O que andei vendo no Netflix em abril

A busca por testemunhas de um crime de meio século, o arrependimento do escritor de um manual anarquista e uma viagem pelas sensações olfativas

witness

The Witness [89 min. | 2015] — Numa madrugada fria de março de 1964, uma mulher foi esfaqueada num estacionamento em Nova York. Dezenas de testemunhas viram o ataque, mas ninguém chamou a polícia nem resgatou a moça ferida. O nome dela era Kitty Genovese e foi sua morte que levou à adoção do sistema 911 de chamadas de emergência. Apesar da notoriedade, o caso jamais foi inteiramente esclarecido. O assassino, Winston Moseley, foi preso cinco dias depois do crime. Condenado à prisão perpétua, ele continua preso. Não foi ele, porém, quem perturbou a vida de Bill Genovese, irmão de Kitty; foi a indiferença das testemunhas. O assassinato teve um grande impacto em sua família, mas Bill foi claramente o mais afetado: enquanto todos os parentes decidiram enterrar o assunto, ele nunca deixou de fazer perguntas.

Dirigido por James Solomon, este documentário registra dez anos de investigações feitas por Bill para descobrir, entre outras coisas: se realmente foram 38 as testemunhas do crime; se dentre essas, nenhuma reagiu no sentido de ajudar Kitty e se houve distorções na cobertura midiática do caso, que teve repercussão nacional. Mais do que descobrir sobre os minutos finais da irmã, Bill vai encontrar uma face de Kitty que nunca conheceu. Sua busca, amparada por recortes de jornais, transcrições dos depoimentos das testemunhas e do julgamento e inúmeras entrevistas, revela-se obsessiva a ponto de causar perturbações na família e momentos de autoquestionamento. Veterano do Vietnã — onde perdeu as pernas por causa de uma mina —, Bill tem de enfrentar não apenas a carga psicológica desse tipo de investigação, mas também lidar com as barreiras logísticas disso: o prédio onde a irmã morava está longe de ser um exemplo de acessibilidade. Talvez por isso ele chegue a um ponto de exaustão e, depois de uma tentativa má-sucedida de contato com o assassino, só tem um pedido a fazer: uma reconstrução dramática dos momentos finais de Kitty Genovese. Os gritos dela continuam a ecoar na cabeça de muita gente depois de meio século.

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American Anarchist [80 min. | 2016] — “Como fazer bombas”. “Como transformar uma espingarda num lança-granadas”. “Como detonar uma ponte pênsil”. São essas algumas das receitas do Anarchist Cookbook, escrito em 1970 por William Powell. Americano auto-exilado na França há mais de trinta anos, Powell sempre fugiu da imprensa mas nunca teve orgulho do livro que escreveu e da forma como ele foi recebido. Neste documentário dirigido por Charlie Siskel, ele faz uma contextualização da obra, contando o que o levou a escrever o Livro de Receitas Anarquista. Frustrado com uma batida policial na livraria de contracultura onde trabalhava no fim da adolescência e percebendo a falência das manifestações pacíficas indefesas diante de uma polícia cada vez mais militarizada, Powell passou quatro meses pesquisando manuais militares na Biblioteca Pública de Nova York. Seu objetivo era expor as táticas usadas pelas forças de segurança para que manifestantes e policiais estivessem em pé de igualdade. Sem contar a ninguém sobre o projeto, ele fez algumas ilustrações, juntou tudo e mandou para 30 editores — só um ousou responder, Lyle Stuart, que costumava publicar obras consideradas problemáticas. Em meio à tempestade midiática em torno do livro, Powell se deu conta de que subestimou o poder da polêmica que havia lançado. A obra chegou aos tribunais três anos mais tarde — curiosamente, num processo de copyright e não de incitação ao terrorismo.

Nos anos seguintes, ele e o livro foram sendo esquecidos. Powell amadureceu, casou-se com uma nipo-americana, teve um filho, entrou na Igreja Anglicana — filho de um funcionário da ONU, ele passou parte da infância na Inglaterra — e virou professor de educação especial. Acreditando que o livro seria definitivamente esquecido, Powell passou as últimas décadas viajando por vários países como educador e ignorando o impacto de sua obra adolescente. Embora o livro tenha sido ligado a casos anteriores de atentados a bomba, assaltos a banco e tiroteios em escolas, foi só com o caso de Columbine que Powell decidiu se manifestar. Mesmo assim, o que fez foi apenas um comentário de autor na Amazon, declarando-se arrependido do que escreveu e pedindo que a obra saísse do catálogo. Apesar de receber royalties pelo livro, o autor acabou vendendo seus direitos ao editor, que mais tarde faliu, levando a obra a um limbo jurídico. Em 2013, quando O Livro de Receitas foi encontrado com o perpetrador de um tiroteio numa escola americana, o jornal The Guardian convidou o autor a escrever um artigo. Nele, Powell explica sua trajetória pós-publicação, reconhece os equívocos da obra e seu perigo e mais uma vez pede que ele deixe de ser publicado. No fim, Bill Powell reflete sobre seus anos de formação, com suas dificuldades de socialização e alguns traumas escolares que o aproximam da trajetória de alguns atiradores e terroristas que seguiram seu livro. A impressão que se tem é que Powell, por mais arrependido que esteja, pouco fez para admitir publicamente e de maneira firme que estava errado e para frear novas tiragens da obra. Mesmo tendo se regenerado como professor, William Powell parece ter passado a vida fugindo do livro que escreveu — e até nesse documentário em tom de mea culpa ele parece evasivo em alguns momentos.

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empire of scents

Empire of Scents [86 min. | 2014] — Que cheiro é esse? Sério, leitor, que cheiro é esse que você está sentindo agora? Enquanto escrevo isso, estou cercado pelos aromas do sorvete de baunilha recém-tomado, da garrafa de água gelada sobre a mesa de madeira e do céu ligeiramente nublado lá fora. Como dá pra perceber, é difícil descrever exatamente um aroma (que dirá vários). Transpor esse tipo de descrição para um meio tão inodoro quanto a tela de cinema ou TV, então, é mais difícil ainda. Esse é o principal desafio deste documentário canadense, dirigido por por Kim Nguyen com roteiro de Lucie Tremblay. Na ausência direta de aromas, restam as histórias que envolvem essa sensação efêmera, ilustradas por ruas cobertas de chuva, flores, vinhas, campos, cigarros: A moça que saiu para correr numa manhã de garoa, foi atropelada e perdeu o olfato. O faro de um caçador de trufas italiano. O colhedor de açafrão dos Emirados Árabes. Na Índia, uma cientista demonstra como se colhem os aromas de flores e como as plantas se comunicam pelo cheiro. As ligações entre olfato e memória são explicadas pelas lembranças aromáticas da neurocientista Rachel Herz, filha de um matemático tabagista.

Também não faltam caçadores de âmbar-cinzento, biólogos moleculares, perfumistas, aromaterapeutas e o sommelier François Chartier — autor de Papilas e Moléculas, livro que inspirou o documentário.  Amostras de açafrão e de trufa são analisadas (ou seria anasaladas?) por uma mestre de chá chinesa e um sommelier francês: o que cada um reconhece na mesma substância? Numa participação especial, o astronauta Chris Hadfield responde que cheiro tem o espaço (ou quase isso, já que o espaço em si não tem ar algum). Embora seja marcado por momentos subjetivos inevitáveis — o olfato é sem dúvida o mais subjetivo dos sentidos —, este documentário também traz algumas coisas divertidas, como entrevistas com crianças e o que elas gostariam num perfume e a história aparentemente meio absurda do criador de uma suposta fragrância baseada no aroma vaginal. O único ponto fraco — além da óbvia ausência dos aromas mencionados — é o título traduzido que não fede nem cheira: O Nariz.

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