Capítulo 22

Sistema imune é infectado pelo SARS-CoV-2 de maneira similar ao HIV

p.156-162

A COVID-19 por dentro do corpo: imunidade, tratamentos e saúde

 

2 de outubro de 2020
Graciele Almeida de Oliveira

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Revisão: José Felipe Teixeira da Silva Santos
Edição: Maurílio Bonora Junior e Carolina Frandsen P. Costa
Arte: Carolina Frandsen P. Costa

Estudo de pesquisadores ligados à Força Tarefa da Unicamp mostra que a SARS-CoV-2 infecta células do sistema imune de forma similar ao HIV. Entender o mecanismo de infecção do SARS-CoV-2 é essencial para buscar formas de combater o vírus. Nesse sentido, um grupo de pesquisadores da Unicamp, de diferentes laboratórios, uniram-se para entender como o sistema imune humano é afetado pela infecção decorrente do novo coronavírus. O estudo acabou de ser publicado na forma de preprint [1].

Semana epidemiológica #40

Média móvel de novos casos no Brasil, na ocasião de publicação deste texto

828 óbitos registrados no dia (135.945 ao todo)

O Sistema Imune e os Linfócitos

O sistema imunológico é formado por células e moléculas que agem como sistema de proteção contra doenças. Esse sistema de defesa não atua em uma única frente. Há uma defesa inicial promovida pela imunidade natural (aquela que já está presente antes do aparecimento de uma infeção e é inicial no combate contra um microrganismo). Um exemplo de componente de proteção que faz parte da imunidade natural é a pele. Ela funciona como uma barreira de defesa, evitando que a maioria dos patógenos do ambiente entre em contato com nossos órgãos ou nossa corrente sanguínea.

Além da imunidade natural, há a imunidade adaptativa ou adquirida: é aquela que é estimulada após a exposição ao agente infeccioso. A diferença principal entre elas é que na imunidade adquirida há uma “memória” do sistema imune em relação à uma exposição prévia ao microrganismo. As duas atuam em conjunto na proteção do corpo contra patógenos.

No sistema de memória da imunidade adquirida, os linfócitos são os grandes protagonistas. Essas células são capazes de responder a antígenos, partículas ou moléculas estranhas. Existem vários tipos, ou subpopulações, de linfócitos. Eles têm diferentes formas de reconhecimento de antígenos e funções.

O que se sabia até agora?

Até então, o que algumas pesquisas mostravam é que junto aos sintomas severos associados ao óbito dos pacientes, acontecia uma resposta inflamatória bem intensa. Além disso, as pesquisas identificaram uma baixa quantidade de linfócitos no sangue, notaram o desaparecimento de células T (uma das subpopulações de linfócitos) e baixa capacidade de adaptação do sistema imune.

Esses foram alguns dos pontos de partida da pesquisa coordenada pelos professores Alessandro Farias e Marcelo Mori da Unicamp. Na pesquisa, os pesquisadores de 13 laboratórios diferentes, muitos dos quais participaram da Força Tarefa da Unicamp, investigaram quais tipos de células do sistema imune o vírus SARS-CoV-2 era capaz de infectar, incluindo os linfócitos. Além disso, os pesquisadores analisaram qual o mecanismo envolvido neste processo.

Para que o vírus infecte uma célula, é necessário que haja alguma forma de reconhecimento de uma proteína do vírus pelas células do nosso corpo. No caso do SARS-CoV-2, a infecção acontece a partir do reconhecimento com o receptor ACE2.

Quer saber mais sobre o ACE2 e a infecção? Corre aqui neste texto: Se o coronavírus é um vírus pulmonar, como ele infecta outros órgãos?.

Nota dos Editores:

Volte ao capítulo 21 para rever a localização da ACE2

Mas, aparentemente, nem tudo é simples com este vírus…

No caso dos leucócitos, ao contrário do que acontecia com outras células infectadas (como as células dos pulmões) o receptor ACE2 não estava presente em grande quantidade.

Dessa forma, o grupo de pesquisadores resolveu avaliar se a proteína Spike do vírus poderia interagir com outras proteínas. Então, antes de continuar o experimento na bancada, eles usaram um sistema de predição da interação entre proteínas do vírus e as presentes na membrana externa das células humanas. Para isso, usaram um programa que consulta vários bancos de dados de proteínas.

Nota dos Editores:

Também conhecidos como glóbulos brancos ou células brancas, ou simplesmente como “células de defesa”.

Como ainda não há muita informação sobre as interações da SARS-CoV-2 e as proteínas humanas, eles usaram uma proteína parecida, presente no SARS-CoV-1, para predição.

O que eles descobriram? Que a proteína Spike do vírus SARS-CoV-1 (muito similar à Spike do SARS-CoV-2), interagia com uma proteína humana chamada CD4, que é expressa principalmente em um tipo específico de linfócito: o linfócito T auxiliar (também conhecida como célula T CD4+).

 

Mas quem são os linfócitos T?

Linfócitos T são células da imunidade celular. Não produzem anticorpos, mas são capazes de reconhecer antígenos de microrganismos intracelulares (ou seja, que infectam células por dentro). Uma vez que esses antígenos sejam reconhecidos pelos linfócitos T, outras células de defesa destroem os microrganismos —ou mesmo as células infectadas inteiras!

Os linfócitos T auxiliares são ativados pela presença de um antígeno, e assim que os detectam, disparam um sistema de alarme: liberam proteínas, chamadas de citocinas. E qual o papel das citocinas? Elas funcionam como um sinal de alerta: acordam o sistema imune e disparam a produção de mais células do sistema de defesa, que se prepara para o combate. 

Sabe onde os cientistas já viram um vírus usar essa estratégia de infectar as células T auxiliares? No processo de entrada do Vírus da Imunodeficiência Humana, o HIV. Isso é um sinal de que os dois vírus têm similaridade de infecção!

Sabe onde os cientistas já viram um vírus usar essa estratégia de infectar as células T auxiliares? No processo de entrada do Vírus da Imunodeficiência Humana, o HIV. Isso é um sinal de que os dois vírus têm similaridade de infecção!

Depois que os resultados da predição mostraram que a proteína CD4 interagia com o vírus, eles foram testar se o SARS-CoV-2 realmente infectava os linfócitos T.

Tipos de linfócitos T. Ilustração original da editora (Carolina F.P. Costa)

E a pergunta era:

Será que o vírus infecta as células da imunidade adqui­rida? Quais delas? Para descobrir, os pesquisadores partiram de amostras de sangue de pessoas não con­taminadas, e separaram os linfócitos T do resto do sangue. Dentre as células T, separaram lin­fócitos T CD8+ dos linfócitos T CD4+ e adicionaram o vírus SARS-CoV-2 (tudo isso num laboratório de biossegurança nível 3). Depois de um tempo na presença do vírus, as amostras foram analisadas. Por meio de di­ferentes técnicas, eles avaliaram se havia presença do vírus no interior dessas células. Assim, eles descobriram que sim, o SARS-CoV-2 era capaz de infectar células T CD4+. Além disso, obser­varam que o vírus é capaz de usar esses linfócitos para se multiplicar e pro­duzir mais vírus, que podem infectar outras células.

Nota dos Editores:

Saiba mais sobre laboratórios de biossegurança no capítulo 7: “E essa roupa diferentona para fazer ciência serve para quê?”.

Pois bem, detectaram o vírus SARS-CoV-2 em células antes saudá­veis, infectadas sob controle no laboratório. Mas será que isso também acontecia “na prática”, com pacientes que estão com COVID-19? Para descobrir, eles purificaram as células T de pacientes com COVID-19. Novamente, encontraram o vírus apenas na célula T CD4+. Mais do que isso, eles perceberam que a infecção está relacionada com a severidade da doença, em outras pala­vras: quanto mais debilitado o paciente, mais células T CD4+ estavam infectadas.

Em seguida, os pesquisadores se perguntaram como a proteína do vírus interage com a proteína CD4. Com esta finalidade, eles fizeram outros experimentos para conferir se a proteína Spike do SARS-CoV-2 também interage com a proteína CD4 humana, como acontecia com a Spike do SARS-CoV-1. E desconfiaram que elas não só interagem: a proteína CD4 pode ser a porta de entrada da infecção dos linfócitos por SARS-CoV-2.

Mas no que impacta a contaminação dos linfócitos T CD4+, afinal?

Impacta muito! As células T estão circulando pelo corpo e podem levar o vírus a outras células e órgãos. Eles mostraram também que a infecção dos linfócitos T alteram várias vias importantes na célula. Além disso, o estudo dá uma pista inicial para novas propostas de tratamento.

A imagem mostra os linfócitos infectados pelo SARS-CoV-2. Perceba que em cada uma das imagens há um tipo de aumento e a barra serve para comparação. Os asteriscos indicam a pre-sença do vírus. A imagem foi obtida a partir do artigo de Davanzo et al (2020).

Nota dos Editores:

Até o momento da publicação deste livro, o artigo final não foi publicado, estando ainda em processo de análise do periódico.

* O preprint é um tipo de publicação que aumentou durante a pandemia. O manuscrito (ou texto) é publicado pela revista sem a análise por pares. Isso quer dizer que outros cientistas ainda não avaliaram o trabalho, se a hipótese, os métodos e os resultados obtidos estão de acordo com as conclusões encontradas pelos autores. Os preprints são importantes, pois agilizam a circulação das informações. No entanto, temos de ter cuidado, pois após a avaliação por revisores, outros cientistas, algumas das conclusões do artigo podem ser modificadas.

Para entender mais o que são preprints fica a sugestão do texto Pandemia acelera produção e acesso a preprints da Germana Barata (parte 2, capítulo 13). 

PARA SABER MAIS 

 

 

  • Abbas, AK; Lichtman, AH e Pillai, S. Imunologia Celular e Molecular. 6. Ed. Rio de Janeiro: Elsevier.
  • Davanzo, Gustavo G., Ana C. Codo, Natalia S. Brunetti, Vinícius Boldrini, Thiago L. Knittel, Lauar B. Monterio, Diogo de Moraes et al. Sars-cov-2 uses cd4 to infect t helper lymphocytes. medRxiv, Disponível em: https://doi.org/10.1101/2020.09.25.20200329
  • Walls, Alexandra C., Young-Jun Park, M. Alejandra Tortorici, Abigail Wall, Andrew T. McGuire, and David Veesler. Structure, function, and antigenicity of the SARS-CoV-2 spike glycoprotein. Cell 181, no. 2, 281-292, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.cell.2020.02.058

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Estudo de pesquisadores ligados à Força Tarefa da Unicamp mostra que a SARS-CoV-2 infecta células do sistema imune de forma similar ao HIV. Entender o mecanismo de infecção do SARS-CoV-2 é essencial para buscar formas de comba-ter o vírus. Nesse sentido, um grupo de pesquisadores da Unicamp, de diferentes laboratórios, uniram-se para en-tender como o sistema imune humano é afetado pela infec-ção decorrente do novo coronavírus. O estudo acabou de ser publicado na forma de preprint.