Algumas dessas condições cerebrais são tão raras que, mesmo um século após sua descoberta, permanecem pouco estudadas pela ciência
Por Christian Jarrett, no Research Digest of British Psycological Society. Tradução de Renato Pincelli.
Estudar pessoas que têm danos ou doenças cerebrais tem sido de extrema importância para o progresso da psicologia. É uma abordagem semelhante à engenharia reversa: estudamos como as coisas dão errado quando regiões particulares do cérebro são comprometidas para obter pistas úteis sobre como essas regiões contribuem normalmente para uma função mental saudável.
Como resultado, algumas condições neuropsicológicas como a afasia de Broca (com seus déficits de fala), a prosopagnosia (dificuldade de reconhecer faces, também conhecida pela equivocada expressão “cegueira de faces”) e a síndrome da mão alienígena (na qual um membro parece agir por vontade própria) tornaram-se bastante conhecidas — pelo menos nos círculos psicológicos — e amplamente estudadas. Entretanto, outras falhas cerebrais são virtualmente desconhecidas, apesar de sua importância para o nosso entendimento do cérebro.
Recentemente, o neuropsicólogo Alfredo Ardila, da Florida International University, publicou na revista Psychology and Neuroscience um panorama de quatro dessas condições pouco conhecidas, “tão raras que não são nem mencionadas nos livros-texto de neuropsicologia básica”: Acromatopsia Central, Síndrome de Bálint, Surdez de Palavras Puras e Afasia da Área Suplementar. Esse artigo complementa outro paper que ele publicou no ano passado [na Archives of Clinical Neuropsychology], cobrindo outras quatro raras porém importantes síndromes neuropsicológicas: Somatoparafrenia, Acinetopsia, Paramnésias Reduplicativas e Autotopagnosia.
“Na neuropsicologia (…) existem algumas síndromes incomuns que são encontradas muito esporadicamente”, escreve Ardila. “Mas sua raridade não diminui a importância que têm no entendimento fundamental sobre a organização cerebral da cognição bem como na análise clínica de pacientes com patologias cerebrais.” Eis uma síntese [em ordem alfabética] do que Ardila diz sobre essas raras condições e suas respectivas importâncias:
Acinetopsia
Imagine que alguém tivesse apertado o botão de pause da sua visão de mundo. Deve ser mais ou menos assim que se sentem os pacientes com acinetopsia, que são incapazes de enxergar movimento (mas podem perceber os sons dos movimentos). Esta síndrome está associada a danos numa região específica do córtex visual do cérebro (área V5) e pode ser induzida em voluntários saudáveis através do uso de estimulação magnética transcraniana para simular uma “lesão virtual” naquela região. A acinetopsia [do grego a + kinetos + opsia = falta de visão de movimentos] é extremamente rara mas pode estar associada ao fenômeno Zeitraffer, no qual os pacientes percebem a velocidade dos objetos em movimento de maneira bastante desacelerada. “A descrição da acinetopsia”, segundo Ardila, “representa um passo crucial na compreensão de como a percepção do movimento se organiza no cérebro”.
Acromatopsia Central
É a perda da habilidade de perceber cores, causada inteiramente por danos a partes do cérebro, normalmente situadas nos lobos occipital ou temporal (localizados na lateral e na traseira do crânio) e não por qualquer defeito nos olhos. Pode ocorrer em conjunto com outras condições como a prosopagnosia, mas é importante ressaltar que se mantém a capacidade de imaginar as cores. “Evidentemente essa síndrome é crucial para entender a organização cerebral da percepção visual, particularmente da percepção das cores”, escreveu Ardila. [Outro nome de origem grega: a + chromatos + opsia = ausência de visão a cores]
Afasia da Área Motora Suplementar
Nessa condição, os pacientes tem um problema específico: falar espontaneamente. Eles podem repetir o que lhes pedem e dar nomes às coisas quando são induzidos, mas não parecem capazes de começar a falar sozinhos. A região do cérebro afetada — a Área Motora Suplementar (AMS) — é responsável pela preparação e iniciação de movimentos, especialmente de movimentos sequenciais e acredita-se que essa forma de afasia deve-se a problemas no planejamento dos movimentos necessários para falar espontaneamente e não a um problema linguístico per se. A compreensão da linguagem fica praticamente intacta. “A Afasia da AMS”, esclarece Ardila, “ilustra a complexa sobreposição entre linguagem e processos motores e tem contribuído positivamente para aprofundar nosso entendimento sobre a representação de processos linguísticos.”
Autotopagnosia
Esta é a incapacidade de localizar e identificar partes do próprio corpo mesmo que se mantenha a capacidade de localizar e nomear partes de objetos, plantas e animais. Essa condição [cujo nome vem do grego autos + topos + agnosia = desconhecimento do próprio espaço] pode ser vista como um desajuste na atualização do esquema corporal — a representação cerebral do corpo e suas relações espaciais — combinada com uma dificuldade de nomeação, o que sugere que há envolvimento de algum déficit linguístico. A condição é normalmente associada a danos na parte posterior do córtex parietal (próximo ao topo da cabeça) do hemisfério esquerdo. “Embora a autotopagnosia tenha sido descrita há mais de um século”, relata Ardila, “as pesquisas têm sido limitadas”.
Paramnésias Reduplicativas
Essa extraordinária condição leva os pacientes a acreditar que um lugar em particular — como sua casa ou sua própria cidade — foi duplicado e se localiza em dois pontos distintos ao mesmo tempo. Mais raramente, os pacientes podem expressar a mesma crença sobre uma pessoa, um objeto ou uma parte do corpo. As diferentes formas de paramnésia reduplicativa têm algumas semelhanças com outras síndromes delusionais ligadas à identidade, como a Síndrome de Capgras, na qual o paciente acredita que um ou mais de seus parentes e amigos foi substituído por impostores; a Síndrome de Frégoli, crença de que alguém, geralmente um stalker, está constantemente mudando de aparência; e a intermetamorfose, crença de que uma pessoa se transformou em outra. As evidências indicam que as paramnésias para lugares são associadas a danos no hemisfério direito do cérebro. Dada essa origem em dano orgânico, Ardila propõe que as outras síndromes delusionais de identidade devem ter causas psicológicas.
Síndrome de Bálint
Também descrita há mais de um século [pelo neurologista húngaro Rudolph Bálint (1874-1929)], esta condição costuma fazer as pessoas agirem com se fossem cegas. Associada a danos ou doenças nos lobos occipital e parietal, essa síndrome é realmente complexa e envolve três sub-síndromes: a simultagnosia é a incapacidade de perceber uma cena por inteiro, mesmo sendo capaz de enxergar seus elementos individuais; a ataxia óptica é um problema em fitar objetos específicos, ainda que o paciente não tenha problemas musculares ou motores per se; e a apraxia da vista descreve a maneira como o paciente luta para mover voluntariamente os olhos ou fixá-los num determinado objeto. Ardila diz que “essa é uma das síndromes clínicas que mais contribuiu para o entendimento das percepções visual e espacial.”
Somatoparafrenia
Os pacientes com essa síndrome, descrita pela primeira vez em 1942, negam possuir um ou mais membros do lado do corpo oposto ao qual sofreram danos cerebrais. A síndrome tende a co-ocorrer com outra, conhecida como anognosia, que é a negação de uma deficiência, como a paralisia de um membro. Uma versão mais extrema da Somatoparafrenia [do gr. Somatos + para + phrenein = loucura do lado do corpo] é a Hemiassomatognosia, na qual há ausência de consciência dos próprios membros [de fato o nome significa desconhecimento de metade do corpo em grego]. Curiosamente, os pacientes somatoparafrênicos podem reconhecer um membro afetado como parte do seu corpo se ele for visto através de um espelho. Ardila considera que essa condição, associada a lesões em diversas áreas do cérebro, é pouco conhecida e pode ser em parte psiquiátrica (um tipo de ilusão) e em parte neurológica. “Nesse aspecto,” conclui, “a análise da somatoparafrenia pode contribuir para aprofundar nosso entendimento sobre as bases neurológicas das psicoses”.
Surdez para Palavras Puras
Portadores desta condição apresentam um problema profundo de compreender a linguagem falada, mesmo que suas capacidades de ler e falar continuem intactas. Os pacientes descrevem a palavra falada como um sussurro que mal dá para ouvir ou como se fosse uma língua estrangeira. Diferente de outras condições que afetam a compreensão da linguagem — como a afasia de Wernicke — a Surdez para Palavras Puras é considerada uma deficiência puramente perceptiva e é frequentemente associada a lesões nas regiões de processamento auditivo do cérebro.
Referências
ARDILA, Alfredo. Some Unusual Neuropsychological Syndromes: Somatoparaphrenia, Akinetopsia, Reduplicative Paramnesia, Autotopagnosia [Algumas Síndromes Neuropsicológicas Incomuns: Somatoparafrenia, Acinetopsia, Pamnésias Reduplicativas, Autotopagnosia]. Archives of Clinical Neuropsychology, Volume 31, Issue 5, 1 August 2016, Pages 456–464, https://doi.org/10.1093/arclin/acw021