O clima de Game of Thrones

Pesquisadores britânicos fizeram uma simulação computacional do clima do mundo criado por George R. R. Martin. Ao contrário do que pode parecer, isso é bom para a ciência.

Embora pareçam desnecessárias num campo rigoroso e factual como o da pesquisa científica, algumas ficções podem ser úteis. De certo modo uma hipótese ainda não comprovada é um tipo de ficção e tirá-la desse status especulativo é uma grande mola para a pesquisa científica. Também não faltam exemplos de avanços científicos motivados pela ficção puramente literária: as obras de Júlio Verne escritas no século XIX inspiraram gerações de cientistas a buscar meios de concretizar um submarino de alcance global ou uma viagem á Lua (ainda estamos trabalhando na expedição ao interior do planeta). Ficções mais recentes  — e mais fantásticas que científicas — como Game of Thrones também podem dar início a pesquisas úteis.

Uma das principais características do mundo da obra de George R. R. Martin é o seu clima, com suas estações ao mesmo tempo longas e imprevisíveis. Mas será possível haver um planeta de verdade com um clima desse jeito? Isso é fisicamente possível? Para descobrir isso, pesquisadores das Universidades de Bristol, Cardiff e Southampton (todas no Reino Unido) usaram uma simulação computacional poderosa para explorar o clima do mundo onde vivem Danaerys e seus dragões.

Na Terra, modelos climatológicos feitos por computador não são novidade e já nos ajudam a compreender melhor a natureza e os efeitos das mudanças climáticas que estão sendo registradas — além, é claro, de facilitar a previsão do tempo. Futuramente, essa mesma ferramenta poderá ser aplicada para estudarmos o clima de mundos parecidos mas não idênticos ao nosso. Universo afora, mundos assim abundam — mas ainda temos dados insuficientes para simular seus climas. Enquanto o clima de mundos reais permanecem obscuros, que tal treinar com a investigação de um mundo ficcional?

Para começar, os cientistas britânicos emularam um mundo com as mesmas características que se vê nos livros e na série de TV: os continentes estão dispostos do mesmo modo como aparecem nos mapas ficcionais, o que permite obter variáveis importantes como a diferença entre cobertura terrestre e oceânica. Fatores como o relevo — do qual também há vários indícios nas obras — podem influenciar a circulação de ventos e, dessa forma, o clima. Na falta de detalhes astronômicos mais precisos, como o raio do planeta de Jon Snow, sua inclinação e a intensidade de seu sol, foram usados os mesmos parâmetros de “um suposto mundo ‘real’ conhecido como Terra.” Com base em tudo isso e nas simulações realizadas, os cientistas chegaram às seguintes conclusões sobre o clima de Game of Thrones:

  • A Muralha, que protege Westeros dos Gigantes de Gelo, tem um inverno semelhante ao da Lapônia, no extremo norte da região nórdica do nosso planeta.
  • O bastião dos Lannisters, o Rochedo Casterly, tem um tempo similar ao observado na latitude de Houston, Texas ou Changsha, na China.
  • Padrões de ventos explicam a predominância da Frota de Ferro nos mares, as rotas comerciais entre Westeros e as Cidades Livres ao redor do Mar Estreito e mesmo os planos de ataque das hordas de dragões vindas do continente de Essos.
  • Por último, mas não menos importante, revelam-se os locais onde os Gigantes de Gelo hibernam durante o verão.

Como não tratam de um mundo de existência real e comprovada, os resultados dessas simulações não puderam ser publicados numa revista científica. Mesmo assim, os cientistas descreveram suas descobertas num pseudo-artigo científico assinado por um tal de Samwell Tarly, que estaria estudando para se tornar um Maestro na Velhavila de Westeros (cidade que aliás teria um clima monçônico). O paper imaginário saiu num periódico igualmente ficcional, a Philosophical Transactions of the Royal Society of King’s Landing. Disponibilizado no site da Univ. de Bristol, o paper conta com mapas e gráficos com dados como pressão do ar e ventos — e pode até ser lido em Dothraki e Alto Valíriano, línguas do mundo que retrata.

Para explicar as estações estendidas de seu mundo, Samwell demonstra que ele tem um esquema diferente em seu eixo de rotação, que balança de tal modo que o mesmo hemisfério pode ficar voltado para o sol por longos períodos de tempo. Em seu modelo, ele também afirma qual seria a intensidade do aquecimento global se o índice de gases de efeito-estufa — liberados tanto pelas emissões de metano dos dragões quanto pelo gás carbônico de seus incêndios colossais. Tudo indica que, naquele planeta, haveria um aumento de 2,1º. C na temperatura global média caso a concentração de CO2 dobrasse. Isso, por sua vez, poderia levar a um aumento do nível dos mares capaz de botar cidades como Porto Real debaixo d’água.

Legal mas uma pesquisa ficcional dessas não seria um desperdício de tempo e dinheiro? Na verdade não. Para o Prof. Dan Lunt, da Escola de Ciências Geográficas de Bristol, a pesquisa se justifica porque “os modelos climáticos são baseados em processos científicos fundamentais, capazes não apenas de simular o clima da Terra moderna mas que podem ser facilmente adaptados a qualquer planeta, real ou imaginário, contanto que suas características como posições continentais, altitudes e profundidades oceânicas sejam conhecidas.”

Da mesma forma que simulações de voos ficcionais nos garantem pilotos de aviação mais bem preparados para lidar com situações extremas, uma pesquisa como essa é útil na medida em que permite aos pesquisadores treinar suas capacidades de modelagem e interpretação de dados climatológicos. Mesmo que não pareçam imediatamente práticas, essas habilidades podem ser mais tarde usadas em pesquisas para entender melhor tanto o passado quanto o futuro do clima da Terra. Ou mesmo de mundos tão estranhos e diferentes como os da ficção, mas que existem e podem ser estudados caso venham a ser descobertos.

Ainda que nada disso se realize, já terá valido a pena pela diversão. Os climatologistas, afinal, não vão ter uma vida muito fácil estudando o clima em mutação da Terra. Na pior das hipóteses, a climatologia de Games of Thrones pode render aos pesquisadores britânicos um merecido Prêmio IgNobel.

Referência

rb2_large_gray25TARLY, Samwell [LUNT, Dan et. al]. The Climate of the world of Game of Thrones [O clima do mundo de Game of Thrones]. Disponível em: https://www.paleo.bristol.ac.uk/~ggdjl/westeros/game_thrones_1.0.pdf

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  • Joseph Diniz

    E o tempo todo eu fiquei desejando que um astrônomo encontrasse um planeta com esse tipo de rotação/translação.

    • Renato Pincelli

      Dada a vastidão do Universo, é bem possível que tal mundo exista em algum lugar -- se ele tem dragões e gigantes de gelo, é outra história.

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