Erika Medeiros: veste o jaleco

No Planteia, cientistas de ciências biológicas e agrárias compartilham suas experiências. Republicamos hoje nossa entrevista com Erika Valente de Medeiros, professora da Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE). Do sonho de vestir jaleco à carreira acadêmica, Erika destaca que fazer ciência exige dedicação e coragem.

Inteligência emocional é o mais importante nessa profissão, determina até onde você irá e com quem você vai

Erika Valente de Medeiros

O que a influenciou a seguir carreira científica?

Sonho. Quando criança, eu vivia em uma realidade em que as oportunidades eram ínfimas e a violência imperava. Sonhava em sair ou minimizar essa realidade e a única forma que encontrei foi estudando. Sonhava em ser astronauta ou cientista. Logo percebi que a primeira opção seria muito difícil. Na minha adolescência, meu pai fazia hemodiálise. A realidade que já era ruim, ficou pior. Diante da doença dele, descobri um símbolo que me acalmava: pessoas de jaleco. A vontade de vestir um jaleco aumentou e ser cientista se tornou a melhor opção.

Sabia que no Brasil as chances de você ser uma cientista aumentariam muito como professora universitária. Minha vontade de seguir a carreira acadêmica se fortaleceu. Já no primeiro ano de graduação, procurando estágio, soube que uma professora de química do Departamento de Antibióticos buscava alunos. Ela não aceitava biólogos, mas me deu uma chance. Com o tempo, ela passou a preferir biólogos por ver um diferencial para a pesquisa que ela fazia. Fui aceita para o mestrado em Recife e no Rio Grande do Norte. Antes de decidir, fui assaltada e quase estuprada e optei por sair de Recife.

Fiz mestrado e doutorado no Rio Grande do Norte. Não foi fácil. Fui a primeira bióloga aceita no curso de pós-graduação em agronomia e sofri um bocado. O descrédito por ser bióloga me impulsionou a provar minha competência. Fiz mestrado em um ano e oito meses e o doutorado em apenas dois anos. As pessoas comentavam que biólogo com pós-graduação em agronomia teria dificuldade em conseguir emprego. A maioria dos concursos na área de fitopatologia exigia formação em agronomia e eu não podia me candidatar. 

Optei por concursos na área de microbiologia, coerentes com minha tese em microbiologia agrícola. Comecei a vida acadêmica com 27 anos, uma das professoras mais jovens da minha instituição, a Universidade Federal do Agreste de Pernambuco, em Garanhuns, interior de Pernambuco. Hoje dou aulas, oriento alunos de graduação, pós-graduação e pós-doutorado e sou bolsista de produtividade em pesquisa, um sonho que realizei há cinco anos atrás. E não parei por aí… 

Qual a motivação que direciona o seu trabalho?

Minha maior motivação é ajudar a mudar a realidade da minha Região. Acredito que a pesquisa deve mitigar ou solucionar problemas da sociedade. A universidade tem papel social. Essa busca por mudanças tem dois grandes aspectos. O primeiro é mudar a realidade de alguns discentes brilhantes, com potencial de se tornarem atores de mudança na sociedade. Se não fosse a universidade, eles não seriam descobertos. O segundo é dar respostas diretas aos problemas do campo através de pesquisas aplicadas. Por exemplo, eu moro em uma região considerada o bolsão de pobreza de Pernambuco. A maioria dos produtores plantam para subsistência, com pouca ou nenhuma tecnologia, o que gera perdas na produção. Desde que iniciei na carreira acadêmica em 2009, minha motivação é diminuir essas perdas com ferramentas sustentáveis e torná-las acessíveis a esses produtores.

Quais as contribuições que você fez para a ciência?

Enquanto bolsista de iniciação científica sintetizei moléculas e avaliei suas funções, principalmente como antibióticos. Vi camundongos com convulsão ter uma melhora no quadro clínico ao receber essas moléculas. Também, participei de pesquisas em que moléculas extraídas de plantas eram testadas para funções biotecnológicas diversas.

No mestrado e no doutorado trabalhei com um fungo (Monosporascus cannonballus) que dizimou a produção de melão do Rio Grande do Norte e no Ceará. Na época ambos os Estados eram responsáveis por cerca de 95% da exportação de melão do Brasil. No mundo, poucas pessoas estudam esse fungo e no Brasil, somente meu orientador e eu. 

Descobrimos que esse fungo era um habitante natural do solo. Dependendo do manejo do meloeiro, o fungo vira um potente patógeno. Desenvolvi duas moléculas capazes de combatê-lo, sem matá-lo, ajudando as plantas a se desenvolverem melhor. As moléculas eram promissoras também para o manejo de outros patógenos habitantes do solo.

Já como pesquisadora em início de carreira tive três projetos aprovados por agências de fomento para descobrir qual o principal patógeno do solo que estava dizimando a produção de mandioca em Pernambuco e buscar formas alternativas de manejo para a cultura. A pesquisa foi demanda de um grupo de agricultura familiar que eu participava com outros atores da sociedade, entre eles, secretarias de agricultura, órgãos de extensão, cooperativas e produtores. Desde então, desenvolvemos diversas ferramentas para mitigar o problema da podridão radicular da mandioca, incluindo publicação de artigos em revistas internacionais de impacto e registro de patentes.

No pós-doutorado na França, os pesquisadores do centro de pesquisa queriam entender a forma de recuperação de áreas degradadas por agricultura na Caatinga, maior floresta tropical seca do mundo. O estudo foi realizado através de três redes de pesquisadores: SISBIOTA-Matas Secas, NEXUS-Caatinga e INCT:ONDACBC. Os estudos permitiram caracterizar a identidade da microbiologia de solo degradados, com diferentes manejos ou em recuperação, usando a enzimologia ambiental como ferramenta. Os primeiros trabalhos de enzimologia na área de Caatinga é do nosso grupo!

A relação com a França estimulou o meu grupo a trabalhar com biochar (carvão vegetal, conhecido também como biocarbono, empregado na correção do solo) e ampliar minha rede de colaboradores no Brasil e no exterior. O estudo envolve diversas abordagens multidisciplinares, por exemplo, uso do biochar como componente alternativo no manejo de doenças de plantas e na fertilização do solo.

Quais são os maiores desafios das cientistas no Brasil? 

Muitos são os desafios dos cientistas no Brasil e um pouco mais para as mulheres cientistas. O primeiro desafio é tornar-se uma cientista. Para isso, você terá que passar pelo mestrado e pelo doutorado. É necessário estudar por mais anos, ganhando uma bolsa com dedicação exclusiva, longe do mercado de trabalho. Diante dos cortes de investimento na ciência brasileira, ter uma bolsa aprovada é ganhar um prêmio. Contudo, o fato de consegui-la não garantirá estabilidade, tampouco você terá qualquer direito trabalhista. 

Depois você terá que passar em um concurso público, perto ou longe de onde você mora. Terá que trabalhar muito para publicar os trabalhos, às vezes colocando dinheiro do próprio bolso, e concorrer aos editais com pesquisadores do Brasil inteiro para conseguir financiamento de órgãos de fomento para montar um laboratório ou uma estrutura mínima de trabalho. Esses desafios são mais leves quando se tem parcerias.

Se você for uma cientista que trabalha em universidade, terá que ministrar aulas, fazer extensão, orientar alunos, formular projetos, comprar materiais de custeio e permanentes, administrar verbas, prestar contas e lidar com burocracias antipesquisa. Hoje, por exemplo, uma das maiores dificuldades que tenho é comprar reagentes que dependem de autorização da Polícia Federal. O pedido deve ser solicitado pela universidade e a autorização não chega. Estamos aguardando há meses e, por isso, interrompemos as análises.

O que mais a entusiasma na atividade de cientista?

Entregar respostas para uma agricultura sustentável em um país cuja economia é baseada no setor agrícola. Ver minha pesquisa divulgada em grandes revistas da área e ter o reconhecimento de pesquisadores do exterior. Tudo isso mostra que você está no caminho certo. Fiquei muito feliz ao ver na plataforma Researchgate, que o pesquisador que inventou um dos métodos de análise de atividade enzimática baixou e leu meu artigo!

A formação de recursos humanos me anima. Pensar que os alunos poderão se tornar parceiros, cientistas, vê-los crescendo profissionalmente e pessoalmente, ganhando o mundo e trazendo novidades. É muito orgulho! 

Também fico muito feliz em ter meu nome entre os contemplados em um edital, dada a grande concorrência no país. Ser aprovada para a minha primeira bolsa de produtividade foi um desses momentos. É um grande prêmio de reconhecimento para quem trabalha com pesquisa. Sonho ainda em progredir na carreira e chegar à pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Outra honra foi ser convidada para reuniões da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para contribuir com a avaliação de projetos de pesquisa importantes para o país. Aprendi muito nessas reuniões, fiz novos contatos e me sinto realizada. 

Algum conselho para as jovens aspirantes a cientista?

Estude muito e tenha gosto pelo estudo. Se dedique ao inglês, pois é a língua oficial da ciência. Procure fazer diferente do que todo mundo faz. Seja determinada, teimosa, não desanime, mesmo que os outros digam que você não consegue. Quando disserem isso, ressignifique e use como combustível para seguir. Se imponha, pois a sociedade ainda favorece os homens. Chore quando o seu experimento der errado, respire fundo e retorne. Algumas das grandes descobertas foram feitas com erros. 

Respeite seus limites. Tenha metas e diga não a tudo que te desvie delas. Forme parcerias com quem te coloque para cima, pois ninguém consegue nada sozinho, especialmente neste meio onde a concorrência é desenfreada. Tenha humildade, ouça mesmo aquele que você acha que não pode contribuir com você, pois um insight pode te tirar da “caixinha”. 

Saia da sua zona de conforto. Vá longe, abrace todas as oportunidades que tiver para passar um tempo fora do país, aprenda outras culturas e forme parcerias com outros pesquisadores, mostre o seu diferencial e não repita o que eles estão fazendo. Inteligência emocional é o mais importante nessa profissão, pois determinar até onde você irá e com quem você vai. Como costumo dizer aos meus alunos, parafraseando o astronauta Buzz Lightyear nos filmes da franquia Toy Story… Vá ao infinito e além!!!

Como está o andamento das pesquisas em meio a pandemia de COVID-19? Quais os desafios e as estratégias adotadas para superá-los?

No início a adaptação a pandemia da COVID-19 foi difícil, pois nunca tínhamos passado por isso. Como líder do grupo de pesquisa, tive que tomar algumas decisões doloridas para quem estava no meio das análises, com experimentos em andamento. Me senti responsável por vidas, mais importantes do que qualquer outra coisa, e proibi o acesso dos alunos ao laboratório. Afinal, tudo poderá ser refeito. Paramos tudo e aceitamos as determinações para enfrentar o desconhecido. O que dói mais é não saber quando termina a crise e como voltaremos a normalidade. 

Olho esse período como uma oportunidade para repensar a vida em todos os seus aspectos, inclusive na pesquisa. Uma boa oportunidade para desengavetar artigos e aprender coisas novas. Existe a pesquisa de dados, já publicados ou disponível em bancos de dados, que podem ser usados para formular e testar hipóteses inéditas sem sair de casa. 

Faço reuniões virtuais com o meu grupo para falar de trabalho ou outros assuntos. A estratégia que bolei foi dividir os participantes em equipes com linhas de trabalho similares. Passei algumas diretrizes para repensarmos todos os trabalhos, acolhendo os alunos em suas dificuldades, ouvindo ideias, para acharmos saídas para cada caso.

O importante é perceber que tem dias mais difíceis. Neles precisamos dar espaço aos sentimentos, “respirar” um pouco para, então, voltar com toda disposição. Permita-se passar por isso, pois você não é uma máquina. Mantenha a mente ativa, reinvente-se, respire fundo, cuide da vida pessoal e profissional, siga, pois sairemos pessoas melhores dessa. E quem sabe pesquisadores melhores! Vai passar!

Sobre a cientista convidada  

Erika Medeiros é bióloga pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e fez mestrado e doutorado em Fitotecnia pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). O pós-doutorado em ecologia microbiana de solos foi realizado na França. Hoje é professora na Universidade Federal do Agreste de Pernambuco (UFAPE) e faz pesquisas multidisciplinares com foco em microbiologia e bioquímica de solos. Atua como consultora da CAPES na avaliação quadrienal dos programas da área de Ciências Agrárias I.

Entrevista publicada originalmente em 10 de junho de 2020.

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