À sombra da sibipiruna
O ato de ensinar, prestigiosa função legada ao professor, divide crescentemente o cenário de sala de aula com a necessidade de emprego de estratégias de reversão do desinteresse dos alunos e da tão proeminente quanto indesejada evasão escolar. As funções do professor se expandiram em número e suas responsabilidades atingiram esferas mais amplas que a tradicional comunicação de conteúdo. Buscar o engajamento de crianças e adolescentes no processo educativo formal e sensibilizá-los para a sua relevância tornaram-se preocupações centrais de professores de todos os níveis e, em especial, da Educação Básica. Uma preocupação justificada, dado que o acesso ao conhecimento está cada vez mais simples e a escola não mais monopoliza a função de “centro do saber”. O papel transformador do professor agora também tem de ser transformado para continuar a ser efetivo e a cumprir a premissa maior de modificar quem aprende.
Qual seria uma ferramenta auxiliar nesta metamorfose de professores e alunos? A exitosa sugestão de Matheus Camargo de Carvalho, registrada em sua dissertação de Mestrado Profissional pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Biologia em Rede Nacional (PROFBIO/IB – Unicamp), foi usar a instalação de uma pequena horta no perímetro escolar. A ambição original de Carvalho, que teve como palco a Escola Estadual Anésia Martins Mattos, no município de São João da Boa Vista (SP), era aproveitar cada uma das etapas da implementação de uma área de cultivo para ensinar de forma prática conteúdos específicos da Biologia. A natureza lúdica e participativa da empreitada trazia ainda a promessa de despertar a curiosidade e o interesse dos alunos e de chamar a atenção da comunidade estudantil para algo a ser construído e mantido em um processo colaborativo.
A dissertação inclui desde a parte operacional do planejamento (a escolha de um espaço adequado, a avaliação da viabilidade de implantação em termos de disponibilidade de equipamentos e insumos, a busca por financiamento etc) até a execução (o preparo do solo, o plantio, o acompanhamento do crescimento, a colheita e atividades complementares como a montagem de um minhocário e o processamento do húmus). As diversas fases do projeto foram separadas em onze sequências didáticas, elaboradas em formato de roteiro, com indicação dos materiais necessários e de recursos online de apoio ao professor. Cada sequência didática foi balizada por um conjunto de habilidades previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normatizador da Educação Básica homologado em 2017 pelo Ministério da Educação.
Engajar os estudantes nas atividades era ponto central e nevrálgico. O caráter interativo da montagem e da manutenção da horta uniu-se à percepção de que os estudantes teriam de usar suas próprias experiências para desenvolver o projeto. Esta interação ampliou a interseção entre o aluno e sua capacidade de aprender, pois captou o seu interesse para o processo educacional. Todas as etapas contaram com a tomada de decisão pelos estudantes: o local onde deveriam ser estabelecidos os canteiros, quais espécies seriam plantadas em função de tamanho e tempo de crescimento, como preparar o solo e otimizar sua qualidade. A pequena área ocupada pela horta, propositadamente instalada à sombra de uma sibipiruna da escola, não guarda proporção com as lições que dali surgiram. Experimentos práticos abordaram temas da Zoologia, da Botânica, da Parasitologia, da Fisiologia Vegetal, de forma integrada a aspectos de saúde, higiene e alimentação, para que fosse possível sensibilizar o estudante sobre o papel educativo em sua formação como cidadão que interpreta o ambiente e com ele interage de forma racional. A horta, concebida por um biólogo, tornou-se espaço para ensinamentos de outros professores e disciplinas, como a Matemática, a História e a Geografia. Instalou-se ali substrato para florescer mais que a Biologia.
Os conteúdos específicos, motivações originais do projeto, dividiram espaço com a transformação do processo pedagógico e a mobilização da comunidade no cuidado com o novo patrimônio local. O esforço coordenado e a divisão de tarefas, amalgamados pelo intuito primeiro de ensinar, evidenciaram a noção de que o estudante, em seu ato despretensioso de aprender, fortalece-se como cidadão pois se vê capacitado à modificação de seu ambiente.
Transformador que já mostrou ser, Carvalho pretende ainda transformar seu trabalho de Mestrado em algo mais capilar. A confecção de uma cartilha com detalhes das sequências didáticas – erros, acertos e sugestões do que pode ser aperfeiçoado – servirá como norte para que outros colegas de docência também possam expandir suas caixas de ferramentas de estímulo aos estudantes. O crescimento das plantas e do arcabouço de atividades necessário para tal guarda interessante analogia com o desenvolvimento dos estudantes e de um conjunto de práticas pedagógicas. A união da simplicidade de uma horta ao esforço de professores dispostos a promover o conhecimento é claramente capaz de lavrar muito além da terra.
CONHEÇA O AUTOR
Bióloga, pós-doutoranda, interessada nos processos naturais acontecendo na escala molecular. Em um relacionamento sério com o DNA desde 1999. Gosta de tentar entender o mundo e de formalizar sua compreensão em palavras que possam ser compreendidas por outros. Acredita que o melhor Relações Públicas da Academia é quem faz o exercício da Ciência...e está aqui por este motivo.