Queimados no útero

Pai e filho fogem de um dos incêndios florestais que atingiram a Indonésia em 2015. A exposição à fumaça durante a gravidez pode ter efeitos duradouros na vida das crianças em gestação. [Imagem: Ulet Ifansasti/Getty Images]

Estudo feito por pesquisadores de Singapura e dos EUA demonstra os prejuízos duradouros para as crianças expostas à fumaça de queimadas antes mesmo de nascer

Usada para abrir clareira e limpar terrenos, a queimada é uma técnica de manejo tão barata quanto primitiva e prejudicial. Controlar o fogo não é fácil e, em vez de um terreno, as chamas logo se alastram pela vegetação vizinha. O resultado costuma ser um incêndio florestal catastrófico, que pode ser intensificado caso o clima esteja extremamente seco.

Foi isso que aconteceu na Indonésia em 1997. Produtores de óleo de palma usaram o fogo para abrir espaço para novas plantações mas o clima anormalmente seco daquele ano turbinou as chamas durante meses. Entre agosto e outubro, formou-se um incêndio florestal que destruiu 11 milhões de hectares. A poluição causada por essa queimada gigantesca foi igualmente colossal: sozinho, esse evento foi responsável por 25% das emissões de carbono geradas no mundo em 1997. Ainda que em escala um pouco menor, a mesma coisa aconteceu de novo na Indonésia em 2015.

Poluição registrada por satélite sobre o Oceano Índico em 1997, na época dos incêndios indonésios. Seus efeitos ultrapassaram fronteiras e puderam ser sentidos em lugares como Malásia, Singapura, Tailândia, Índia e até a África Oriental.

Quando tratam dos riscos e prejuízos das queimadas, tanto a mídia quanto alguns pesquisadores focam apenas no número de mortos ou no tamanho da área devastada. Mas e os danos sofridos por quem sobrevive ao incêndio florestal? Quais os efeitos de uma fumaceira que dura meses sobre as mulheres grávidas e seus bebês? Foi sobre essas perguntas que dois pesquisadores das Universidades Duke (EUA) e Nacional de Singapura se debruçaram nos últimos anos.

Para procurar as respostas, Subhrendu Pattanayak (de Duke) e Jie-Sheng Tan-Soo (Univ. Nac. de Singapura) cruzaram dados sobre a exposição materna aos incêndios florestais de 1997 com dados longitudinais sobre nutrição, genética e fatores climáticos e sociodemográficos. Os dados logitudinais são aqueles que provêm de estudos a longo prazo ou de pesquisas periódicas. Assim, foram analisados dados referentes a 560 crianças que estavam in utero ou tinham até seis meses de idade na época dos incêndios florestais na Indonésia. Os fatores demográficos e de saúde dessas crianças foram extraídos das edições de 1997, 2000, 2007 e 2014 da Indonesian Family Life Survey (pesquisa semelhante ao nosso PNAD).

A conclusão, publicada em artigo na Proceedings of the National Academy of Sciences em março, indica que estar no útero não é estar protegido dos efeitos nocivos de uma queimada. As crianças que foram expostas ao fumacê dessa forma apresentaram problemas de crescimento mais tarde. O cruzamento de todos os dados levantados revelou uma redução de 3,3 cm na estatura dos que sofreram exposição pré-natal à poluição causada pelos incêndios florestais. A descoberta foi confirmada por uma checagem rigorosa, que descartou outras possíveis influências, como exposição posterior à altos níveis de poluição, fatores geográficos ou problemas nutricionais das famílias na época dos incêndios.

Fig. 1.
Nesta figura do estudo de Pattanayak e Tan-Soo (vide referência), fica demonstrado que todas as regiões da Indonésia foram atingidas pelo pico de poluição atmosférica causado pelos incêndios de meados de 1997. Assim, grávidas do país inteiro foram expostas à poluição do ar e seus efeitos.

Ser uns 3 cm mais baixo do que o esperado parece pouca coisa, mas não é. “Como a altura do adulto está associada com a renda, isso implica uma perda de cerca de 3% na média salarial mensal de aproximadamente 1 milhão de trabalhadores indonésios nascidos durante esse período”, explicam os pesquisadores no artigo. Para Pattanayak, esse é um prejuízo irreversível.

Considerando esse impacto socio-econômico, vale a pena trocar o trabalho mecanizado um pouco mais caro pelos riscos das queimadas? No mesmo estudo, os cientistas fizeram análises de custo-benefício. Essa segunda análise demontra que não, não vale a pena economizar esforço e dinheiro com fogo em vez de trabalho mecanizado no campo. Os custos em saúde e bem-estar da comunidade superam em muito a economia pretendida.

Como solução, Pattanayak e Tan-Soo  sugerem a adoção da mecanização, melhor fiscalização da proibição das queimadas e maiores esforços para controlar essa técnica. Caso haja resistência dos produtores de óleo de palma, recomenda-se que o governo indonésio seja mais duro na proibição de queimadas e até imponha uma moratória à produção de óleo de palma. Embora esse seja um setor importante na agricultura indonésia, essa medida extrema seria a melhor forma de proteger os recursos naturais e o capital humano do país.

Entretanto, infelizmente, é pouco provável que o governo da Indonésia siga os conselhos desse estudo. Quando um estudo estimou em até 100 mil as mortes ligadas pelas conflagrações florestais de 2015, as autoridades indonésias rejeitaram prontamente tal conclusão.

Dadas as semelhanças entre a agricultura indonésia e a brasileira, parecidas no clima e no uso frequente das queimadas, seria interessante que essa pesquisa fosse replicada no Brasil. Seria, se a própria pesquisa nacional não estivesse sendo destruída pelas chamas do fundamentalismo fiscal que desmata orçamentos e investimentos públicos em pesquisa.

Referência

rb2_large_gray25Jie-Sheng Tan-Soo e Subhrendu K. Pattanayak. Seeking natural capital projects: Forest fires, haze, and early-life exposure in Indonesia [Em busca de projetos de capital natural: incêndios florestais, poluição e exposição na primeira infância na Indonésia]. Proceedings of the National Academy of Sciences Mar 2019, 116 (12) 5239-5245; DOI: 10.1073/pnas.1802876116

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