Se temos vacina contra dengue, por que não nos vacinamos?

Poucos sabiam, até pouco tempo atrás, que já existia uma vacina aprovada contra a dengue. Apesar disso, ela é cheia de controvérsias e não está no nosso PNI (Plano Nacional de Imunização). O que é preciso para uma vacina ser boa contra a dengue?

Texto escrito por Maurílio Bonora Junior, Mariene Ribeiro Amorim e Alexandre Borin Pereira.

Como já comentamos em um material anterior, o desenvolvimento de uma vacina contra a dengue é de grande prioridade, principalmente devido à falta de controles efetivos contra os seus vetores, os mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus. Contudo, existem vários obstáculos para o desenvolvimento de uma vacina para essa doença, seja a complexidade referente a própria patogênese da dengue, o efeito ADE (que já explicamos no texto anterior) ou mesmo a grande variabilidade genética dos vírus da dengue, que por serem de RNA (assim como o SARS-CoV-2) têm uma grande facilidade em gerar variantes.

Na tabela abaixo, nós podemos ver vários pontos que pesquisadores indicam como características ideias de uma vacina da dengue e os desafios para desenvolve-lá.

Características Ideais
– Segura para crianças e adultos
– Não gere ADE nem a forma grave da dengue
– Seja de dose única ou duas doses
– Proteja contra os quatro sorotipos da dengue (chamada de Tetravalente)
– Induza uma resposta imune celular contra vírus e anticorpos neutralizantes
– Barata
– Fácil de transportar e armazenar
Desafios

– Possibilidade de gerar ADE
– A vacina precisa ser tetravalente
– Os sorotipos de dengue não induzem uma resposta imune de longa duração um contra o outro
– Não há um modelo animal ideal para pesquisa
– Não se conhece bem os marcadores genéticos dos vírus para severidade da doença
– Infecção secundária pode levar ao desenvolvimento da dengue severa

Como podemos ver, o desenvolvimento de uma vacina boa e segura é bem longo. As principais dificuldades que precisam ser consideradas para uma vacina efetiva de dengue são: a tetravalência (a capacidade de gerar uma resposta imune contra os quatro sorotipos de dengue), a possibilidade do efeito ADE em uma infecção pós-vacinação e o preço, visto que a grande maioria dos países que sofrem de surtos endêmicos de dengue passam por grandes desafios econômicos.

Considerando tudo isso, hoje falaremos aqui de três vacinas contra a dengue em diferentes estágios de pesquisa e aprovação: uma já foi aprovada, mas é cheia de controvérsias; outra acabou de receber a aprovação da ANVISA; e a terceira é nosso orgulho nacional, desenvolvida pelo Instituto Butantan, na reta final das pesquisas de fase 3. Caso tenha dúvidas sobre as fases das pesquisas de vacinas, você pode conferir vários dos nosso materiais aqui.

A Dengvaxia: a primeira vacina contra dengue aprovada no mundo

A Dengvaxia (originalmente chamada de CYD-TDV) é uma vacina tetravalente, aprovada para uso em 2015 e desenvolvida pelos laboratórios Sanofi Pasteur (México). Ela é a primeira vacina de dengue que teve registro no mundo e, atualmente, ainda é a única disponível no Brasil. Poucas pessoas sabem da existência dessa vacina por ela ser vendida somente na rede privada e não estar no nosso PNI (Programa Nacional de Imunização).

A Dengvaxia mistura duas tecnologias: DNA Recombinante e Vírus Atenuado. Ela usa como molde o vírus enfraquecido (também chamado de atenuado) da febre-amarela, mas os cientistas trocaram alguns genes desse vírus por genes dos 4 sorotipos da dengue. Dessa maneira, esse vírus enfraquecido da febre-amarela produz pequenos pedaços (chamados de antígenos) do vírus da dengue, que agora podem ser usados para treinar o nosso sistema imune e nos proteger de uma infecção de dengue.

Tá, mas ela protege contra a dengue?

Apesar dessa vacina ser segura e produzir anticorpos contra os 4 sorotipos da dengue, a eficiência da vacina varia contra cada sorotipo, protegendo as pessoas mais contra um do que outro. A eficácia geral da vacina fica por volta dos 60,8%, o que significa que, na prática, 2 em cada 3 pessoas vacinadas não desenvolvem sintomas da dengue. Já contra casos severos e de dengue hemorrágica, a vacina tem gera uma proteção bem melhor, de 80%.

A Dengvaxia recebeu o registro permitindo a vacinação na União Europeia, Estados Unidos e outros 20 países onde a dengue é endêmica. Contudo, o Brasil e as Filipinas são os únicos dois países que tentaram implementar a vacinação contra a dengue. Aqui nas terras tupiniquins, o Parana foi o único estado que chegou a disponibilizar a vacina, para 30 cidades, entre agosto de 2016 e setembro de 2017. Em 2018, a vacina foi disponibilizada novamente mas somente para quem já tinha tomado doses anteriores, a fim de finalizar o esquema de vacinação triplo.

Qual a controvérsia ao redor dessa vacina contra dengue?

A princípio, a Dengvaxia foi aprovada para uso em pessoas entre 9-60 anos que vivem em áreas endêmicas da dengue (como nós aqui no Brasil). Contudo, em 2016, a OMS aconselhou o uso da vacina sob supervisão médica, somente em pessoas entre 9-45 anos que já tiveram dengue anteriormente (chamados de pacientes soropositivos). O motivo disso foi devido a novos estudos que mostraram que pacientes soronegativos (aqueles que nunca tiveram contato com o vírus da dengue) que foram vacinados com a Dengvaxia tinham mais chance de desenvolver dengue hemorrágica do que pacientes soronegativos que não haviam sido vacinados. 

Os cientistas acreditam que, provavelmente, isso aconteceu devido à resposta imune do corpo a vacina simular um primeiro contato real com o vírus. Assim, ao se infectar com o vírus da dengue uma “segunda vez” todo o mecanismo do ADE (explicado anteriormente aqui) era ativado. Como comentamos no começo desse texto, esse é um dos principais desafios para criar uma vacina da dengue, visto que esse fenômeno pode acontecer. Entretanto, como em pacientes soropositivos, entre 9-45 anos, não observou-se esse fenômeno, a OMS e outras agências de saúde (como a ANVISA) mantiveram a permissão para vacinação dessas populações. 

Atualmente, a vacina é contra indicada para pessoas que nunca tiveram dengue, que são imunodeprimidas, com alergia grave a algum componente da vacina, gestantes e mulheres amamentando. Pessoas portadoras de HIV devem passar por avaliação médica.

Como posso fazer para me vacinar com a Dengvaxia?

Para se imunizar com essa vacina, são necessárias três doses subcutâneas, intercaladas num período de seis meses. Porém, como já comentamos, essa vacina só está disponível na rede privada no Brasil, sendo que o valor de cada dose fica entre 200 e 300 reais. 

Muitas pessoas questionam o motivo da Dengvaxia não estar disponível na rede pública e ausente no PNI. A razão é que a própria bula da vacina indica para que seja realizado um teste laboratorial, a fim de saber se a pessoa já teve dengue. Isso é bastante problemático, pois condicionar uma vacina a partir da realização de um teste realizado anteriormente é 1) muito complicado e 2) bem caro. Nenhuma vacina que está no PNI brasileiro funciona assim. Na verdade, nenhuma vacina chega a ser aprovada, quando há essa necessidade. Ao, entretanto, considerar todo o problema que a dengue causa na saúde coletiva global, as agências de saúde acabaram por aprovar a Dengvaxia para uso clínico na rede privada.

Atualmente, a CTK Biotech desenvolveu um teste rápido para detectar infecções prévias de dengue, mas ainda assim é um método para quem quer se vacinar na clínica privada e não para amplas campanhas de vacinação populacional.

A Qdenga

A Qdenga foi desenvolvida pelo laboratório japonês Takeda Vaccines Inc. Similarmente a vacina da Sanofi Pasteur, ela também é tetravalente (protegendo contra os quatro sorotipos da dengue) feita a partir de vírus enfraquecido. Diferente da Dengvaxia, essa vacina mostrou uma boa proteção contra todos os quatro sorotipos de dengue, mesmo após quatro anos da vacinação, tanto em pacientes soropositivos quanto soronegativos, entre 1,5 e 45 anos. 

A eficácia geral dela ficou por volta dos 80,2%, reduzindo em 84,1% as internações e 61% dos casos sintomáticos. O esquema vacinal da Qdenga constitui de duas doses, para pessoas entre 4-60 anos, sem diferença entre quem já teve (soropositivo) ou não (soronegativo) dengue.

Em abril de 2021, o laboratório Takeda enviou os dados para a Anvisa solicitando o registro da Qdenga. Porém, a aprovação só aconteceu no começo de março de 2023. Essa demora ocorreu pois os estudos finais da fase 3 concluíram-se somente no segundo semestre de 2022, quando foram entregues à Anvisa. Agora, o laboratório japonês quer disponibilizar a vacina primeiro para a rede privada e somente depois para a rede pública (contudo, não foram faladas datas para isso). Não sabe-se ainda se o Ministério da saúde vai inserir essa vacina no PNI. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) aprovou a vacina em dezembro de 2022.

A vacina contra dengue do Instituto Butantan

O Instituto Butantan junto com o NIAID (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos) vem produzindo uma vacina contra a dengue há mais de 10 anos, com o nome provisório de Butantan-DV. Ela também é uma vacina tetravalente, de vírus atenuado, que pode ser aplicada tanto em pessoas soropositivas quanto soronegativas (assim como ocorre com a Qdenga). Isso é bom, pois podemos vacinar todos sem precisar de testes feitos anteriormente (como ocorre com a Dengvaxia) e, sendo uma vacina de vírus atenuado, a Butantan-DV gera uma resposta mais eficiente e duradoura.

O que se sabe até agora a partir dos estudos de fase 1, fase 2 e alguns dados da fase 3:

  • 100% das pessoas que já tiveram dengue (soropositivos) e foram vacinadas produziram anticorpos, assim como 90% daqueles nunca tiveram dengue (soronegativos) também produziram anticorpos quando foram vacinados;
  • Tanto pessoas soropositivas quanto soronegativas, ao serem vacinadas, produziram anticorpos e células de defesa contra todos os quatro sorotipos da dengue;
  • A eficácia geral da vacina ficou em 79,6%;
  • Naqueles que já tinham tido contado com a doença, a eficácia foi maior, de 89,2%;
  • Naqueles que nunca tiveram contato com a doença, a eficácia foi menor, de 73,5%;
  • Nas pessoas que foram vacinas não houve registro de nenhum caso de dengue hemorrágica, mesmo depois de 2 anos após as vacinações;
  • Os efeitos colaterais da vacina (chamados de reações adversas) foram leves e comuns (dor de cabeça, cansaço, erupção cutânea e dor muscular);
    • Das 10 mil pessoas imunizadas nos testes de fase 3, somente 3 delas (menos de 0,1%) tiveram reações adversas graves após a vacinação, sendo que todas se recuperaram totalmente.

Os cientistas envolvidos com o desenvolvimento da Butantan-DV já avisaram que uma única dose da vacina será suficiente, devido à uma dose adicional não ter gerado diferenças significativas na proteção contra o vírus. A expectativa é que a pesquisa termine em 2024 e a vacinação comece no SUS em 2025. Além disso, essa vacina é a primeira tecnologia brasileira transferida para uma empresa multinacional, a farmacêutica MSD. Em outras palavras, é a primeira vez que uma pesquisa desenvolvida no Brasil vai para uma empresa privada. Pois geralmente o que acontece é o movimento oposto.

Quando teremos uma vacinação de dengue no PNI?

Como vimos com a vacina da Sanofi, isso é algo muito difícil de prever, devido a ser vários os fatores que influenciam essa decisão. Lembrando, uma vacina precisa ser: 1) Eficiente, 2) Segura, 3) Barata, 4) Quanto menos doses, melhor, 5) Não precisar de testes para detecção da doença. Atualmente, a vacina do Instituto Butantan é a nossa melhor aposta. Embora, ainda teremos no mínimo mais 2 anos de pesquisa para confirmar a segurança e dados de eficácia dela na população. 

Por fim, é necessário lembrar também que não é só com a vacinação que vamos acabar com a dengue (assim como temos visto para a covid-19). Pois o vetor dela continuará aí: o mosquito. Mesmo que aprovemos uma vacina no nosso PNI e todos os brasileiros (ou mesmo todas as pessoas do mundo) sejam vacinados, o mosquito continuará no ambiente, podendo transmitir a dengue. Assim, as estratégias de controle do mosquito (comentadas anteriormente) continuarão sendo necessárias por muito tempo.

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1 Comentário em Se temos vacina contra dengue, por que não nos vacinamos?

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