São só convenções

Uma coisa que gosto de trabalhar com meus alunos, sejam do Ensino Médio ou da Graduação, é que certas coisas são apenas convenções. Geralmente peço que escolham letras ou mesmo nomes para as variáveis, funções, matrizes, pontos, retas… ou qualquer outra coisa com que estejamos trabalhando. Pois creio que assim possa romper um pouco com a ideia de que convenções são verdades absolutas.

Por exemplo, a imagem de capa deste post é um plano cartesiano, ou parece que tem algo estranho nele?

Para começar, ele está inclinado 15 graus no sentido anti-horário, o eixo x está apontando para baixo, enquanto o eixo y está apontando para a esquerda. Porque eu fiz isso? (inclusive fiz isso na aula)

Minha intenção é mostrar como o plano cartesiano é definido. Ou seja, um sistema de posições baseado na posição relativa de dois eixos perpendiculares. Me importa se ele está rotacionado 15, 20, 35 graus? Não. Me importa para onde aponta x, y? Também não!

Mas porque estou falando disso? A verdade é que estou com raiva 🙂

Estes dias estava de carona com um senhor que não parava de falar e ele estava carregado de verdades… dai porque não retruquei, porque não tentei ensiná-lo algumas lições se isso me incomodava tanto? Então, deixo o seguinte post do Blog Especial-Covid como justificativa para minha ação de não agir diretamente Por que você não deveria argumentar com radicais – o efeito “Backfire”.

Contudo, cá estou, agindo indiretamente depois de digerir tantas coisas absurdas que ouvi.

Entre as “verdades” que fiquei ouvindo, muitas eram sobre a vacina, mas não quero entrar nesta discussão, pois o Blog Especial-Covid já faz um excelente trabalho neste sentido. Por outro lado, uma questão que me atingiu com força envolvia gênero e sexualidade. Um assunto que apesar de ter um interesse particular muito grande, sempre o tratava como desconexo do que poderia desenvolver relacionado à Matemática. Isso veio a mudar é claro, depois de uma mesa redonda com o professor Mauricio Rosa (na qual eu nem queria assistir, mas estava na organização do evento tomando conta da sala apenas). Tal discussão me trouxe inquietações e me senti fortemente desafiada a integrar matemática nesta discussão, o resultado saiu poucos dias depois no texto Pensamento Computacional e gênero.

Depois fiz uma outra discussão sobre como alguns dogmas religiosos entram em fortes contradições quando querem tratar este assunto (se estão se contradizendo, logo não são perfeitos e precisam ser revisados): Con(tra(ns)dições).

Estas temáticas começam a revelar tantas conexões com a matemática, que em uma situação inusitada quando vim a conhecer mais sobre a história de um jornal que existiu durante a Ditadura Militar no Brasil, e voltado para um perfil diferente do cisheteronormativo, logo percebi uma conexão entre teoria de grupos e de conjuntos na matemática: Subconjuntos e subgrupos no Lampião da Esquina.

Mais recentemente, uma amiga me desafiou a escrever sobre um meme que mostra uma reação passiva dos personagens quando tópicos de Física e Matemática avançam para complexidades maiores, e algumas “verdades” estabelecidas precisam ser rompidas, porém quando o mesmo ocorre com Biologia, e rompe-se com ideias envolvendo gênero e sexualidade, o personagem reage com bastante aversão: Rejeitar ≠ Ignorar.

Porém onde quero chegar com tudo isso?

Nesse semestre, durante o planejamento docente esses assuntos foram pautas de palestras, e um professor se manifestou como apesar de compreender estas questões, e entender sua importância, não enxerga nas suas aulas da disciplina #### um espaço para tratar disso.

Então, acho inclusive que é a reação mais comum mesmo, pois eu mesma compartilhava esse pensamento neste blog até uns anos atrás, e olha que aqui tenho bastante liberdade para falar sem ser julgada e um espaço bastante amparado de outros cientistas sociais que podem me ajudar em alguma questão mais complexa neste tema.

Nesse vai e vem de reflexões, o que percebo e gostaria de compartilhar é que se mesmo na matemática, que é tido por muitos como a grande detentora da verdade absoluta, não temos verdades. Somente derivativos de verdades escolhidas (os axiomas (acabo de perceber que não tenho nenhum texto falando especificamente de axiomas… preciso tratar de escrever (sim, usei um parêntesis dentro de outro parêntesis, e estou explicando isso dentro de um parêntesis dentro de outro parêntesis dentro de outro parêntesis))). E mesmo dentro de um conjunto de axiomas escolhidos, temos uma série de convenções que são seguidas somente por “conveniência”.

Gosto de ressaltar bastante isso, que embora venhamos a utilizar algumas dessas convenções para não nos afastarmos muito dos livros-textos, dos demais conteúdos que poderiam ser encontrados na Internet e para facilitar a comunicação com pares. Mas de forma alguma há algo que nos impeça de não a usarmos.

Estou falando de matemática? Sim.

Estou falando de gênero e sexualidade? Estou falando de usar um pano longo na cintura com separação para as pernas (calça) ou sem separação (saia)? De Usar um pano mais largo ou mais justo? De usar rosa ou azul? Siiiiiiiiiiiim!

Encerro esse texto com tom de esperança, pois da forma como começamos esse texto, acredito que seja não só possível, mas totalmente pertinente para o Ensino de Matemática, a percepção dessas convenções. Não precisamos sempre procurar o “x” de uma equação, podemos procurar outras letras que aparecem menos, como o “ç” ou mesmo um símbolo como estrela, ou lua. Também podemos dar nomes diferentes para construções abstratas. Porque sempre uma letra sem graça, quando podemos chamá-las de nomes mais bonitinhos?

O que perdemos com essas atitudes? Giz? Saliva? Alguns segundos?

Mas agora pense no que ganhamos. A chance do nosso estudante perceber que da mesma forma como aquele monstro de sete cabeças e dez chifres foi construído, ele também pode ser desconstruído, e que pode não ser mesmo um monstro, apenas um serzinho com uma natureza diferente daquilo é considerado por convenção como “o normal”.


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. São só convenções. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da UnicampVolume 10. Ed. 1. 2º semestre de 2023. Campinas, 21 ago. 2023. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/5179. Acesso em: <data-de-hoje>.

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