam às condições dos laboratório. Muitas, mesmo depois de “domesticadas”, não nos revelam seus segredos militares.

Sair torturando bactérias está fora de questão — não é muito fácil e, mesmo que fosse, provavelmente também não daria em nada. Uma abordagem mais eficaz está no uso da inteligência — ou, se preferir, espionagem. Como todo medicamento, os antibióticos têm uma receita. As bactérias não têm cofres-fortes para guardar suas fórmulas e, em vez disso, usam o código genético.

Se pudéssesmos encontrar a receita dos antibióticos nas letras do DNA, poderíamos sintetizá-los. Foi esse o insight dos cientistas liderados por Sean Brady, chefe do Laboratório de Micromoléculas Geneticamente Codificadas da Rockfeller. Genomas de bactérias — especialmente daquelas que vivem no nosso corpo — já estão disponíveis em bancos de dados genéticos.

Assim, Brady et. al. selecionaram algumas centenas de genomas do microbioma humano disponíveis em bancos de dados públicos. Com o auxílio de um software especializado, esses genomas foram varridos em busca de conjuntos de genes com potencial para produzir os chamados peptídeos não-ribossômicos. Esses tipos de peptídeos são a base química de muitos antibióticos. Os genes que os codificam, portanto, funcionam como uma receita para fabricar esse medicamento. Outro programa foi utilizado para determinar a estrutura molecular que seria produzida a partir desses conjuntos de genes.

Essa abordagem resultou em 57 conjuntos de genes promissores, dos quais foram escolhidos 30 para uma pesquisa mais aprofundada. Com base nessas 30 receitas, e a partir da técnica de síntese de peptídeos de fase sólida, foram fabricadas 25 substâncias químicas diferentes. Ao expor esses compostos sobre patógenos humanos, os pesquisadores identificaram dois antibióticos bastante similares, que foram batizados de humimicina A e humimicina B.

humomicina-A
((S)-3-hydroxytetradecanoyl)-L-tyrosyl-L-seryl-D-tyrosyl-L-phenylalanyl-D-threonyl-L-valyl-L-valine. Ou humimicina A para os íntimos. [Chu et. al., 2016]

Ambas as substâncias foram criadas a partir do material genético de uma família de bactérias, as Rhondococcus. Quando cultivadas em laboratório de maneira tradicional, as Rhondococcus nunca produziram nada parecido com as humimicinas. De fato, esses antibióticos foram feitos sem o cultivo de uma mísera bactéria sequer.

Mas será que funcionam? Testes subsequentes determinaram que sim, as humimicinas funcionam, especialmente contra os Staphylococcus e Streptococcus, bactérias que causam infecções perigosas em humanos e já estão desenvolvendo resistência aos antibióticos. Os testes indicaram também o mecanismo de ação das huminicinas: elas bloqueiam uma enzima responsável pela construção da parede celular das bactérias. Sem paredes, sem bactérias.

Uma classe bastante usada de antibióticos — os beta-lactâmicos — funciona de maneira parecida, mas está perdendo a eficácia. Surpreendentemente, as humimicinas podem ser usadas para tapear as bactérias mais resistentes, reforçando os beta-lactâmicos que já eram reconhecidos pelos micróbios.

Em uma experiência in-vitro, Staphylococcus resistentes a beta-lactâmicos receberam doses de humimicina A junto com um antibiótico daquela classe — e morreram. Isso aconteceu mesmo quando a humimicina A em si tinha pouco efeito. “Foi como pegar uma mangueira e furá-la em dois pontos”, esclarece Brady num comunicado publicado pelo Phys.org. Mesmo que em si nenhum dos furos corte o fluxo na saída, “eventualmente a água para de sair”.

Brady e seus colegas também testaram a combinação de beta-lactâmico + humimicina em ratos infectados com Staphylococcus aureus, micro-organismo que causa infecções hospitalares resistentes aos tratamentos existentes. Os roedores tratados com esse combo se recuperaram melhor comparados com os que receberam apenas uma ou outra droga. Os resultados de todas essas pesquisas foram publicados online em 17/10 na Nature Chemical Biology.

Essa nova abordagem poderá ser usada para minerar os genomas bacterianos em busca de outras moléculas que nos sejam úteis. Além das bactérias presentes no nosso microbioma, pode haver antibióticos ocultos em milhares de espécies, muitas das quais ainda nem sequer foram descobertas ou sequenciadas. Na guerra contra as bactérias, o roubo de informações nos dará uma boa vantagem.

Referência

rb2_large_gray25John Chu et al. Discovery of MRSA active antibiotics using primary sequence from the human microbiome [Descoberta de antibitóticos ativos contra SARM usando sequência primária do microbioma humano]. Nature Chemical Biology, n. 12, pp. 1004–1006 (2016) DOI:10.1038/nchembio.2207

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