Erika Medeiros: veste o jaleco

No Planteia, cientistas de ciências biológicas e agrárias compartilham suas experiências. Republicamos hoje nossa entrevista com Erika Valente de Medeiros, professora da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE). Do sonho de vestir jaleco à carreira acadêmica, Erika destaca que fazer ciência exige dedicação e coragem.

Inteligência emocional é o mais importante nessa profissão, determina até onde você irá e com quem você vai

Erika Valente de Medeiros

O que a influenciou a seguir carreira científica?

Sonho. Quando criança, eu vivia em uma realidade em que as oportunidades eram ínfimas e a violência imperava. Sonhava em sair ou minimizar essa realidade e a única forma que encontrei foi estudando. Sonhava em ser astronauta ou cientista. Logo percebi que a primeira opção seria muito difícil. Na minha adolescência, meu pai fazia hemodiálise. A realidade que já era ruim, ficou pior. Diante da doença dele, descobri um símbolo que me acalmava: pessoas de jaleco. A vontade de vestir um jaleco aumentou e ser cientista se tornou a melhor opção.

Sabia que no Brasil as chances de você ser uma cientista aumentariam muito como professora universitária. Minha vontade de seguir a carreira acadêmica se fortaleceu. Já no primeiro ano de graduação, procurando estágio, soube que uma professora de química do Departamento de Antibióticos buscava alunos. Ela não aceitava biólogos, mas me deu uma chance. Com o tempo, ela passou a preferir biólogos por ver um diferencial para a pesquisa que ela fazia. Fui aceita para o mestrado em Recife e no Rio Grande do Norte. Antes de decidir, fui assaltada e quase estuprada e optei por sair de Recife.

Fiz mestrado e doutorado no Rio Grande do Norte. Não foi fácil. Fui a primeira bióloga aceita no curso de pós-graduação em agronomia e sofri um bocado. O descrédito por ser bióloga me impulsionou a provar minha competência. Fiz mestrado em um ano e oito meses e o doutorado em apenas dois anos. As pessoas comentavam que biólogo com pós-graduação em agronomia teria dificuldade em conseguir emprego. A maioria dos concursos na área de fitopatologia exigia formação em agronomia e eu não podia me candidatar. 

Optei por concursos na área de microbiologia, coerentes com minha tese em microbiologia agrícola. Comecei a vida acadêmica com 27 anos, uma das professoras mais jovens da minha instituição, a Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, em Garanhuns, interior de Pernambuco. Hoje dou aulas, oriento alunos de graduação, pós-graduação e pós-doutorado e sou bolsista de produtividade em pesquisa, um sonho que realizei há cinco anos atrás. E não parei por aí… 

Qual a motivação que direciona o seu trabalho?

Minha maior motivação é ajudar a mudar a realidade da minha Região. Acredito que a pesquisa deve mitigar ou solucionar problemas da sociedade. A universidade tem papel social. Essa busca por mudanças tem dois grandes aspectos. O primeiro é mudar a realidade de alguns discentes brilhantes, com potencial de se tornarem atores de mudança na sociedade. Se não fosse a universidade, eles não seriam descobertos. O segundo é dar respostas diretas aos problemas do campo através de pesquisas aplicadas. Por exemplo, eu moro em uma região considerada o bolsão de pobreza de Pernambuco. A maioria dos produtores plantam para subsistência, com pouca ou nenhuma tecnologia, o que gera perdas na produção. Desde que iniciei na carreira acadêmica em 2009, minha motivação é diminuir essas perdas com ferramentas sustentáveis e torná-las acessíveis a esses produtores.

Quais as contribuições que você fez para a ciência?

Enquanto bolsista de iniciação científica sintetizei moléculas e avaliei suas funções, principalmente como antibióticos. Vi camundongos com convulsão ter uma melhora no quadro clínico ao receber essas moléculas. Também, participei de pesquisas em que moléculas extraídas de plantas eram testadas para funções biotecnológicas diversas.

No mestrado e no doutorado trabalhei com um fungo (Monosporascus cannonballus) que dizimou a produção de melão do Rio Grande do Norte e no Ceará. Na época ambos os Estados eram responsáveis por cerca de 95% da exportação de melão do Brasil. No mundo, poucas pessoas estudam esse fungo e no Brasil, somente meu orientador e eu. 

Descobrimos que esse fungo era um habitante natural do solo. Dependendo do manejo do meloeiro, o fungo vira um potente patógeno. Desenvolvi duas moléculas capazes de combatê-lo, sem matá-lo, ajudando as plantas a se desenvolverem melhor. As moléculas eram promissoras também para o manejo de outros patógenos habitantes do solo.

Já como pesquisadora em início de carreira tive três projetos aprovados por agências de fomento para descobrir qual o principal patógeno do solo que estava dizimando a produção de mandioca em Pernambuco e buscar formas alternativas de manejo para a cultura. A pesquisa foi demanda de um grupo de agricultura familiar que eu participava com outros atores da sociedade, entre eles, secretarias de agricultura, órgãos de extensão, cooperativas e produtores. Desde então, desenvolvemos diversas ferramentas para mitigar o problema da podridão radicular da mandioca, incluindo publicação de artigos em revistas internacionais de impacto e registro de patentes.

No pós-doutorado na França, os pesquisadores do centro de pesquisa queriam entender a forma de recuperação de áreas degradadas por agricultura na Caatinga, maior floresta tropical seca do mundo. O estudo foi realizado através de três redes de pesquisadores: SISBIOTA-Matas Secas, NEXUS-Caatinga e INCT:ONDACBC. Os estudos permitiram caracterizar a identidade da microbiologia de solo degradados, com diferentes manejos ou em recuperação, usando a enzimologia ambiental como ferramenta. Os primeiros trabalhos de enzimologia na área de Caatinga é do nosso grupo!

A relação com a França estimulou o meu grupo a trabalhar com biochar (carvão vegetal, conhecido também como biocarbono, empregado na correção do solo) e ampliar minha rede de colaboradores no Brasil e no exterior. O estudo envolve diversas abordagens multidisciplinares, por exemplo, uso do biochar como componente alternativo no manejo de doenças de plantas e na fertilização do solo.

Quais são os maiores desafios das cientistas no Brasil? 

Muitos são os desafios dos cientistas no Brasil e um pouco mais para as mulheres cientistas. O primeiro desafio é tornar-se uma cientista. Para isso, você terá que passar pelo mestrado e pelo doutorado. É necessário estudar por mais anos, ganhando uma bolsa com dedicação exclusiva, longe do mercado de trabalho. Diante dos cortes de investimento na ciência brasileira, ter uma bolsa aprovada é ganhar um prêmio. Contudo, o fato de consegui-la não garantirá estabilidade, tampouco você terá qualquer direito trabalhista. 

Depois você terá que passar em um concurso público, perto ou longe de onde você mora. Terá que trabalhar muito para publicar os trabalhos, às vezes colocando dinheiro do próprio bolso, e concorrer aos editais com pesquisadores do Brasil inteiro para conseguir financiamento de órgãos de fomento para montar um laboratório ou uma estrutura mínima de trabalho. Esses desafios são mais leves quando se tem parcerias.

Se você for uma cientista que trabalha em universidade, terá que ministrar aulas, fazer extensão, orientar alunos, formular projetos, comprar materiais de custeio e permanentes, administrar verbas, prestar contas e lidar com burocracias antipesquisa. Hoje, por exemplo, uma das maiores dificuldades que tenho é comprar reagentes que dependem de autorização da Polícia Federal. O pedido deve ser solicitado pela universidade e a autorização não chega. Estamos aguardando há meses e, por isso, interrompemos as análises.

O que mais a entusiasma na atividade de cientista?

Entregar respostas para uma agricultura sustentável em um país cuja economia é baseada no setor agrícola. Ver minha pesquisa divulgada em grandes revistas da área e ter o reconhecimento de pesquisadores do exterior. Tudo isso mostra que você está no caminho certo. Fiquei muito feliz ao ver na plataforma Researchgate, que o pesquisador que inventou um dos métodos de análise de atividade enzimática baixou e leu meu artigo!

A formação de recursos humanos me anima. Pensar que os alunos poderão se tornar parceiros, cientistas, vê-los crescendo profissionalmente e pessoalmente, ganhando o mundo e trazendo novidades. É muito orgulho! 

Também fico muito feliz em ter meu nome entre os contemplados em um edital, dada a grande concorrência no país. Ser aprovada para a minha primeira bolsa de produtividade foi um desses momentos. É um grande prêmio de reconhecimento para quem trabalha com pesquisa. Sonho ainda em progredir na carreira e chegar à pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Outra honra foi ser convidada para reuniões da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para contribuir com a avaliação de projetos de pesquisa importantes para o país. Aprendi muito nessas reuniões, fiz novos contatos e me sinto realizada. 

Algum conselho para as jovens aspirantes a cientista?

Estude muito e tenha gosto pelo estudo. Se dedique ao inglês, pois é a língua oficial da ciência. Procure fazer diferente do que todo mundo faz. Seja determinada, teimosa, não desanime, mesmo que os outros digam que você não consegue. Quando disserem isso, ressignifique e use como combustível para seguir. Se imponha, pois a sociedade ainda favorece os homens. Chore quando o seu experimento der errado, respire fundo e retorne. Algumas das grandes descobertas foram feitas com erros. 

Respeite seus limites. Tenha metas e diga não a tudo que te desvie delas. Forme parcerias com quem te coloque para cima, pois ninguém consegue nada sozinho, especialmente neste meio onde a concorrência é desenfreada. Tenha humildade, ouça mesmo aquele que você acha que não pode contribuir com você, pois um insight pode te tirar da “caixinha”. 

Saia da sua zona de conforto. Vá longe, abrace todas as oportunidades que tiver para passar um tempo fora do país, aprenda outras culturas e forme parcerias com outros pesquisadores, mostre o seu diferencial e não repita o que eles estão fazendo. Inteligência emocional é o mais importante nessa profissão, pois determinar até onde você irá e com quem você vai. Como costumo dizer aos meus alunos, parafraseando o astronauta Buzz Lightyear nos filmes da franquia Toy Story… Vá ao infinito e além!!!

Como está o andamento das pesquisas em meio a pandemia de COVID-19? Quais os desafios e as estratégias adotadas para superá-los?

No início a adaptação a pandemia da COVID-19 foi difícil, pois nunca tínhamos passado por isso. Como líder do grupo de pesquisa, tive que tomar algumas decisões doloridas para quem estava no meio das análises, com experimentos em andamento. Me senti responsável por vidas, mais importantes do que qualquer outra coisa, e proibi o acesso dos alunos ao laboratório. Afinal, tudo poderá ser refeito. Paramos tudo e aceitamos as determinações para enfrentar o desconhecido. O que dói mais é não saber quando termina a crise e como voltaremos a normalidade. 

Olho esse período como uma oportunidade para repensar a vida em todos os seus aspectos, inclusive na pesquisa. Uma boa oportunidade para desengavetar artigos e aprender coisas novas. Existe a pesquisa de dados, já publicados ou disponível em bancos de dados, que podem ser usados para formular e testar hipóteses inéditas sem sair de casa. 

Faço reuniões virtuais com o meu grupo para falar de trabalho ou outros assuntos. A estratégia que bolei foi dividir os participantes em equipes com linhas de trabalho similares. Passei algumas diretrizes para repensarmos todos os trabalhos, acolhendo os alunos em suas dificuldades, ouvindo ideias, para acharmos saídas para cada caso.

O importante é perceber que tem dias mais difíceis. Neles precisamos dar espaço aos sentimentos, “respirar” um pouco para, então, voltar com toda disposição. Permita-se passar por isso, pois você não é uma máquina. Mantenha a mente ativa, reinvente-se, respire fundo, cuide da vida pessoal e profissional, siga, pois sairemos pessoas melhores dessa. E quem sabe pesquisadores melhores! Vai passar!

Sobre a cientista convidada  

Erika Medeiros é bióloga pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e fez mestrado e doutorado em Fitotecnia pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). O pós-doutorado em ecologia microbiana de solos foi realizado na França. Hoje é professora na Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE) e faz pesquisas multidisciplinares com foco em microbiologia e bioquímica de solos. Atua como consultora da CAPES na avaliação quadrienal dos programas da área de Ciências Agrárias I.

Entrevista publicada originalmente em 10 de junho de 2020.

Diário de Israel #7: Já estivemos aqui antes

Para dar o tom:  “Sign of the Times”, de Harry Styles

Na sexta-feira, dia 06 de outubro de 2023, eu esboçava mentalmente uma entrada no diário sobre o medo de bombas, mencionado na postagem anterior De pé no chão. Refleti sobre a serenidade dos primeiros meses em Israel, interrompida pelos bombardeios de maio de 2021. 

Eu estava em Israel há seis meses e a crise entre Israel-Palestina parecia distante. A pandemia estava no auge e vencer a COVID-19 parecia um risco mais iminente do que uma guerra. Enquanto no Brasil, a vacinação ainda avançava lentamente nos grupos prioritários, eu já estava imunizada com duas doses da vacina da Pfizer. A rotina de trabalho seguia sem restrições e eu me sentia segura. 

Mesmo com a calmaria aparente, Reut ― uma das estudantes no meu laboratório ― considerou que era hora de me familiarizar com uma mamad (acrônimo do hebraico “merhav mugan dirati“, que significa espaço protegido em prédios). Essa decisão foi tomada depois de um debate acalorado entre aqueles que achavam o assunto desagrável para depois de um almoço preguiçoso.

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense

Ao entrar na sala de estudos, sempre animada com alunos de pós-graduação e com a porta sempre aberta, surpreendi-me ao encontrar ali uma mamad. Estrategicamente localizada no centro do corredor e ao lado da escada de incêndio, a mamad é acessível aos pesquisadores distribuídos em três grandes laboratórios.

No edifício Nella & Leon Benoziyo de Ciências Biológicas, onde trabalho, há quatro mamadim (plural de mamad) por andar, totalizando seis andares. Em todo o campus do Instituto Weizmann de Ciência, existem onze miklatim (plural de miklat, abrigo anti-bombas) e seis mamadim em espaços públicos, como estacionamentos e jardins.

Logo depois do estabelecimento do Estado de Israel (1951), a construção de abrigos antibombas já era incentivada em todo o país. Em 1992, tornou-se obrigatória a construção de mamadim em todas as unidades habitacionais, e hoje mais de 40% das residências estão em conformidade com a lei.

A mamad é um quarto de cinco a doze metros quadrados, com paredes, piso e teto revestidos por 20 a 40 centímetros de concreto maciço, além de uma porta de aço que se abre para fora e uma janela à prova de explosões em formato quadrado, também revestida com aço. As versões mais modernas incluem até um sistema de ventilação para ataques biológicos e químicos.

No ambiente doméstico, a mamad desempenha diversos papéis, desde quarto de criança, quarto de visitas, escritório, sala de televisão até simples quartos de bagunça. Em edifícios mais antigos, como o meu atual, contamos com uma miklat comunal localizada no primeiro piso, utilizada pelos condôminos como um espaço extra de armazenamento.

Mamad na minha segunda residência em Israel (2023).

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense, independentemente de sua etnia ou status socioeconômico. Essa construção é considerada um vetor de resiliência emocional, tornando a vida possível mesmo durante intensos bombardeios ao mesmo tempo que cria uma complexa e ambígua amálgama entre normalidade e estado de emergência.

A supressão moral da esperança pela paz, em troca de uma rotina possível, é também uma estratégia político-militar que torna o conflito administrável e menos suscetível à pressão popular. Em uma sociedade onde guerra e paz não são fenômenos distintos ― alguns autores a descrevem como um continuum “nem guerra, nem paz” ou “quase guerra, quase paz” ―, as mamadim, combinadas com a tecnologia do Domo de Ferro (sistema de defesa antimísseis), tornam-se quase terapêuticas, embora não sejam um antídoto para a depressão e o estresse pós-traumático.

Mamad na minha primeira residência em Israel (2021).

Antes do sono, revisitei as reações fisiológicas de viver em um país em estado de guerra, apenas para acordar no sábado (7) às 6:30 ao som estridente das sirenes. Meu coração acelerou, e uma onda de oxigênio e adrenalina inundou meu corpo. Levantei-me com agilidade da cama, calcei os chinelos, abri a porta com destreza e desci as escadas, pulando degraus. Em Rehovot, tenho um minuto e meio para alcançar um local seguro. A cada andar, as portas se abriam, e as famílias emergiam em filas, algumas com crianças ainda adormecidas no colo, acompanhadas por cachorros; a escada ficou cheia. Meu corpo, no modo autômato, conhecia o percurso de cor.

Leia mais:

BIRD-DAVID, N.; SHAPIRO, M. Domesticating spaces of security in Israel. In: LOW, S.; MAGUIRE, M. (Ed.) Spaces of security: ethnographies of securityscapes, surveillance, and control. Nova Iorque: New York University Press, 2019. p. 163-183.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: ChatGPT

Diário de Israel #6 De pé no chão

Para dar o tom:  “Principia”, de Emicida

Setembro tem profundo significado na tradição judaica, marcando o início de diversas celebrações e festividades. Em 2023, o Rosh Hashaná (Ano Novo Judaico) e o Yom Kippur, celebrados entre 15 e 25 de setembro, trouxeram à tona lembranças do início da minha jornada em Israel, em 2020. 

A exaustão típica do final do ano, combinada com as múltiplas confraternizações, culminou na minha primeira contaminação pela COVID-19. O período de isolamento para recuperação evocou memórias do auge da pandemia, meus primeiros momentos em Israel e o diário que permaneceu intocado por quase três anos.

Dentre os diversos feriados judaicos como Hanukkah, Lag Ba’omer, Tu Bishvat, Shavuot, Sukkot, Purim e Passover, meu favorito é o Yom Kippur. Distinto dos outros, o Yom Kippur, também conhecido como Dia da Expiação, não é uma inovação cultural dos sionistas. Ao contrário, é uma manifestação popular que se faz presente no espaço público, tocando tanto judeus quanto não-judeus.

Esse dia reflete as nuances e complexidades da sociedade israelense, contrapondo-se às visões tanto dos religiosos conservadores quanto dos seculares cosmopolitas, mas unindo a todos.

No Yom Kippur, Israel experimenta uma paralisação completa. Atividades econômicas, de transporte e de lazer são suspensas. Estabelecimentos por todo o país, desde bancos, aeroportos, lojas, bares, restaurantes, parques e museus, permanecem fechados. Até mesmo os serviços básicos, tanto estaduais quanto municipais, incluindo áreas vitais como saúde e segurança, cessam suas operações. A programação de rádio e TV é interrompida e os jornais impressos não circulam. Não há movimentação de transporte público ou automóveis particulares. Durante essa pausa, o país respira melhor, com níveis reduzidos de poluentes na atmosfera.

Na véspera do Yom Kippur, as ruas se enchem de vida. Famílias se reúnem para longas caminhadas ou bate-papos com vizinhos, escolhendo passear pelas faixas de trânsito ao invés das calçadas. É comum ver muitos trajando roupas brancas, simbolizando boas vibrações para o ano novo que se inicia. As crianças, em especial, tomam conta do espaço urbano: andam de bicicleta, patinete, patins e skate, aventurando-se por ruas, avenidas e até rodovias. É impressionante observar os pequenos, muitas vezes sem a supervisão direta de adultos, se divertindo em grupos ou até mesmo sozinhos. Por 25 horas, a cidade pertence a eles.

Para a maioria dos adultos, o Yom Kippur é um momento de jejum, de refletir sobre as transgressões do ano passado e pedir perdão. Também é a época de fazer um balanço moral, conhecido em hebraico como ‘heshbon nefesh‘, em preparação para o ano novo. Enquanto alguns veem o dia como uma pausa introspectiva, outros o acham restritivo e monótono. Além disso, para muitos, o feriado carrega as sombrias memórias da guerra de 1973, quando Israel foi atacado de surpresa por Egito e Síria exatamente no Yom Kippur daquele ano.

Para mim, o Yom Kippur oferece uma oportunidade de enxergar a cidade sob uma perspectiva renovada e de conectar-me profundamente ao lugar onde resido. Nos anos anteriores, ao final da tarde, peguei minha bicicleta e em meio às crianças explorei Rehovot e a vizinha Yavne. Este ano, para minimizar a propagação do vírus, optei por apreciar e absorver o dia através da minha janela.

As últimas postagens do diário datam de novembro de 2020, “O pião entrou na roda” e “Laranja madura na beira da estrada”. O tempo voa. Desde então, a quantidade e a velocidade das experiências e vivências em Israel deixaram os pensamentos embaralhados demais para serem escritos. 

Enfrentei temores inesperados, como o medo de bombas, abelhas e aeroportos, e consegui superar outros, como a hesitação de me mostrar em fotos e vídeos. Assimilei novas formas de organização do trabalho de pesquisa em equipe, dominei técnicas e protocolos. Tive o prazer de guiar jovens rumo à ciência. Percorri Israel de ponta a ponta e tive o privilégio de conhecer notáveis pesquisadores brasileiros, que hoje constituem minha rede de suporte aqui. 

Ainda há muito a se compartilhar!

Leia mais:

Hizky Shoham (2013) Yom Kippur and Jewish public culture in Israel. Journal of Israeli History, 32:2, 175-196, DOI: 10.1080/13531042.2013.822732

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: ChatGPT

Quarentenados: cientistas na pandemia

Em meio à pandemia, três jovens aspirantes a cientistas da Unicamp contam como fazer ciência, sobreviver e viver durante a quarentena

 

A chegada de uma nova doença infecciosa causada pelo novo coronavírus e seu rápido espalhamento pelo mundo impõem a busca de soluções pela ciência. No momento em que a sociedade mais precisa da ciência, ela reage em meio ao crescente ataque ao conhecimento científico (o anticientificismo), às universidades públicas e aos cortes de recursos para pesquisa. 

Neste cenário, cientistas de todo o mundo buscam incansavelmente por vacinas e medicamentos eficientes contra o SARS-CoV-2 e analisam modelos matemáticos e métodos de conduta social que ajudem os gestores públicos a conter o contágio. Contudo, não são os únicos, a ciência não parou. Cientistas de todas as áreas experimentaram mudanças em seu trabalho e em sua vida.

Três cientistas ligados ao Laboratório de Genômica e bioEnergia (LGE) da Unicamp, em diferentes etapas de formação, dão seus depoimentos sobre os efeitos da quebra abrupta de rotina e a reorganização de suas vidas em meio a esse marco histórico. A pandemia e o isolamento social impõem diferentes níveis de dificuldades para estes jovens cientistas. Muitos trabalhos são práticos e dependem da infraestrutura do laboratório e do contato com pesquisadores mais experientes e orientadores. É sob essa supervisão que eles aprendem e crescem como cientistas. 

Luan Beschtold é apaixonado por ciências e com 19 anos já experimentou ser cientista. Ele completou o estágio do ensino técnico em Biotecnologia no LGE e se prepara para o vestibular. Jennifer não perde tempo e aproveita a graduação, participando de diversos projetos. Graduanda em Ciências Biológicas, ela faz iniciação científica. Já Fellipe é um cientista maduro com doutorado. Engenheiro Químico de formação, continua sua pesquisa no pós-doutorado. Os três concederam entrevistas por e-mail e aplicativo de mensagens contando a panaceia para seus projetos de vida após o COVID-19.  

Jennifer Wellen

Jennifer Wellen, 21 anos, estuda Ciências Biológicas na Unicamp e já está no final de sua graduação. Antes do estabelecimento da quarentena, ela estava animada escrevendo seu projeto de iniciação científica e acompanhando experimentos em andamento no Laboratório de Estudos da Dor e Inflamação no Instituto de Biologia.

A influência de alterações na dieta sobre comportamentos depressivos é o foco da pesquisa, que usa o camundongo como modelo para os testes, oferecendo a eles uma dieta rica em açúcar e gordura. Técnicas para o estudo de dor e depressão, como o teste de Von Frey, para quantificar a dor que o animal está sentindo, e o teste de interação social são aplicados para detectar o desenvolvimento de comportamentos depressivos.

Esse fluxo de trabalho, contudo, foi modificado. Os experimentos laboratoriais tiveram de ser interrompidos, dando mais espaço para análises feitas no computador. Através de um software livre Jennifer analisa os vídeos dos camundongos para o teste de interação social.

Com a queda de seu notebook durante a quarentena, com a tela virada para baixo, Jennifer teve problemas para continuar realizando as análises. Por sorte, ela conseguiu salvar os arquivos do projeto, mas precisou continuar seus estudos com um notebook fornecido pela coordenação do Instituto de Biologia.

“A comunicação fica muito falha à distância. O aprendizado é bem mais teórico do que seria um projeto bem experimental. Isso deixa tudo meio falho. Eu sinto que estou aprendendo muito menos e quando depende das pessoas para aprender está sendo muito demorado”, contou. As interações com cientistas mais experientes, os experimentos e todo o aprendizado no laboratório enriqueciam a pesquisa de Jennifer, que lamenta estar aprendendo menos e mais lentamente.

Jennifer, de Indaiatuba, está morando em uma República com seu namorado e outros três moradores. Ela teve de ficar em Barão Geraldo por conta de seus estudos e pesquisas e considera que voltar para a casa de seus pais agora seria quebrar a quarentena e trazer riscos desnecessários à sua família.

Mesmo com a saudade, Jennifer está feliz. A relação com seu namorado está muito mais próxima. O apoio e companheirismo nesses tempos cresceram. Os dois caminham cerca de 5 Km nas tardes com Greg, o cachorro da república, e depois se exercitam em casa. Fora de casa e durante as caminhadas, ambos usam máscaras e mantêm um distanciamento adequado de outras pessoas.

A arte e a cultura têm se mostrado refúgios não só para os cientistas, mas para todos nós que enfrentamos esses momentos difíceis. Devorar novas séries, filmes, músicas e animes são fontes de diversão para a estudante. “Nessa quarentena está até difícil indicar série e filme, porque eu virei uma otaku. Assisto muitos animes e eu terminei uns cinco.” Ela também conta que o lançamento do álbum Future Nostalgia da cantora Dua Lipa salvou a sua quarentena, com destaque para a música Break my Heart.

Felipe Mello

Fellipe Mello, 29, graduado em Engenharia Química e doutorando em Bioenergia, todos na Unicamp, está em seu primeiro ano do pós-doutorado. Logo que Fellipe terminou de montar um plasmídeo, a Unicamp decretou o fim das atividades não essenciais. “Eu precisava editar um gene de uma levedura minha, na verdade fazer o nocaute, que é deletar o gene do genoma de uma linhagem, substituindo esse gene por outro. E, daí, para isso, eu preciso de um plasmídeo, o CRISPR. CRISPR é aquela metodologia de edição genética.” Montar um plasmídeo é um processo complicado, ele conta, que leva mais de um mês para ser finalizado. Felizmente, Fellipe conseguiu terminar a tempo essa etapa do trabalho, evitando perdas ao seu projeto.

As idas ao laboratório e os trabalhos de bancada diminuíram. Embora Fellipe vá algumas vezes por semana lá para viabilizar o uso do robô de pipetagem, pelo qual ele é responsável, a maior parte do trabalho ele faz em casa. Mesmo distante, ele está em contato diário com seus alunos, discutindo projetos e os ajudando com análises de dados. A maioria dos alunos ainda trabalha no laboratório seguindo um esquema de rodízio para respeitar o distanciamento social. “Estamos trabalhando normalmente. A gente está em contato diário. A gente sempre conversa. Eu estou sempre ajudando elas [orientadas], principalmente a analisar dados. Muitas vídeo chamadas! Além das reuniões do laboratório convencionais, eu tenho feito bastante reuniões com as minhas alunas.”

Além de orientar seus alunos à distância, Fellipe está focado em escrever um novo projeto, se lançando em uma nova etapa de seu trabalho. O objetivo é desenvolver um biosensor baseado na levedura Saccharomyces cerevisiae capaz de detectar o vírus da COVID-19. Gonçalo Pereira, coordenador do laboratório, e a mestranda Carla Maneira também estão envolvidos na proposta, que já foi aprovada pela Inova para ser patenteada. Os três desenvolveram o projeto no início da quarentena, o submeteram recentemente à FAPESP e agora aguardam o resultado para financiamento. Em pouco tempo Fellipe conseguiu avançar em seus estudos, indo além de suas expectativas.

“Eu achei que não conseguiria trabalhar em casa porque meu trabalho era puramente experimental e de bancada, mas tem sido bem produtivo e estou conseguindo fazer bastante coisa.” Apesar de apegado à rotina e gostar das atividades presenciais no laboratório, o pós-doutorando está feliz com a rotina imposta pela quarentena.

O que mantém Fellipe animado é a atividade física. Antes da quarentena, ele praticava triátlon, crossfit, corrida e ciclismo. Hoje, com a compra de alguns equipamentos, ele  treina em casa e se mantém saudável. Para Fellipe, os esportes, principalmente os individuais, oferecem uma forma de se conectar consigo mesmo.

Fellipe, assim como Jennifer, também está isolado em casa com seu namorado e três outros amigos, longe da família. “Está todo mundo junto, o que ajuda bastante o processo. Ficar sozinho eu acho mais complicado.”

Os avós de Fellipe foram fazer o isolamento junto com seus pais em Resende, no interior do Rio de Janeiro, para facilitar os cuidados. Fellipe sente falta da família, mas não arrisca visitá-los.

Luan Beschtold

Luan Beschtold, 19, terminou o Ensino Médio em 2019 e agora seu foco principal é o estudo para o vestibular. Sua meta é cursar Engenharia Química na Unicamp. Ele também pensa na possibilidade de fazer Ciências Biológicas ou Farmácia como segunda opção.

No ano passado, Luan fez estágio no Laboratório de Genômica e bioEnergia da Unicamp como parte do curso técnico em Biotecnologia. Apesar do estágio encerrado, Luan fez muitas amizades, que o ajudaram nos estudos para o vestibular. Ele conta que recebeu uma grande quantidade de livros para pré-vestibular do pessoal do laboratório e está se guiando por eles. Quando ele não entende algum conteúdo, procura por videoaulas na internet.

Luan organiza uma rotina de estudos semanal no Excel, com a separação de matérias em períodos. “Eu estou estudando de segunda a sábado, das 8h às 18h com intervalo de 10 minutos a cada 50 minutos de estudo”. Durante a noite, ele descansa e aproveita para aperfeiçoar suas habilidades na guitarra, treinando novas músicas.

Luan está em isolamento em sua casa com a família e afirma que, durante a quarentena, somente seu padrasto costuma sair para a compra de produtos. “Me sinto um pouco preocupado em relação com o que pode vir pela frente. Para me distrair de todo esse caos estou treinando novas músicas na guitarra e assistindo animes”, comenta.

Atividades físicas são uma forma importante de manter o corpo e a mente saudáveis. Luan lamenta que agora sua rotina de esportes e exercícios se tornou muito limitada, mas tenta se adaptar às circunstâncias da quarentena. “Eu recentemente comecei um treinamento em casa e às vezes ando de bicicleta no meu bairro.”

Caminhando juntos

Os três cientistas estão lidando com momentos de ansiedade. Além da preocupação com amigos e familiares, há um grande sentimento de incerteza em relação ao futuro. O estabelecimento de uma rotina leve, que dê espaço para o lazer e atividades físicas é essencial para a manutenção da saúde mental. Estamos vivendo períodos de mudanças e é normal levar tempo para adaptar-se. Para que os cientistas continuem fazendo ciência é necessário que o bem-estar esteja em primeiro lugar nas preocupações.

A arte e a cultura também foram citadas pelos cientistas como refúgios para o enfrentamento desse momento difícil. E você? Como está lidando com a quarentena? Tem dicas de livros, músicas, filmes ou séries? Conta pra gente nos comentários!

Jennifer, Fellipe e Luan indicam:

Angélica Franceschini , comunicadora social – midialogia pela Unicamp, participou do programa Mídia Ciência da Fapesp no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp). Hoje faz mestrado em multimeios na Unicamp.

Continue lendo:

Diário de Israel #5 Laranja madura na beira da estrada

Para dar o tom: “Laranja Madura”, de Ataulfo Alves

 

Rehovot é uma cidade de médio porte, localizada à 20 Km ao sul de Tel Aviv, e foi fundada em 1890 pelos primeiros colonos judeus. No brasão vê-se uma laranja, um microscópio e um livro representando os citros, a ciência e o espírito. Os três itens me chamaram a atenção nos primeiros dias na cidade, mesmo antes de saber o significado deles para a região. 

ויקרא שמה רחובות כי הרחיב הי לנו

Apesar de industrial e tecnológica, a cidade foi no passado um polo agrícola, batizada por uma passagem bíblica em que Isaac, filho de Sara e Abraão, e seus homens chamam “Rehobot” o local onde abriram o terceiro poço sem causar conflito com locais, “porque agora, disse ele, o Senhor nos pôs ao largo, e prosperaremos na terra” (Gênesis 26:22).

Em 1904, Zalman Minkov, judeu polonês, compra as terras de um cristão árabe e transforma os vinhedos de árvores improdutivas em pomares de laranja. Com uma estação de trem, infraestrutura para exportação e a chegada de novos colonos judeus iemenitas, russos e etíopes, os laranjais se expandem e geram riquezas. Mais tarde, com a mecanização e a competição internacional, os pomares perdem a importância.

Hoje, pés da laranja “limta“, com frutos perfeitamente redondos, amarelos e amargos, enfeitam as ruas da cidade e as praças mantendo o passado vivo na memória. As oliveiras também são frequentes e me encanta as flores, ervas e plantas aromáticas que brotam nas varandas, sacadas e quintais. Caminhando pelas ruas, me pego bisbilhotando dentro das casas e apartamentos. A quantidade de plantas mantidas no interior também impressiona.

O cultivo das plantas é toda uma ciência. Além do Instituto Weizmann de Ciências, a cidade abriga o campus de agricultura, nutrição e medicina veterinária da Universidade Hebraica de Jerusalém, grandes empresas israelenses do setor alimentício e inúmeras startups de alta tecnologia.

Os livros representam o espírito, parte do tripé da cidade, e estão por toda a parte. Há prateleiras de livros em todos os halls de entrada de prédios sempre gratuitos e acessíveis a qualquer leitor. Rehovot também foi casa e ponto de encontro de alguns dos primeiros escritores e poetas da língua hebraica, entre eles Rachel Bluwstein, Moshe Smilansky e Benjamin Tammuz, para citar alguns exemplos. Parte da literatura, arte e cultura israelense nasceu aqui. 

Entre citros, ciência e espírito, sinto-me em casa.

“Numa gentil noite suave, eu irei

Para fora e imóvel,

Sem falar com uma única alma,

Vou sentar um pouco.

Vou descansar como quem busca refúgio

Do calor do siroco,

À sombra de uma árvore frondosa,

Enquanto sento sob seus pés.”

Parte do poema “Four Poems – One Gentle Evening Suave” de Rachel Bluwstein. Tradução do hebraico para o inglês de Elias Pater. Minha tentativa de tradução para o português.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALLE*E

Texto publicado originalmente em 13 de dezembro de 2020

Diário de Israel #4 O pião entrou na roda

Para dar o tom: “Roda Pião”, de Dorival Caymmi

 

Um dia antes do término da quarentena, fechei as malas, me dediquei a uma limpeza superficial do cubículo e empacotei os lixos de acordo com as instruções de segurança. Era uma terça-feira ensolarada, quando finalmente abri a porta do n. 103. Um corredor longo e dois lances de escada me separavam da saída principal do prédio. 

Arrastei as malas uma hora antes do combinado com a carona para fora do prédio. A rua sem saída limitava o trânsito de pedestres. Segura, retirei a máscara do rosto para sentir a brisa leve que passava à sombra de um jacarandá. 

Ziva e Grace organizaram suas agendas para me ajudar com a mudança para o apartamento oficial, fazer a primeira compra de supermercado e trocar um pouco de dinheiro para emergências. Não demorou muito para o carro entrar no bolsão. A dinâmica do tempo mudou quando entrei no carro em direção à avenida principal de Rehovot, Herzl. 

Juntas éramos um time participando de uma gincana. As duas olhavam atentamente cada segundo do relógio. Os movimentos eram coreografados, sem espaço para improvisação. As malas foram deixadas no apartamento, e seguimos o trajeto mais curto para cumprir todas as tarefas. 

A lista de itens essenciais para sobreviver às primeiras semanas foram lidas em voz alta por mim ainda no carro. No supermercado, elas se dividiram na busca pelos produtos. Eu, atônita, esperei junto ao carrinho e acatei todas as sugestões sobre as melhores aquisições. Tudo escrito em hebraico. As compras foram colocadas no apartamento sem nenhuma ordem, e voltamos para o Instituto Weizmann de Ciências.

No almoço, os integrantes do laboratório se reuniram com pão pita, homus e tahini, descumprindo as regras do distanciamento social. As mesas foram arranjadas ao ar livre em um vão do prédio protegido do sol. Por alguns instantes voltei à vida antes da Covid-19. 

À tarde, o professor me apresentou as instalações do laboratório. Entrei em todas as salas e conversei pessoalmente com cada um dos alunos. Paramos apenas para um café turco com cardamomo e doces típicos no meio da tarde e seguimos para mais um tour guiado pelos jardins e prédios até as casas de vegetação.  

Tudo rodava muito rápido como um tufão. No final do dia, já em casa, sentada na escrivaninha, como um pião, minha cabeça ainda dava as últimas voltas como que por inércia. Tento pensar sobre o que aconteceu e refazer mentalmente o dia. As imagens passam borradas e distorcidas.

O corpo inteiro doía, da cabeça aos pés. Depois do banho, meu cérebro parecia um arquivo em branco com o cursor piscando, excitado para começar a digitar algo. A cada piscada, um batimento cardíaco e nada mais. Bloqueio. A única certeza foi estar grata pelo próximo dia. 

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 25 de novembro de 2020

Madelaine Venzon: inseto praga, inseto solução

Madelaine Venzon, pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG) e coordenadora do Programa Estadual de Pesquisa em Agroecologia, estuda insetos benéficos para eliminar agrotóxicos dos cultivos e reduzir a contaminação ambiental.

 

Entusiasmo-me pela pesquisa que busca soluções para a agricultura baseada na natureza

Madelaine Venzon

O que a influenciou a seguir carreira científica?

No final do curso de agronomia na Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, me interessei pelo estudo dos insetos, principalmente, o controle de pragas por métodos alternativos, sem uso de agrotóxicos. As notícias de contaminação ambiental por agrotóxicos e outros agentes químicos me incomodavam na época e continuam me incomodando hoje.

Logo após formada, trabalhei com agrônoma por alguns meses em Caxias do Sul, minha terra natal. O excesso e a exclusividade do controle químico como método de controle de pragas e doenças na região chamava a atenção e me preocupava. Um ano após formada, iniciei o mestrado na Universidade Federal de Lavras (UFLA), Minas Gerais, sob supervisão do Prof. Cesar Freire Carvalho, quem me introduziu ao mundo dos insetos predadores. Desde então, meu interesse pelo controle biológico só aumenta.

Qual a motivação que direciona o seu trabalho?

Ser útil e realizar pesquisas necessárias para a sociedade. Sinto uma enorme realização pessoal com o meu trabalho! Minha motivação continua a mesma do início da carreira: a busca por alternativas ao uso de agrotóxicos. A formação de recursos humanos na minha área de estudo e as atividades de popularização da ciência me motivam muito também.

Por exemplo, quando em uma atividade de intercâmbio com agricultores, você vê que uma simples explicação com demonstração prática de como os insetos são benéficos para a agricultura, transforma o olhar dessas pessoas sobre um determinado organismo. É motivador! Por isso, falo sempre aos meus colegas: – Saiam do conforto dos seus laboratórios e das salas de aula de vez em quando e interajam com as pessoas, com os agricultores, os estudantes, etc. Isso dá uma visão diferenciada à pesquisa, especialmente quando queremos realmente ser úteis!

Quais as contribuições que você fez para a ciência?

Comecei a carreira de pesquisadora na Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG), na cidade de Uberaba, Minas Gerais, em 1992, logo após finalizar o mestrado. Ali fui pioneira na implantação de um projeto de controle biológico de percevejos da soja.

Depois do doutorado em controle biológico realizado na Universidade de Amsterdã na Holanda, continuei minha pesquisa na EPAMIG de Viçosa, Minas Gerais. O desafio era aplicar os conhecimentos adquiridos na agricultura familiar. Foi nessa época que iniciei meus estudos em controle biológico conservativo, com foco em estratégias para aumentar as populações de inimigos naturais nos cultivos de café e de hortaliças.

Considero importante o trabalho que faço que une pesquisa científica básica e aplicada na área de manejo agroecológico de pragas em benefício, principalmente, dos pequenos agricultores. Meu trabalho é feito em diferentes escalas – laboratório, casa de vegetação e campo – e os resultados são publicados em periódicos indexados para a comunidade científica. No entanto, na minha opinião, meu diferencial está nas ações de popularização da ciência que faço. Tenho sempre a preocupação de comunicar meus resultados de pesquisa em linguagem fácil e acessível em circulares técnicos ou informes agropecuários publicados pela EPAMIG. 

Outra contribuição é a edição do livro 101 Culturas: Manual de Tecnologias Agrícolas, editora UFV (ed. 2, 2019), considerado o “Manual do Agrônomo” por ser uma fonte relevante sobre temas do dia a dia de agrônomos, como exigências climáticas, épocas de plantio, cultivares disponíveis, tratos culturais, colheita e comercialização para 101 culturas de importância econômica. O livro reúne 250 especialistas e é fruto das pesquisas realizadas na EPAMIG e também em outras instituições de pesquisa e ensino do país. 

Quais são os maiores desafios das cientistas no Brasil?

Fazer ciência é um desafio no Brasil. O tempo para nos dedicarmos exclusivamente à pesquisa é um dos entraves. Grande parte do tempo é gasto em atividades burocráticas e na busca por recursos para trabalhar, financeiros e logísticos. Sobra pouco tempo efetivo para mergulhar fundo nas pesquisas. A falta de financiamento e de infraestrutura para pesquisa, para citar alguns exemplos, são outros gargalos, que representam sérias dificuldades.

O que mais a entusiasma na atividade de cientista?

Entusiasmo-me pela pesquisa que busca soluções para a agricultura baseada na natureza. É um trabalho sem fim, cheio de descobertas e desafios!

Algum conselho para as jovens aspirantes a cientista?

Usem bem o tempo, especialmente durante a pós-graduação. Leiam muito. Há uma infinidade de fontes a serem exploradas. Visitem o campo e observem a natureza e o comportamento dos organismos. Observem como as plantas reagem ao ataque dos insetos e como os insetos se relacionam. Cumpram sempre seus compromissos de trabalho e, se possível, façam um treinamento no exterior, pois a experiência de vida pessoal e profissional é imensa.

Sobre a cientista convidada

Madelaine é engenheira agrônoma formada pela Universidade Federal de Pelotas, fez mestrado em Fitossanidade (Entomologia) na Universidade Federal de Lavras (UFLA) e doutorado pela Universidade de Amsterdã, Holanda. Começou a carreira de pesquisadora na Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG) em 1992. Em 2017 recebeu o prêmio de Destaque Mérito Científico da EPAMIG pelos trabalhos desenvolvidos em prol do controle biológico.

Já escreveu mais de 100 artigos em jornais científicos arbitrados, além de 15 livros e 45 capítulos de livros de editoras nacionais e internacionais. Orientou mais de 120 alunos, entre iniciação científica, treinamento técnico, trabalho de conclusão de curso, especialização, pós-graduandos (mestrandos e doutorandos) e pós-doutorandos. Atualmente é professora nos cursos de Pós-Graduação em Entomologia e em Defesa Sanitária Vegetal, ambos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), e coordena o Programa Estadual de Pesquisa em Agroecologia.

Inseto praga, inseto solução

Madelaine busca soluções na natureza para uma agricultura menos dependente de químicos e moléculas sintéticas e mais saudável e segura para os seres humanos e demais organismos do planeta Terra. A tarefa requer o estudo dos ecossistemas e da teia de relações entre diferentes organismos que os compõe. Observar e contemplar a natureza faz parte do seu “fazer ciência”. 

Uma das soluções para evitar ou reduzir o uso de agrotóxicos para controlar pragas e doenças que causam prejuízos às lavouras está no controle biológico conservativo, tema de estudo da cientista. O controle biológico conservativo reúne práticas de manejo que promovem e protegem populações de organismos considerados inimigos dos organismos que se quer combater. Os chamados “inimigos naturais” podem ser insetos, fungos, bactérias, etc. que se alimentam do organismo praga, predam seus ovos ou formas jovens, depositam seus ovos nele ou infectam-no com alguma doença. As possibilidades na natureza são inúmeras. 

Um prática do controle biológico conservativo é o plantio na lavoura de plantas não-cultiváveis ou não-comerciáveis que sejam fonte de alimento ou que sirvam de ninhos artificiais para os inimigos naturais. Para ilustrar, o uso de gergelim ao redor de plantações de arroz aumenta o número de inimigos naturais das pragas comuns à essa cultura e, na China (entre 900 e 1200 a.C.), ninhos da formiga-verde (Oecophylla smaragdina) eram espalhados deliberadamente pelas lavouras de citros para o controle de insetos, que danificavam folhas. 

Usar um organismo contra o outro é ecologicamente correto e mais barato que o uso dos famigerados agrotóxicos. De acordo com um estudo recente, o uso do controle integrado de pragas com o controle biológico conservativo aumenta a produção em 5-40% e reduz o uso de químicos do grupo pesticidas em 30-70%. Apesar de antigas, essas práticas são ainda pouco estudadas e exploradas comercialmente. O fato é que os benefícios econômicos, principalmente, para pequenos agricultores e as vantagens ecológicas e ambientais dessas práticas poderão ser estratégicas para a produção de alimentos em um futuro incerto de crise climática.

Crédito de imagem: Pixabay no Pexels

Entrevista publicada originalmente em 29 abril de 2020.