A Psicologia dos Dragões-Pintados no Paraíso

Será que nós conseguimos respeitar e conviver em harmonia com os animais que vivem livres em seu ambiente natural? Para começar este ano de 2018 já voando alto, no post de hoje será apresentada a narrativa “A Psicologia dos Dragões-Pintados no Paraíso, criada por mais um dos grupos participantes da Oficina Criativa de Divulgação Científica. Confira esta bela história que retrata de forma simbólica alguns dos conflitos que podem surgir entre os humanos e a fauna silvestre.

 

Público-alvo: 

  • Todos aqueles que têm curiosidade ou se preocupam com conflitos entre humanos e fauna silvestre.

 

A Psicologia dos Dragões-Pintados no Paraíso

Por Cláudia Martins, Daniel Longatto, Gustavo Crestana e Pedro Sant’Anna (com colaboração e revisão de Carolina Stefano Mantovani e arte de Murilo Engler).

 

Há muitos anos, em um reino muito, muito distante, havia uma pequena cidade, e nessa cidade, um castelo cercado por grandes muros. Ao redor, havia uma maravilhosa floresta, por onde passava um rio de águas cristalinas. Muitas aves coloridas cantavam e voavam livremente por lá, fazendo daquele lugar sua casa. Outros animais silvestres, de maior ou menor porte, conviviam com as pessoas, uns dias em harmonia, mas em outros, tendo que escapar de suas velozes flechas de madeira. Afinal, quando a terra era menos generosa e a chuva mais escassa, ainda havia muitas bocas famintas precisando se alimentar. Mas essa é outra história…

Nem tudo era pacífico nesse reino quase encantado, cujo nome foi esquecido. Os habitantes viviam apavorados com um vizinho, digamos, diferente… era um dragão-pintado. Sim, um dragão-pintado! Um dos primeiros moradores daquela cidade tinha visto esse dragão quando ainda era bem jovem, num daqueles dias de festas que sempre acabavam com muita dança e taças de vinho, sabem como é… Voltando para casa, a pé, pela floresta, não só viu o dragão-pintado, como precisou lutar com ele por sua vida! Escapou com alguns arranhões. Algumas cuspidelas no rosto também lhe deixaram marcas, e uma dentada mais profunda bem nas nádegas… ah, essa foi humilhante! Mas o mais marcante foi ver a cara aterrorizante da fera!

Desde então, essa história é contada e recontada a todas as crianças do reino para que não se aventurem pela floresta, a casa do dragão-pintado, a não ser que precisem muito de uma caça, ou de um banco novo de madeira… bom, mas como dissemos, essa é outra história.

É… esse reino quase encantado e cujo nome foi esquecido seria um paraíso, não fosse o medo. Que medo do dragão-pintado, que há várias gerações ninguém via! Só se ouviam seus esturros na floresta, lá longe… Os mais ousados ainda conseguiam encontrar suas pegadas, que ficavam na memória de quem via – e de quem não via…

Até que num triste dia, as vacas criadas pelos habitantes do reino começaram a sumir. “Ai, meu Deus, que tragédia!” Depois das vacas, sumiram os bodinhos e algumas ovelhas. Pastando na borda e dentro da floresta, elas iam, mas não voltavam mais. Com tanto medo, calor e tantas outras ocupações, ninguém queria entrar na floresta para tentar resgatar seus animais sumidos. O dragão-pintado, culpado por todos por tanta mortandade, afastava qualquer vontade de correr atrás de bodes e ovelhas.

Ao medo se juntou a raiva, muita raiva! E o tempo foi passando, os bichos sumindo, e os homens tendo que ser cada vez mais corajosos, caçando com maior frequência e se arriscando cada dia mais floresta adentro… cada vez mais se deparavam com as marcas daquelas patorras no chão da floresta… “Que ódio desse dragão-pintado que nos amedronta e ainda nos rouba… CHEGA! Agora chega!”.

Reuniram um bando de homens – os mais corajosos da cidade – com seus arcos e flechas, espadas e punhais! “Agora vamos finalmente e de uma vez por todas acabar com esse dragão-pintado! Todos juntos o faremos sucumbir!”.

Foram de noite. Escolheram uma noite sem Lua. Seguiram por um caminho que achavam levar à toca do dragão-pintado. Quando chegaram, o acharam dormindo. Que conveniente! Tudo foi muito rápido: com a adrenalina no máximo, e muito organizados, caíram em cima do dragão-pintado com tudo! Bateram, golpearam, chutaram como nunca haviam feito em suas vidas. Não pararam enquanto o dragão-pintado não silenciou. Ganharam! Acabaram com a fera! Eram os heróis! Seus nomes seriam lembrados para sempre!

Voltaram para a cidade, carregando o dragão-pintado. Na euforia, celebraram com um banquete até amanhecer. Que noite memorável!

Pela manhã, os sóbrios e as crianças se aproximaram da fera, morta e dilacerada. Procuraram, em vão, as pintas – o dragão era totalmente pardo! Nem uma pinta naquele couro! Todos se pasmaram! Entreolharam-se… o silêncio era absoluto… até que alguém gritou: “Que importa se o couro é liso ou pintado? A fera foi morta! Ninguém mais vai nos amedrontar nem nos matar de fome por comer nossos animais! Só isso importa! Vamos ficar felizes, somos os heróis que derrotaram o dragão!”.

A festa retomou, até cansarem. A vida voltou ao normal. Acabou o medo. Todos agora iam para a floresta. Os adultos descuidaram de suas vacas, bodes e ovelhas, e apuraram seu gosto pelas caças da floresta. As crianças seguiam os adultos e treinavam pegando passarinhos. “São para minha mãe, ela não vem na floresta, mas agora vai poder olhá-los e apreciá-los na gaiola…”.

Chegou gente nova, vinda de outros lugares. Ouviram falar do rio de água cristalina, da floresta, do clima bom – e da paz, de não precisar conviver com dragões! Que paraíso! E a cidade foi crescendo… e a floresta diminuindo… e a chuva diminuindo… e o clima esquentando… e os bichos da floresta (os que não morreram caçados!) fugindo, e os animais domésticos adoecendo e morrendo de fome por falta de cuidados…

No Paraíso não tinha mais espaço para ninguém, nem para os que estavam ali há gerações. E as famílias começaram a ir embora, e aos poucos, o Paraíso virou deserto…

Os mais velhos contavam e recontavam a história da noite em que tinham derrotado o dragão-pintado. A melhor época de suas vidas e daquele reino quase encantado cujo nome foi esquecido. Uma criança, ouvindo pela quarta ou quinta vez, pediu a palavra e falou: “Vovô, que história triste… medo do que ninguém nunca via? Não entendo… e quando finalmente viram, nem era o que lhes haviam contado, a começar pelas pintas! Se o velho errou no couro do bicho, não poderia ter errado também no terror que ele era? E como ter medo de um ser que, enquanto vivo, protegeu nossa floresta… de nós mesmos?”

 


 

Objetivos:

  • O “dragão-pintado” e “dragão-pardo” são utilizados como símbolo dos maiores felinos das Américas: as onças-pintadas e as onças-pardas, normalmente vistas como ameaça (pessoal, ao modo de vida e à sobrevivência);
  • Compreensão de que “conflito” é uma variável de contexto humano: onças não têm consciência se causam dano aos humanos e se prejudicam a eles ou a suas propriedades. Não é intencional, mas geralmente é consequência do encontro, cuja probabilidade aumenta à medida que ocupamos áreas que eram seus territórios exclusivos;
  • Trazer aspectos do foro cognitivo, psicológico e cultural para as relações estabelecidas entre humanos e fauna silvestre, com destaque para os felinos silvestres – a ilusão do conhecimento das espécies e sua ecologia, o medo de algo que nunca foi avistado, a dificuldade de entender algumas atividades humanas como causa da degradação ambiental;
  • Desconstruir a percepção de ameaça e substituí-la pela justa percepção de onças como indicadores da qualidade e integridade de habitats. Esses animais atuam como protetores de recursos naturais igualmente vitais às populações humanas, como água, produtos florestais não madeireiros, além de outros animais silvestres que atuam como plantadores de florestas e controle de pragas;
  • Aguçar a curiosidade de todos pelo incrível bioma que é a Caatinga, exclusivamente brasileiro e um dos dois mais vulneráveis às mudanças climáticas, habitat destas espécies carismáticas que, no semiárido, enfrentam os mesmos desafios à sobrevivência que os humanos. As onças ainda têm uma desvantagem a mais, isso porque quando os humanos deixam seus rebanhos soltos e expostos na Caatinga, esses animais acabam caçando as presas naturais das onças; assim, com as presas ficam escassas, as onças acabam predando os animais domésticos, o que leva à retaliação dos humanos contra as onças. Conhecer a importância do predador como protetor da Caatinga e a verdade por detrás da predação auxilia na conservação da fauna e na melhoria das relações humanos-fauna silvestre.
  • Potencial de utilização desta narrativa por professores em sala de aula, especialmente em regiões do país em que os humanos precisam conviver com os animais silvestres, para ajudar na discussão e conscientização sobre esta importante temática.

 

Saiba mais:

O Programa “Amigos da Onça: Grandes Predadores e Sociobiodiversidade na Caatinga”, do Instituto Pró-Carnívoros (IPC), é o único Programa de conservação de onças-pintadas e onças-pardas no bioma. Veja e acompanhe nossas atividades na página institucional de Facebook ou no site do IPC:

https://www.facebook.com/ProgramaAmigosdaOnca/

http://procarnivoros.org.br/index.php/projetos/programa-amigos-da-onca-grandes-predadores-e-sociobiodiversidade-na-caatinga/

 

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O que você achou da história dos Dragões-Pintados? Conseguiu ver a semelhança com a forma como os seres humanos se relacionam com a fauna silvestre no Brasil? Deixe abaixo seu comentário!

 

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