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Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar

Imagem de uma mulher, maquiada e arrumada, com texto digital no fundo dizendo não é não três vezes
A Lei “Não é Não” fragiliza o debate sobre violência sexual em espaços públicos ao limitar os espaços em que o protocolo de proteção pode ser acionado

Autoria

Ana de Medeiros Arnt

Durante a primeira semana de janeiro de 2024, muitos veículos de comunicação noticiaram a nova Lei n. 14786/23, promulgada no dia 28 de dezembro de 2023. A lei cria o protocolo “Não é Não” e trata da prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e proteção à vítima. 

No entanto, houve questionamentos acerca da lei, alguns deles irei esclarecer abaixo, em 5 itens. Considerando que o texto é mais longo que o usual, em função de eu trazer trechos da lei e outros documentos, se teu interesse for de um assunto mais específico, podes ir direto ao tópico marcado! 

(1) não é não, (2) protocolo e lei 14.786/23, (3) PL 03/2023 e Relatório do PL, (4) problematizações acerca da Lei e, por fim, (5) falar sobre cultura, misoginia e violência contra a mulher.

Não é não

“Não é não” é uma frase afirmativa que podemos chamar de clássica dentro de qualquer campanha de proteção à mulher nos últimos anos. Ela parte do pressuposto de, a partir de uma frase curta, comunicar um ato básico de respeito. “Quando se diz não, queremos dizer NÃO”, e a partir disso, é preciso que se respeite como uma decisão da pessoa. Parece simples, mas dentro de uma cultura extremamente machista, sabemos que nem sempre mulheres são compreendidas e respeitadas a partir de suas escolhas e decisões sobre seus próprios corpos.

Uma lei que busca implementar um protocolo de ação, a partir desta frase emblemática, diz ao que veio de maneira simples e rápida: é uma lei cujo princípio é proteger a mulher e suas decisões.

O que é um protocolo?

Protocolo nada mais é do que um conjunto de prescrições a serem seguidas, com um passo a passo. Um exemplo bem banal do cotidiano que pode ser entendido como protocolo são receitas. Sim! Fazer comida seguindo uma receita ao pé da letra é um protocolo. Há ingredientes que precisam de uma medida correta e uma ordem para serem misturados. Se nós mudamos a ordem, ou mudamos as medidas, tudo pode dar errado.

Pois bem, protocolo é um conjunto de regras, organizadas para serem seguidas como um passo a passo, para que um determinado resultado seja alcançado. Os protocolos são importantes, dentro do campo jurídico, tanto quanto científico, exatamente por serem passíveis de serem conferidos. Com isso, sabemos em que ponto algo pode ter falhado, pois podemos conferir cada etapa de execução das nossas ações.

Dito isso, vamos entender agora qual a relação entre essa noção de protocolo, na Lei 14.786/23.

Onde será implementado o protocolo, segundo a lei?

No caso da Lei 14.786/23, o objetivo é implementar um protocolo, chamado “Não é não”, tal como consta no Artigo 2º:

O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa. (grifos nossos)

O que caracteriza constrangimento e violência?

Já no Artigo 3º, existe a definição de constrangimento e de violência, caracterizando o que é necessário para que o protocolo seja operacionalizado:

I – constrangimento: qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação;

II – violência: uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor. (grifos nossos)

Quais são os direitos da mulher e os princípios do protocolo?

Ainda nesta lei, consta os princípios a serem seguidos para o Protocolo (artigo 4º) e os direitos da mulher (Artigo 5º). Vamos a eles:

Art. 4º Na aplicação do protocolo “Não é Não”, devem ser observados os seguintes princípios:

I – respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida;

II – preservação da dignidade, da honra, da intimidade e da integridade física e psicológica da vítima;

III – celeridade no cumprimento do disposto nesta Lei;

IV – articulação de esforços públicos e privados para o enfrentamento do constrangimento e da violência contra a mulher.

Art. 5º São direitos da mulher:

I – ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos;

II – ser informada sobre os seus direitos;

III – ser imediatamente afastada e protegida do agressor;

IV – ter respeitadas as suas decisões em relação às medidas de apoio previstas nesta Lei;

V – ter as providências previstas nesta Lei cumpridas com celeridade;

VI – ser acompanhada por pessoa de sua escolha;

VII – definir se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas nesta Lei;

VIII – ser acompanhada até o seu transporte, caso decida deixar o local.

No caso, o artigo 4º diz respeito ao atendimento à vítima e sua proteção nos estabelecimentos e para relatos da violência para a produção de boletins de ocorrência, por exemplo. Já o artigo 5º aponta para ações e comportamentos que devem ser seguidos assim que for detectado ou relatado um constrangimento, ou violência. 

Quem é responsável pela tomada de ações em caso de violência e assédio?

Estas medidas, apontadas nos Artigos 4º e 5º devem ser tomadas pelo estabelecimento em que esta mulher se encontra, com pessoas treinadas para isto. Isto está descrito no Artigo 6º, que versa sobre os deveres dos estabelecimentos:

I – assegurar que na sua equipe tenha pelo menos uma pessoa qualificada para atender ao protocolo “Não é Não”;

II – manter, em locais visíveis, informação sobre a forma de acionar o protocolo “Não é Não” e os números de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180;

III – certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência, facultada a aplicação das medidas previstas no art. 7º desta Lei para fazer cessar o constrangimento;

IV – se houver indícios de violência:

a) proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas nesta Lei;
b) afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual, facultado a ela ter o acompanhamento de pessoa de sua escolha;
c) colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato;
d) solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;
e) isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente;

V – se o estabelecimento dispuser de sistema de câmeras de segurança:

a) garantir o acesso às imagens à Polícia Civil, à perícia oficial e aos diretamente envolvidos;
b) preservar, pelo período mínimo de 30 (trinta) dias, as imagens relacionadas com o ocorrido;

VI – garantir todos os direitos da denunciante previstos no art. 5º desta Lei.

O estabelecimento tem, portanto, o dever de acolher e proteger a vítima, tanto quanto de denunciar e identificar o(s) agressor(es). Também deve manter informações visuais sobre como acionar o protocolo.

Notas sobre o Não é Não

Alguns estabelecimentos já possuem este tipo de ação. Eventualmente vemos nas portas e paredes de banheiros, indicativos de que podemos comunicar uma situação de constrangimento ou violência, realizando algum pedido específico (com nomes específicos, por exemplo), que sinalize o problema. Neste caso, o estabelecimento já possui um protocolo de atendimento e proteção, que agora se soma à lei.

Todavia, também sabemos que nem sempre é simples acionar alguém do estabelecimento para pedir proteção. Estarmos em uma sociedade extremamente machista torna os pedidos de ajuda muito difíceis. Retomarei isto mais à frente, mas queria deixar aqui duas ressalvas antes.

  1. Sempre é importante haver um protocolo, com treinamento dos funcionários, mais do que aguardar uma mulher solicitar ajuda, apenas. Muitas vezes um treinamento para observar situações e oferecer ajuda, também é uma medida importante. Isto está previsto no Artigo 6º, inciso III “certificar-se com a vítima, quando observada possível situação de constrangimento, da necessidade de assistência”. Assim, não é obrigatório o pedido de proteção partir da vítima. O próprio estabelecimento pode se dispor a prestar acolhimento e proteção, caso suspeite ou perceba estar em uma situação de constrangimento ou violência.
  2. Além de sempre, como prevê o protocolo da Lei Não é Não, (Artigo 4º, Inciso I) “respeito ao relato da vítima acerca do constrangimento ou da violência sofrida”. Ou seja, ao ouvir um pedido de proteção, respeitar e agir, sem descredibilizar a vítima.

Por fim, o poder público é o responsável por campanhas educativas e ações de formação periódica para implementar o protocolo nos estabelecimentos. Ainda estou vendo com mais detalhes como isto funciona para trazer à discussão.

Como o Projeto de Lei (PL) Não é Não foi proposto e o quê mudou?

Esta lei foi proposta pela deputada Maria do Rosário (PT) e tinha uma redação diferente da lei que foi aprovada. Isto é comum. De maneira geral, um PL, quando proposto, passa por discussões e análises em comissões temáticas, recebe sugestões de mudanças, passa por negociações, que modificam o seu “teor original” (a escrita original do PL). Também são analisados outros PLs que são “parecidos” ou versam sobre temas próximos. Neste caso, estes outros PLs viram “apensados”, ou seja, documentos que vão ser debatidos e analisados conjuntamente, pois fazem parte de ideias similares.

Por fim, há uma relatoria do PL, que se propõe a indicar qual a justificativa desta lei e sua relevância, quais apensados se relacionam e indica uma redação final para o PL. As próprias comissões que analisaram podem aprovar o PL em sua redação final ou, se não houver concordância, acontece a votação na Câmara de Deputados, antes de ir ao Senado. Para entender melhor o detalhamento deste processo, eu sugiro assistir ao conteúdo “Entenda o Processo Legislativo

No caso da Lei 14.786/23, a proposta inicial pode ser acessada no site da Câmara dos Deputados, que possui todo o histórico desde que ela foi apresentada, até sua versão final. Isso inclui a versão original do Projeto de Lei 03/2023. Lá já se percebe que o nome do protocolo, por exemplo, consta desde a primeira versão do PL.

Redação Original do PL 03/2023

No Artigo 1º esse protocolo se destinava ao atendimento de mulheres, vítimas de violência sexual ou assédio 

em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas

O PL incluía locais de realização de eventos esportivos. Na justificativa, a autora do PL indica que se inspirou em Lei semelhante, espanhola, nomeada “Solo si es si” (só o sim é sim, em espanhol). Além desta lei, o protocolo No Callem criado em Barcelona, 2018, fortalece e fundamenta as ações para a lei, e é baseado em 5 princípios

O primeiro é que a atenção prioritária deve ser dada à pessoa atacada. Em caso de agressão, ela deve receber a devida atenção. Em casos graves, ela não pode ser deixada sozinha, a não ser que queira. 

O segundo princípio orientador é o respeito às decisões da pessoa agredida. Ela deve receber as informações e conselhos corretos, e ela deve tomar a decisão final, mesmo que esta pareça incompreensível para os demais.

Terceiro princípio: o foco não deve estar num processo criminal. Estes são complexos, difíceis também para quem foi agredido e muitas vezes terminam de uma forma não satisfatória para quem sofreu uma agressão. Isso pode gerar frustração, e por isso é importante informar e levar em conta que existem outras formas de tratar a situação e dar importância ao processo de recuperação da pessoa agredida.

O quarto princípio é a atitude de rejeição ao agressor. Deve-se evitar sinais de cumplicidade com ele, mesmo que seja apenas para reduzir o clima de tensão. É importante mostrar que há uma clara rejeição à agressão e envolver o entorno do agressor nessa rejeição.

O quinto e último princípio é o da informação rigorosa. Tanto a privacidade da pessoa agredida como a presunção de inocência da pessoa acusada devem ser respeitadas. Por isso, é aconselhável não repassar informações oriundas de fontes não confiáveis ou espalhar boatos.

Outras iniciativas

Ainda é citado, na justificativa do PL, outras leis e movimentos internacionais, como “Ask for Angela” (Inglaterra) e “Me Too” (inicialmente estadunidense). Além disso, cita campanhas nacionais, como “He for She” (Rio Grande do Sul) e acontecimentos como o julgamento de estupro, com descrédito da vítima, ocorrido com Mariana Ferrer, em Santa Catarina.

Quais são as ressalvas que eu gostaria de demarcar neste texto? Não havia no PL, nem na justificativa da lei, quaisquer ressalvas sobre bebidas alcoólicas ou cultos e eventos religiosos. Onde isso apareceu e foi inserido na Lei aprovada então?

Relatório do PL 03/2023

Buscando mais informações, encontrei o Relatório do PL 03/2023, que analisa também os PLs apensados (indicados logo após o título lá no início). Ao final do Relatório, consta o texto Substitutivo ao Projeto de Lei nº 03, de 2023 (página 13), que falarei mais adiante. Eu fui buscando cada um dos apensados, abrindo e realizando a leitura. Após a leitura do relatório também, um detalhe me chamou a atenção: não há, em nenhum PL apensado nenhuma ressalva a cultos e eventos religiosos. Tampouco há, nestes PLs, indicação de vínculo com bebidas alcoólicas a necessidade da proteção de mulheres vítimas de violência e constrangimento em estabelecimentos e eventos.

No relatório aparece, na página 8, ao se falar do mérito da proposta, que apesar de “não existirem estatísticas sobre isso [episódios de constrangimentos], temos a percepção de que são condutas mais frequentes e também são precursoras de atos de mais intensa violência”. Para exemplificar, é falada a relação com o álcool. Conforme o documento:

“Este é o caso, por exemplo, das insistentes tentativas de aproximação realizadas por alguns homens nos ambientes de diversão, principalmente aqueles que funcionam durante a noite e onde existe consumo de bebidas alcoólicas” (p.8).

Em relação aos apensados, essa relação aparece somente em uma justificação, no PL 2614/2023, em que consta, na página 2

O assédio em casas noturnas é um problema que, dentre outras ocorrências, se dá em casas noturnas e está associado ao consumo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, a proteção das mulheres é essencial em casas noturnas que oferecem consumo de bebidas alcoólicas.

Apesar disso constar na justificação, não há a presença da obrigatoriedade do combate ao assédio sexual (que é a proposta do PL) se vincular a espaços com venda de bebidas alcoólicas.

Texto do Substitutivo ao Projeto de Lei n.03 de 2023

Para encerrar esta seção, antes de falar sobre as duas ressalvas, vamos retomar a redação final, que consta no texto Substitutivo do PL 03/2023, do relatório (páginas 13 a 17). Esta versão que está no relatório foi aprovada na Câmara e, sem qualquer modificação, é a que vale neste momento.

Art. 2º O protocolo “Não é Não” será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas.

Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa.

Como podemos perceber, a lei faz duas ressalvas que não estavam na escrita original do PL. A primeira sobre o protocolo relaciona-se apenas a “casas noturnas e boates” com consumo de bebidas alcoólicas e a segunda ao retirar cultos e eventos religiosos a obrigatoriedade com a implementação do protocolo.

Uma demarcação importante, neste caso, é que saíram da lei estabelecimentos como bares, restaurantes, eventos festivos e eventos com grande circulação de pessoas, como constava no PL original. Este ponto é relevante, uma vez que existem associações específicas para estabelecimentos diferentes, que irão aderir ou não à lei. No entanto, sem obrigações legais de cumprir o protocolo, por exemplo.

A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), por exemplo, aponta que esta lei não diz respeito aos estabelecimentos que a organização representa. Ao buscar me informar sobre como a entidade vê a Lei 14.786/2023, fui informada que a Abrasel entende que a lei que institui o protocolo “Não é Não”, sancionada pelo presidente Lula no dia 29 de dezembro, é bem-vinda e ressalta que o esforço para combater a violência de gênero deve ser coletivo e não pode se restringir somente às boates e casas de show. Para isso, acredita que a educação é fundamental.

A entidade defende que é importante que o Poder Público forneça ferramentas e metodologias para treinamento dos funcionários, de forma que consigam agir de maneira adequada diante de uma situação de constrangimento ou violência sexual. 

A missão de combater essas situações de abuso não deve estar restrita somente às boates e casas de show, considerando que essa violência pode acontecer em diversos lugares, como no trabalho e no transporte público, por exemplo. “O protocolo é positivo porque nos coloca enquanto sociedade na posição de trabalhar o enfrentamento a esse problema e, evidentemente, punir os que cometerem abusos. Devemos fortalecer uma resposta coletiva para evitar que esse tipo de situação continue a acontecer em qualquer ambiente”, afirma o presidente-executivo da Abrasel, Paulo Solmucci.

As modificações em relação a este artigo da lei, portanto, trazem diferentes nuances e problemáticas que devem ser questionadas e pensadas de forma mais ampla. Uma vez que tais modificações excluíram espaços sociais e culturais, é preciso que se compreenda que a aplicação do protocolo não está assegurado – e portanto não necessariamente temos uma ação rápida e que poderia gerar segurança de mulheres.

No estado de São Paulo, a Lei nº 17.635 de 2023, dispõe sobre “a capacitação de funcionários de bares, restaurantes, boates, clubes noturnos, casas de espetáculos e congêneres, de modo a habilitá-los a identificar e combater o assédio sexual e a cultura do estupro praticados contra as mulheres”. Neste caso, a formação de funcionários é obrigação dos estabelecimentos. Além disso, é obrigatória a fixação de cartazes ou avisos sobre o atendimento e proteção à mulher em uma situação de risco.

Neste caso em específico, em âmbito federal as campanhas e a formação são obrigação do poder público (Artigo 8º), enquanto no âmbito estadual são de obrigação dos estabelecimentos. E na lei estadual de São Paulo, não há protocolo estabelecido para socorrer e proteger as vítimas. São leis que versam sobre um tema próximo, mas com procedimentos (e, possivelmente, resultados) diferentes.

Problematizações necessárias: vulnerabilidades e restrições

Desde que a lei foi promulgada, alguns eventos importantes aconteceram e, além disso, outras questões anteriores já se faziam importantes (e se relacionam aos eventos recentes…). Falarei primeiramente do caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves e, posteriormente, da cultura de estupro.

Lei Solo Si es Si e protocolo No Callen, no caso de Daniel Alves

O caso do ex-jogador de futebol Daniel Alves por estupro em um bar, em Barcelona, foi decorrência da aplicação do protocolo No Callem e da lei Solo Si es Si, comentada anteriormente. A vítima, ao final do julgamento, falando “acreditaram em mim” é a demarcação de um protocolo seguido – de não duvidar da vítima em relação à violência. Seguir o protocolo é, neste sentido, suporte e proteção imediata da vítima. Junto a isto, uma condição para apuração e investigação da violência.

A presunção de inocência e a dúvida da existência da violência

Grande parte dos casos de violência sexual – incluindo abusos e assédios – tem um entrave inicial para denúncias e investigações que é a palavra da vítima sendo colocada em questão. Estes atos intimidam, invalidam e fragilizam a vítima denunciante. Além disso, podem atrasar e dificultar a apuração dos fatos e investigação do caso, uma vez que há, antes de tudo, a dúvida se a denúncia de fato é pertinente.

Perceba que a presunção de inocência do acusado não é colocada à prova ao se acatar uma denúncia. Mais que duvidar se a vítima foi mesmo vítima torna a denúncia frágil, por não se acreditar que a violência ocorreu. E são estas situações que o protocolo visa diminuir (e eventualmente acabar). Ao implementar um procedimento em que a vítima deve ser escutada e levada em consideração, a ideia é exatamente não duvidar de que uma violência ocorreu e criar a condição para que uma investigação aconteça.

Dessa forma, nem tudo são flores e, como diz Fhoutine Marie, não… Nós não dormimos em um mundo de opressão e, quando acordamos, o feminismo finalmente venceu. Bem pelo contrário, como ficou muito evidente posteriomente, não basta que uma vítima seja escutada e a justiça condene. A precificação da liberdade – em especial quando se trata de uma violência sexual – traz à tona o quanto nossa sociedade ainda entende este tipo de violência como algo menor. E se vincula (e fortalece) o que conhecemos como cultura do estupro – temática que já abordamos em outros momentos por aqui…

Cultura do estupro, perigos do bar e o mito da destruição da vida do acusado

Quando vemos o debate acerca de estupro, violência sexual, assédio sexual ou abuso sexual, a horda que pergunta às vítimas “o que roupa estava vestindo”, “o que estava fazendo lá”, “por que não se defendeu” sempre se faz presente.

Aparentemente, o mundo segue não sendo possível de se viver, sem que vítimas sejam postas em questão e mulheres possam existir sem riscos. Recentemente, quando eu vejo estes debates, não consigo pensar em nada mais além do vídeo de Jana Viscardi sobre “o álcool ser muito perigoso”.

Tudo é muito perigoso, menos o agressor em si.

Quando falamos de cultura de estupro, não estamos falando de casos isolados – e muitas vezes não estamos nem falando do ato do estupro em si. Mas dos inúmeros acontecimentos cotidianos de nossa cultura e sociedade, de culpabilização de vítimas da violência (em geral mulheres) e apoio a pessoas violentas (em geral homens).

Falar em cultura é falar de tudo o que envolve a produção de sentidos, significados e identidades de uma sociedade. E cultura do estupro diz respeito ao quanto nossa sociedade normaliza a violência sexual.

E a nossa sociedade normaliza a violência sexual todos os dias

E o que tudo isto tem a ver com a Lei Não é Não? 

Uma das surpresas da lei promulgada foi a retirada de alguns estabelecimentos da lei e, além disso, a centralidade (e necessidade) da venda de bebidas alcoólicas para validar a violência, no texto final da lei. Algumas questões ressoam continuamente para mim, citadas a seguir:

  • Ao acaso é apenas nestes casos que a violência acontece?
  • E nos cultos e festas religiosas, não existe violência sexual nunca?
  • De onde veio esta demarcação no texto final da lei?
  • Quais os efeitos sociais, na prática, da retirada de bares e restaurantes da lei?

Ao que tudo indica, só é possível ocorrer violência sexual em espaços fechados, escuros e lotados, além de regados a bebidas alcóolicas. Tal como o imaginário social parece ainda imperar, tais violências não estariam presentes em espaços públicos amplos – incluindo cultos – em que todos têm intenções puras e não há lugar para algo tão grave impetrado contra mulheres. Será mesmo? Conforme apurado pela Agência Pública em 2019, a denúncia mais comum contra lideranças religiosas é de violência sexual. 

A limitação de outros estabelecimentos também é uma questão. Faz sentido retirar estabelecimentos comerciais da adoção deste tipo de protocolo que protege vítimas de violência sexual? O texto do PL original trazia uma grande quantidade de espaços em que os protocolos deveriam ser adotados, não condicionando à venda de bebidas alcóolicas. 

em discotecas ou estabelecimentos noturnos, eventos festivos, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento de grande circulação de pessoas”

Dizia o texto original. Precisamos assumir que as vulnerabilidades à violência sexual estão em nossa sociedade. Não se restringem a atos isolados e lugares específicos, não são vinculados às ruas escuras. A violência se faz na rotina, no descrédito às vítimas, na necessidade da boa vontade de quem atende a denúncia, na compreensão de que a violência desdenha dos limites e fronteiras de estabelecimentos em que a versão final da lei descreveu.

O que poderia ser uma importante etapa para debatermos uma mudança social acerca da cultura do estupro, parece ter-se tornado a delimitação de onde a violência ocorre, com disputa de poderes entre bancadas eleitas.

Após a publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e o Relatório Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, em 2023, em que a violência contra mulheres é notificada como a maior de todos os tempos, vemos se esvair o debate sobre a segurança em espaços públicos.

Mais uma vez somos tomadas pelo sentimento de que não é (e nunca foi) sobre as vítimas que sofrem violência

Para Saber Mais

ABREU, R (2023) Relatório Projeto de Lei nº 3 de 2023, Apresentação: 01/08/2023 18:29:03.437 – PLEN PRLP 1 => PL 3/2023, PRLP n.1 Câmara de Deputados

ARNT, AM (2018) Sobre a Cultura do estupro: senta aqui, vamos conversar, Blog PEmCie

___ (2020) Nós, Mulheres, como a cigarra: uma nota sobre a cultura do estupro, Revista Blogs Unicamp, V6, N11

___ (2022) Cultura do estupro, rotina e nossa existência cotidiana, Revista Blogs Unicamp, V8, N10. 

BBC NEWS MUNDO (2022) “Solo sí es sí”: en qué consiste la nueva y polémica ley de consentimiento sexual en España, BBC NEWS MUNDO, 26 de Agosto de 2022.

BRASIL (2023) Lei n. 14786/2023.

___ (2023) PL 2/2023, Propostas Legislativas, Câmara dos Deputados

BUENO, S, MARTINS, J, LAGRECA, A, SOBRAL, I, BARROS, B, BRANDÃO, J (2023) O crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, p136-145.

BUENO, S, MARTINS, J, BRANDÃO, J, SOBRAL, I, LAGRECA, A (2023) Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, In: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

CANAL UOL (2024) Vítima de Daniel Alves chora ao ouvir sentença ‘eles acreditaram em mim’ UOL, 22 de Fevereiro de 2024

FONSECA, B (2019) Governo registrou 167 denúncias de violação sexual por líderes religiosos em três anos, Agência Pública, 25 de Junho de 2019.

FONSECA, PAA, ALVES, VL,  LIMA, LM (2017) Cultura do Estupro: uma análise de conteúdo sobre a percepção dos usuários via Twitter, Revista Idealogando, v1, n1, p75-84.

LEOCADIO, B (2023) Projeto de Lei 2614/2023, Brasil, Congresso Nacional.

MARIA, V (2023) Daniel Alves precisa aprender que “solo si es si”, EBC Radios, 25 de Janeiro de 2023.

MARIE, FHOUTINE (2023) O feminismo publicitário venceu, agora ele precisa acabar, Interesse Nacional, 26 de Abril de 2023.

___ (2024) ‘Eles acreditaram em mim’ – o caso Daniel Alves e o Brasil, Interesse Nacional, 6 de março de 2024.

ROSÁRIO, M (2023) Projeto de Lei n3 de 2023, Brasil, Congresso Nacional.

SCHOSSLER, A (2023) O que é o protocolo No Callem, aplicado no caso Daniel Alves, DW em destaque,  25 de Janeiro de 2023.

SOUZA, RF (2017) Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra mulheres, Revista Estudos Feministas, 25(1), 9-29

TV CAMARA (s/d) Entenda o Processo Legislativo, Brasil TV Câmara

VISCARDI, J (2023) O ÁLCOOL É MUITO PERIGOSO? | JANA VISCARDI

Sobre quem escreveu

Ana de Medeiros Arnt é Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉

Como citar:  

ARNT, Ana de Medeiros. (2024). Lei “Não é Não”: algumas ideias para pensar. Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/lei-nao-e-nao-algumas-ideias-para-pensar/. Acesso em: DD/MM/AAAA

Sobre a imagem destacada:

Foto: Freepik [original]

Letras e edição: clorofreela

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