“O Napoleão das Neuroses”

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Une leçon clinique à la Salpêtrière (1887) – uma das pinturas mais famosas da História da Medicina, retrata Charcot durante uma de suas palestras sobre histeria. Além do médico famoso e de sua paciente, “Blanche”, a obra mostra diversas figuras históricas, como Gilles de la Tourette (de avental, no primeiro plano).

Lembrado como pai da neurologia francesa, Jean-Martin Charcot seria hoje motivo de chacota por sua fé na histeria como raiz de qualquer problema feminino — da insônia às denúncias de abuso sexual.

Por Romeo Vitelli, no Providentia. Tradução de Renato Pincelli.

Durante a maior parte da História — e especialmente ao longo dos séculos XVIII e XIX — os médicos costumavam estar sempre perdidos ao lidar com “problemas de mulheres”, males físicos ou psicológicos que afetam pacientes do sexo feminino e que não tinham explicação óbvia. Não importa se as pacientes relatavam sensações como ansiedade, depressão, promiscuidade, irritabilidade, fadiga ou uma simples insônia: os médicos inevitavelmente recorriam a um diagnóstico guarda-chuva: a histeria.

Com um nome derivado da palavra grega para útero, a histeria já foi explicada por supostas “deslocamentos” do útero para outras partes do corpo. Originalmente proposta por médicos do Egito Antigo, essa hipótese e suas implicações médicas foram descritas em tratados como os de Hipócrates, Platão e Galeno, dentre outros.

Os médicos que não seguiam a teoria do útero volante costumavam buscar a causa em outras disfunções do sistema reprodutor feminino, como o acúmulo de “sêmem feminino” em decorrência do celibato ou o diagnóstico de “possessão demoníaca”, o preferido na Idade Média. Qualquer que fosse a causa, a histeria continuou a ser o diagnóstico predileto dos médicos que lidavam com mulheres problemáticas até o começo do século XX.

Durante a segunda metade do século XIX, o expert imbatível em histeria de pacientes femininas era o neurologista francês Jean-Martin Charcot [1825-1893]. Reverenciado até hoje como “pai da neurologia francesa”, Charcot trabalhou com milhares de pacientes no Hospital Salpêtrière em Paris por mais de 30 anos. Embora a neurologia científica estivesse engatinhando, a pesquisa neurológica de Charcot combinava observações clínicas, anatomia e fotografia de um modo que nunca havia sido aplicado a pacientes. Ele também foi pioneiro em novas técnicas de tratamento de neuroses, que iam do bizarro (como os cinturões de compressão sobre os ovários) ao plausível (hipnoterapia). Além de suas pesquisas inovadoras, Charcot também treinou uma geração de neurologistas, alguns dos quais ganharam fama por seus próprios méritos, como Sigmund Freud [1856-1939] e Gilles de la Tourette [1857-1904].

A fama de Charcot, porém, vinha de seu próprio estilo de auto-promoção. Ele costumava fazer palestras públicas semanalmente, com estudos de caso e até apresentações ao vivo de suas pacientes, além de demonstrações de hipnose — o que levou muitos de seus críticos a denunciar seu uso de “medicina teatral”. Numa apresentação típica, a paciente seria levada de maca ao local da palestra, onde seus sintomas eram expostos com detalhes elaborados (e às vezes indiscretos). Muitas dessas mulheres também se tornaram famosas, pois Charcot as usava para delinear suas próprias teorias sobre as causas da histeria — uma delas foi Marie “Blanche” Wittman [1859-1913], que ficou conhecida como Rainha das Histéricas.

Segundo Charcot, a histeria seria uma condição neurológica e basicamente hereditária, que deveria ser classificada em maior ou menor de acordo com a gravidade dos sintomas. Ele também propôs a existência de zonas histerogênicas, que definiu como

regiões mais ou menos delimitadas do corpo, nas quais a pressão ou o mero toque determina, mais ou menos rapidamente, o fenômeno da aura ao qual se segue, caso continuemos a aplicar a pressão, um ataque histérico. Esses pontos ou melhor, superfícies, também têm a propriedade de ser sede de uma sensitividade permanente.

Numa palestra ao público realizada em 1887 — imortalizada numa pintura de Andre Brouillet, que ilustra este artigo —, Charcot apresenta Blanche Wittman à sua audiência enquanto demonstrava as várias zonas histerogênicas de sua paciente. No caso de Wittman, essas zonas ficavam supostamente sob sua mama esquerda, o meio de suas costas e uma de suas pernas. Enquanto palestrava, Charcot orientava um estagiário a tocar a paciente nos vários pontos para desencadear diferentes sintomas. Ao ser tocada sob o peito esquerdo, por exemplo, a coluna de Wittman se arqueava prontamente. Por outro lado, pressionar um ponto próximo de seus ovários eliminava tal sintoma.

Quando era tocada em outro ponto, Wittman voltava a se arquear, dizendo-se assustada. Para Charcot isso sugeria que o estímulo era equivalente ao de uma crise epiléptica. Ele também descreveu os episódios histéricos de Wittman como muito similares a uma epilepsia, pois os gatilhos que causavam seus sintomas perdiam a força depois de alguns dias antes de seu “ciclo” histérico recomeçar. Ainda que o pioneiro da neurologia afirmasse com insistência que Wittman não estava fingindo, o fato de ela “atuar” com frequência semanal nas palestras de Charcot parecia bastante suspeito. Provavelmente não foi coincidência que as convulsões histéricas de Blanche acabaram depois da morte de Charcot.

Mesmo com sua fama de médico pesquisador, Charcot teve que enfrentar um ceticismo considerável de seus colegas de profissão, especialmente de Hippolyte Bernhein [1840-1919], outro pioneiro da neurologia. Além de questioná-lo em relação à histeria, Bernhein era muito cético sobre o uso de hipnose por parte de Charcot e de sua insistência em desconsiderar que muitos dos sintomas que descrevia deviam-se mais à sugestão do que a qualquer condição neurológica das pacientes. Num livro de 1998, o psiquiatra Paul R. McHugh responsabilizou a sugestão pelas “epidemias” de convulsões histéricas que costumavam atacar as pacientes de Charcot no Salpêtrière.

Mais do que isso, o que realmente parece danoso hoje em dia é o modo como Charcot e seus pacientes tratavam as pacientes femininas do Salpêtrière. Além das suas “demonstrações” semanais, com a exposição de mulheres (que inclusive eram desnudadas por funcionários do hospital), Charcot frequentemente usava a fotografia para registrar suas pacientes nuas (sem consentimento delas). Também era comum o comportamento condescendente dele e de seus estudantes em relação às pacientes. Em outro livro [Medical Muses: the cult of hysteria in 19th century Paris], publicado em 2011, apresentam-se evidências contundentes de que o abuso sexual de pacientes era desenfreado no Salpêtrière durante a época de Charcot, algo que tem sido ignorado por gerações de pesquisadores.

Após a morte de Charcot, em 1893, muitos de seus estudantes tentaram dar sequência aos seus trabalhos sobre histeria mas pouquíssimos tinham sua queda pela auto-promoção. De modo quase inevitável, a maioria das teorias de Charcot sobre a histeria caíram logo em descrédito — ainda que alguns médicos tenham continuado a usá-las como diagnóstico até meados do século XX. Entretanto, a influência de Charcot ainda pode ser sentida atualmente. Ele foi não só uma grande inspiração para Freud e seu próprio trabalho sobre pacientes histéricas como seu nome continua a ser usado em uma ampla gama de doenças que ele ajudou a identificar em sua longa carreira.

Mas é sua obra sobre histeria que tem um impacto mais profundo e sombrio. Tanto Charcot quanto Freud invocavam o diagnóstico de histeria como meio de desacreditar mulheres que tentavam registrar casos de abuso sexual sofrido na infância. Em vez de acreditar nesses relatos, as pacientes eram tipicamente vistas como mulheres histéricas, que inventavam histórias de abuso apenas para ganhar atenção. Que ainda vejamos exemplos desse comportamento no século XXI é evidência do quão efetivo Charcot e seus discípulos foram no silenciamento das vítimas de abuso.

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