Os encantamentos da leitura: os dos modos de ler e ser na contemporaneidade

Criança deitada realizando a leitura de um livro que emite uma luz amarela brilhante e cintilante.

As pessoas leem menos em um mundo digitalizado? Maryanne Wolf defende a ideia de que o debate não é sobre quantidade de leitura, mas sobre a fragmentação desta leitura

Autora

Ana de Medeiros Arnt

Vocês gostam de ler?  A leitura de vocês acontece mais em aplicativos e artefatos digitais ou em livros e documentos impressos? Volta e meia a relação entre aprendizado, leitura e conhecimento adentra nosso trabalho de formação docente e as relações necessárias para se pensar a sala de aula e a produção de conhecimento.

Para aquelas pessoas que são ávidas leitoras desde muito cedo, talvez pareça estranho um mundo em que a leitura não faça parte de um absoluto lazer (e tarefa) do cotidiano. Algo que participa da vida de muitas pessoas, desde tenra infância, é hábito quase automático e imperceptível, frente a toda a oferta de palavras que se apresentam em nossa vida.

Há alguns anos escrevi uma resenha sobre o livro O cérebro no mundo digital, de Maryanne Wolf (2019), que eu nunca publiquei. Revisitando o livro, recentemente, para pensar relações de leitura e aprendizagem, no contexto educacional contemporâneo, achei que poderia ser interessante publicar este texto, neste formato de resenha.

A leitura na trajetória de uma docente

Sou professora e trabalho com formação docente em ciências biológicas há quase duas décadas. Ao iniciar meu trabalho profissional, a internet começava sua expansão ainda dentro da universidade. Em alguns raros casos, alguns estudantes já usavam internet em suas casas. Para se ter uma ideia, eu fui ter internet em casa – e usar para buscar artigos e estudos acadêmicos – no início do mestrado.

Assim, durante a minha graduação e grande parte do mestrado, a leitura se fazia a partir de livros ou artigos e trechos de livros. A tarefa da leitura para estudar ou ter momentos de lazer, era sempre a partir de papéis, em bibliotecas.

A leitura se fazia em espaços que acolhiam o silêncio ou, para aqueles que moram em grandes centros urbanos, nos trajetos em transportes coletivos.

Ao longo destas últimas duas décadas, pode-se dizer que mudou radicalmente o modo de trabalhar dentro das universidades. Bem como, em alguns casos, dentro do espaço escolar básico também. Durante a pandemia, também tivemos um grande movimento de digitalização da vida – para estudos e para a rotina em geral. Dessa forma, atualmente não só os estudantes têm computadores pessoais, como quase todos trabalham e lêem através dos aparelhos de smartphones. Contudo, sempre importante se perguntar sobre qual internet estes têm acesso… Todavia, estas notificações dos diversos aplicativos chegam continuamente, muitas vezes rompendo com a atenção dedicada à leitura e fragmentando as informações de estudo.

Nós, docentes, também modificamos nossa maneira de trabalhar. Buscamos materiais que, cada vez mais, estão acessíveis nas mídias digitais. Bem como nos entregando às facilidades de aplicativos de sala de aula, que comunicam com facilidade e rapidez qualquer material, artigos, avaliações que precisemos disponibilizar aos estudantes.

Todavia, há uma percepção de que, ao longo deste tempo de facilidade de acessos às informações, temos nos sentido perdidos frente à quantidade de informação recebida todos os dias. Também não é incomum a sensação de que estamos sempre atrasados nos prazos e sobrecarregados de mais e mais coisas a serem feitas. E isso inclui, no caso da docência e da pesquisa: quantidade de coisas a serem lidas, escritas, comunicadas, corrigidas, debatidas…

Hoje em dia as pessoas leem cada vez menos!

Ainda como docente, uma das questões que repetidamente se faz presente é a de que as pessoas estão lendo menos. Além disso, de que há prejuízo do aprendizado, da compreensão do mundo, das possibilidades de aprofundamento frente aos estudos.

Ao contrário do que se afirma, eu costumo pensar que as pessoas estão lendo cada vez mais. Passamos os dias imersos em smartphones e aplicativos que nos impelem a ler notificações continuamente. Ao aceitarmos olhar uma notificação, somos capturados por mais e mais palavras. Isto seja nas redes sociais, aplicativos de mensagens instantâneas, e-mails, aplicativos de educação à distância. Considerando que, mesmo em disciplinas presenciais, utilizamos continuamente para inserir materiais extras), etc. Passamos o dia inteiro lendo e escrevendo.

Entretanto, esta leitura e escrita sempre assemelha-se mais a um conjunto de ideias isoladas e distantes entre si, do que algo que fazemos com uma atenção dedicada. Desta forma, conversamos com um grupo de amigos por mensagens, depois respondemos um e-mail para estudantes que estão com dúvidas em avaliações, entramos na rede social e vemos um link de notícias – que clicamos e lemos apressadamente, pulando algumas partes – comentamos algum texto ou foto de conhecidos, voltamos ao artigo que está em outra janela do smartphone ou computador. Tudo isso sem pararmos para observarmos com atenção qualquer uma destas janelas que se abrem e fecham. Mas estamos lendo, estamos lendo muito e constantemente.

Marianne Wolf fala sobre isso e muito mais no livro dela…

O cérebro no mundo digital: uma demanda de leitura

Uma das questões que Wolf aborda neste livro, embora não pareça ser novidade, é sobre o quanto nossa leitura nos dias de hoje é fragmentada, não linear. Sendo que uma possível consequência torna-se a leitura pouco aprofundada. Dessa maneira, a autora relaciona isso à ideia de tédio contemporâneo causado pela imersão em notificações e leituras que se interrompem por inúmeras notificações de aplicativos diversos. Wolf aponta para as diferenças da leitura em materiais impressos – em especial livros – e leitura nas telas, como parte de sua pesquisa, que busca compreender como aprendemos a ler a partir destes materiais.

As memorizações geográficas em um livro físico, até as intermináveis linhas rolando uma tela, nos possibilitam aprender sobre as palavras e seus sentidos de formas diferentes. Ao ler um material impresso, as páginas têm informações limitadas, podemos localizar “geograficamente” as informações. Por exemplo, se trechos específicos estão em páginas ímpares ou pares, na parte superior, central ou inferior de uma página. Wolf aponta que este “rastreio” de leitura e informação pelo espaço físico das páginas nos dão informações diferentes do que a leitura em uma tela.

A leitura da tela, ao “passarmos para cima” o texto, novas linhas vão emergindo, enquanto aquelas já lidas desaparecem. Assim, as mesmas linhas podem ocupar diferentes espaços nesta tela, dependendo deste rolar de linha. Ademais, também podemos modificar o tamanho das linhas e letras que aparecem para nós e a ideia de “paginação” nem sempre faz sentido em uma leitura digital.

Para quem aprendeu a ler em materiais impressos, ressalto o hábito dos estudos a partir de anotações, grifos, etiquetas que vamos inserindo nas páginas impressas. Na leitura digital, muito embora existam modos de realizar algumas destas intervenções próprias no texto, eu, particularmente, ainda não consegui fazer isso com a mesma eficácia.

De qualquer modo, posso afirmar que fui capturada pelo modo como Wolf nos leva a pensar, enquanto nos escreve. O livro O Cérebro no Mundo Digital apresenta um formato extremamente acessível para compreendermos como aprendemos a ler e a importância da leitura na contemporaneidade. A autora apresenta suas pesquisas e perguntas a partir de sua trajetória como leitora e estudiosa da literatura, até deparar-se com a pergunta: como as pessoas aprendem a ler?

Esta pergunta a faz pensar a literatura a partir de outras perspectivas. Ou seja, fazendo-a embarcar em pesquisas que lhe eram completamente diferentes do que fazia até então, dentro do campo da literatura. Dessa forma, para apresentar seu estudo, Maryanne Wolf traça as relações do aprendizado com a leitura e o cérebro leitor através da escrita de cartas. De um modo direto e nos convidando a um diálogo, o livro tem uma escrita leve. A leitura nos envolve, pela simplicidade da escrita, sem perder a profundidade das questões debatidas. A cada carta, um tema central vai sendo discutido, em conversas com a literatura e a ciência.

Por fim, em vários momentos O cérebro no mundo digital parecer uma leitura angustiante por nos levar aos temores de como temos vivenciado a leitura contemporaneamente. Assim, Maryanne Wolf também nos traz caminhos possíveis e possibilidades de aprendizado com as novas tecnologias. Novas questões que emergem, em termos de pesquisa e de organização deste que é um dos hábitos mais fascinantes que desenvolvemos em nossa cultura. Além disso, ela possibilita, para todos nós, com a difícil tarefa de abordar neurociência para não especialistas, lembrar o motivo do encantamento pela leitura. Incluindo as razões pelas quais deveríamos batalhar por um mundo que se aprofunde entremeado pelos conhecimentos proporcionado pelas palavras.

“Leio para encontrar uma razão nova para amar este mundo e também para deixar este mundo para trás – para entrar num espaço onde eu possa vislumbrar o que está além de minha imaginação, além de meu conhecimento e de minha experiência da vida” (Wolf, 2019, p.120).

Para Saber Mais

Wolf, Maryanne (2019) O cérebro no mundo digital : os desafios da leitura na nossa era, São Paulo: Contexto.

Sobre a autora

Ana de Medeiros Arnt é bióloga, Livre Docente em Ensino e Divulgação Científica, professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da Unicamp. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉 

Como citar:

Arnt, Ana. (2023). Os encantamentos da leitura: os dos modos de ler e ser na contemporaneidade. Revista Blogs Unicamp, V.9, N.2. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2023/11/29/os-encantamentos-da-leitura-os-dos-modos-de-ler-e-ser-na-contemporaneidade/
Acesso em dd/mm/aaaa.

Sobre a imagem destacada:

Fotografia Freepik. Arte por Juliana Luiza.

As pessoas leem menos em um mundo digitalizado? Maryanne Wolf defende a ideia de que o debate não é sobre quantidade, mas fragmentação

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