Aplicado a átomos de ferro e estanho, um padrão tradicional de artesanato japonês pode nos levar à supercondutividade e à computação quântica
No Japão antigo, a palha — de arroz ou de bambu — era matéria-prima onipresente na fabricação dos mais diversos objetos: chapéus, cestos, cordas, biombos. Ao longo dos séculos, os artesãos nipônicos desenvolveram diferentes técnicas de entrelaçamento para cada uma das múltiplas aplicações da palha. Uma dessas técnicas, usada na montagem de cestos de bambu, consistia no entrelaçamento das tiras em um padrão que misturava triângulos e hexágonos. Notável pelo alto grau de simetria, esse é o chamado padrão kagome [do japonês kago = cesto + me = olho].
Esse olho-de-cesto, por assim dizer, não é exclusividade dos japoneses. O mesmo padrão foi redescoberto várias vezes em diferentes culturas. Na arte islâmica, uma variante do padrão foi usada como decoração. No século XVII, Kepler descreveu suas propriedades matemáticas em sua Harmonia dos Mundos. É possível até que você já tenha visto o kagome em algum móvel de vime na casa da vovó. Diferentes nomes foram usados para descrever essa estrutura — os matemáticos a conhecem como padrão tri-hexagonal ou hexadeltilho — mas o nome que pegou foi kagome mesmo, proposto pelo físico japonês Kodi Husimi (1909-2008) no começo dos anos 1950.
Como outros físicos, Husimi notou que o kagome ocorria naturalmente em alguns minerais e cristais, como as jarositas. Em baixas temperaturas, esses cristais apresentam propriedades magnéticas tão incomuns quanto fascinantes. Desde então, os cientistas vêm tentando compreender e reproduzir artificialmente os efeitos gerados pelos cristais “kagômicos”.
Teoricamente, um kagome formado por átomos metálicos teria propriedades eletrônicas igualmente exóticas, como o efeito Hall quântico (EHQ). O EHQ acontece quando os elétrons que se movem num material bidimensional são quantizados e passam a apresentar propriedades topológicas. Nesse caso, formam-se trajetórias circulares (ou vórtices) ao redor das quais o fluxo eletrônico passa sem dissipação de energia. Seria, portanto, um meio de alcançar o santo graal da ciência dos materiais — a supercondutividade. Ao mesmo tempo, esses vórtices poderiam servir como qubits, os bits das computação quântica. Uma explicação mais detalhada (e um tanto monótona) do EHQ pode ser vista neste vídeo (em inglês).
Nos últimos anos, os cientistas vêm procurando algum material que apresente o EHQ. Estruturas cristalinas com padrões regulares vêm se mostrando promissoras mas a maioria depende da aplicação de intensos campos magnéticos produzidos em laboratório — geralmente 1 milhão de vezes mais intensos que o campo magnético terrestre — ou de resfriamento a temperaturas próximas ao zero absoluto para alcançar o EHQ. “A comunidade científica percebeu que seria mais simples criar o sistema a partir de algo magnético”, explica ao Phys.org Joseph Checkelsky, professor-assistente de física do MIT. “A partir disso, o magnetismo inerente do sistema poderia sustentar esse comportamento.”
Depois de voltar de uma temporada como professor-visitante na Universidade de Tóquio, Checkelsky começou a procurar alguma forma de aplicar esse magnetismo intrínseco. Para isso, ele recorreu a pesquisadores do MIT, da Universidade Harvard e do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley (todos nos EUA). Uma sugestão de Linda Ye, uma orientanda de Checkelsky, foi fundamental.
Trabalhos anteriores indicavam a necessidade de explorar as propriedades de estruturas kagome. Sabendo que o ferro tem propriedades magnéticas, Ye propôs uma mistura de ferro e estanho para fabricar cristais. Depois de pulverizar os dois elementos, ela aqueceu a mistura num forno a 750º. C. — Ye também sabia que essa é a temperatura em que os átomos de ferro e estanho formam um padrão kagome. Recém-tirados do forno, os cristais foram mergulhados num balde de gelo, o que permitiu que o padrão kagome se solidificasse, mantendo-se estável em temperatura ambiente.
Mas será que os pequenos cristais — de escala milimétrica — formados assim tinham mesmo uma estrutura kagome? Para confirmar isso, amostras foram enviadas aos laboratórios de Harvard, onde observações de microscopia eletrônica confirmaram que os átomos de ferro e estanho estavam organizados em camadas semelhantes ao kagome. Nesse artesanato atômico, os átomos de ferro (Fe) ficam nas pontas dos triângulos enquanto o átomo de estanho (Sn) ocupa o centro do vazio criado pelo hexágono.
Para explorar as propriedades eletrônicas desse kagome de Fe-Sn, Checkelsky e seus colaboradores recorreram a um outro efeito quântico, o fotoelétrico. Presente em aplicações corriqueiras como um controle-remoto que muda o canal de uma TV, o efeito fotoelétrico acontece quando um intenso feixe de luz atinge um cristal metálico e desloca seus elétrons. Uma vez deslocados, esses elétrons ou fotoelétrons podem ser detectados de outras formas e usados para criar um mapa do fluxo eletrônico perturbado.
Quem conduziu os experimentos fotoelétricos foi outro orientando do prof. Checkelsky, Min-Gu Kang. No Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, Kang pôde confirmar que, apesar da estrutura tridimensional dos cristais feitos por Ye, seus elétrons se comportavam de modo bidimensional. Assim, o EHQ pode se formar nesse cristal recém-criado. “Os elétrons nesse material magnético comportavam-se como partículas de Dirac massivas”, explica Kang ao Phys.org. Esse comportamento “havia sido previsto há muito tempo, mas nunca havia sido observado em sistemas assim.”
Essa caracterização do kagome metálico e suas propriedades foi feita por Checkelsky, Ye, Kang e seus colegas em artigo recém-publicado na revista Nature. A equipe busca, agora, meios de sintetizar e estabilizar outras estruturas kagome-metálicas e explorar possíveis aplicações, como a transmissão de eletricidade sem perda de energia e o uso dos cristais como base para a fabricação de chips quânticos. Se tudo der certo, é possível que um dia o kagome volte a ser tão onipresente quanto já foi no Japão — mas dessa vez em arranjos atômicos.
Referência
YE, Linda et. al. Massive Dirac fermions in a ferromagnetic kagome metal [Férmions de Dirac massivos em um metal kagome ferromagnético]. Nature (2018). nature.com/articles/doi:10.1038/nature25987