Sempre que era noticiado no jornal que “O Imperial College de Londres recalculou a taxa R para o Brasil” eu me perguntava: mas isso faz sentido? E isso me incomodava porque parecia que cada canto do Brasil estava num momento diferente da pandemia. Moro em Belo Horizonte e, quando Manaus estava colapsando, por aqui estávamos em um momento mais tranquilo. Para mim não fazia sentido… Para responder a essa questão vamos analisar como ocorreu a disseminação da COVID-19 pelo nosso país e fazer uma reflexão sobre a taxa de transmissão do coronavírus no Brasil – o agora famoso R0 (ou seria Rt?). Vem com a gente pra entender isso aí!
COMO A COVID-19 SE ESPALHOU PELO BRASIL?
Marcia Castro é uma demógrafa brasileira, professora em Harvard, e publicou um artigo sobre a disseminação da COVID-19 no Brasil. Para a pesquisadora, ao falarmos em número total de casos e de mortes acabamos por esconder as grandes diferenças entre os estados.
Os gráficos abaixo, elaborados por pesquisadores da Fiocruz-MG, cobrem o período de abril a julho de 2020, conseguimos comparar a razão de transmissão (Rt) do vírus SARS-Cov-2 em diferentes cidades do Brasil.
Vamos falar sobre essa a taxa daqui a pouco, mas aqui conseguimos observar como esse padrão é diferente entre cada um desses locais.

O que poderia explicar essas diferenças no padrão de espalhamento da COVID-19? Para Marcia Castro, a falta de uma ação coordenada pelo governo federal, somada a problemas de notificação e a ações locais descoordenadas (como o fechamento de cidades), podem ter contribuído para isso. O que a professora observou em seu trabalho é que, ao longo do tempo, houve um processo de interiorização da doença. Esse processo se deu tanto nos estados quanto no país como um todo – e, também, é o esperado em uma situação de epidemia.
Explico: A pandemia começa em São Paulo, uma capital com grande movimentação de pessoas que vêm de fora do país, mas também acaba sendo um polo de dispersão para outros estados. Assim a pandemia que chega numa metrópole como SP, inicia seu movimento da capital para o interior do próprio estado, mas também para os demais estados brasileiros. Da capital, a COVID-19 se espalha para as regiões metropolitanas e vai cada vez chegando mais ao interior. Com isso, o que se observa é que, ao longo do tempo, o número de casos e mortes caem nas capitais à medida que sobem no interior do país.
E é isso que o gráfico abaixo mostra pra gente.

Observe que a inversão ocorreu a partir da semana epidemiológica 19 (entre os 03-09/05/20) e que, devido ao processo de interiorização, as cidades do interior tiveram mais tempo para se preparar para a chegada da pandemia do que as capitais – assim como, por exemplo, o Brasil teve mais tempo do que países Europeus.
Vale ressaltar ainda, que essa não é a única forma de dispersão do vírus, ele não chega uma única vez e se espalha. A entrada do vírus numa população pode ocorrer em vários momentos. No Amazonas, por exemplo, a variante Gama do novo coronavírus circulou por um bom tempo no interior do estado e foi constantemente reintroduzida em Manaus. A capital do AM, por sua vez, foi responsável pelo movimento contrário.
R0: COMO A GENTE MEDE O QUE ESTÁ ACONTECENDO COM A PANDEMIA?
Tendo entendido que a disseminação se deu de forma diferente entre cidades e estados, podemos falar no R0.
O número médio de pessoas que uma pessoa contaminada infecta é chamado de R0 (lemos R-zero) ou de razão básica de reprodução de um vírus.
De uma forma mais técnica, essa definição poderia ser “o número de casos que se espera que ocorra em média em uma população homogênea como resultado da infecção por um único indivíduo, quando a população é suscetível no início de uma epidemia, antes que a imunidade generalizada comece a se desenvolver e antes que qualquer tentativa de imunização tenha sido feita”. Um ponto central, importante de ser ressaltado aqui, é a necessidade de que haja contato entre as pessoas dessa população.
Por exemplo, se uma pessoa contaminada transmite, em média, a infecção para outras 3 pessoas (e assim por diante), temos um R0 com valor de 3.

É importante conhecermos o R0 de diferentes infecções virais para estabelecermos as estratégias de combate à infecção. Na imagem acima, observamos os valores estimados de R0 para diferentes doenças causadas por vírus. Ah! Veja bem, quando falamos do R0, nos referimos ao potencial de disseminação do vírus; e isso não está diretamente ligado à letalidade ou à gravidade da doença causada! Estima-se que o SARS-CoV-2 tenha um R0 de aproximadamente 2,6.
E quais fatores influenciam nesse valor?
– O tamanho da população e o contato entre os indivíduos
– Quantos indivíduos são susceptíveis à contaminação pelo vírus
– Capacidade de infecção do microrganismo
– Tempo durante o qual um indivíduo permanece transmitindo a doença
– Taxa de remoção da infecção (por cura ou morte de indivíduos infectados)
É importante ressaltar que o valor calculado depende da acurácia dos dados e do modelo epidemiológico utilizados. Dados ruins ou modelos pouco acurados podem distorcer muito os resultados. Desde o início de dezembro (10/12/20), quando o Ministério da Saúde foi hackeado, estamos sofrendo com um apagão de dados que está influenciando análises e estimativas sobre a pandemia no Brasil. O Observatório COVID-19 BR, por exemplo, deixa avisado no site: “Devido ao apagão de dados do Ministério da Saúde, estamos impossibilitados de atualizar nossas estimativas. Esperamos que o Ministério da Saúde reestabeleça os sistemas de informações afetados e assim possa manter a divulgação e transparência de dados em Saúde no país.“
Devemos sempre nos lembrar que: modelos não são exatos, eles são estimativas que nos orientam e devemos ter cuidado para que eles não sejam grosseiramente errados.
MAS E O TAL Rt? NÃO É A MESMA COISA?
O número zero em R0 significa que o valor é calculado considerando que há imunidade zero na população – o que foi o caso do SARS-Cov-2 no início da pandemia. Mas esse valor não é adequado, quando queremos analisar a taxa de disseminação do vírus ao longo do tempo.
Apesar de parecido, para esses casos utilizamos o Rt ou Re (número efetivo de reprodução; R0 no tempo; velocidade de contágio no tempo), que varia ao longo do tempo e depende dos valores do momento em que foi medido, sendo, também, impactado pelo aumento da imunidade após infecção ou vacinação, bem como pelo comportamento das pessoas (distanciamento social, uso de máscaras, por exemplo).
Assim, a variação do Rt ao longo do tempo nos ajuda a tomar decisões sobre políticas públicas durante a pandemia em curso. Isso acontece porque se o Rt é maior do que 1 (Rt>1) isso indica que a pandemia está em expansão; e se o Rt é menor do que 1 (Rt<1), a pandemia está em um momento de regressão, ou seja, a quantidade de pessoas contaminadas está diminuindo, podendo levar ao controle da doença.
COMPARANDO OS VALORES DO Rt DE MANAUS E BELO HORIZONTE
Tendo estabelecido as definições dos conceitos, procurei duas cidades que imaginei terem um perfil diferente de transmissão do SARS-Cov-2. Escolhi Belo Horizonte (MG) por ser onde moro e Manaus (AM) devido ao colapso que aconteceu na cidade no final de 2020/início de 2021; além do fato de as duas cidades ficarem muito distantes entre si, havendo um baixo fluxo entre os seus habitantes. Lembrando que o objetivo aqui não é analisar as causas da melhora ou piora de indicadores.Aqui vemos os gráficos com valores de Rt das duas cidades de março de 2020 a dezembro de 2021, destacando no quadro em amarelo o período entre novembro de 2020 e janeiro de 2021. Apesar de a escala do gráfico não ser a mesma e dificultar a comparação, conseguimos observar que as curvas mostram comportamentos diferentes da pandemia nas duas cidades.

Vamos agora, colocar os gráficos sobrepostos (mas apenas o recorte do período em destaque). Observe que enquanto a cidade de Belo Horizonte (azul) apresenta uma queda quase contínua dos valores de Rt, em Manaus observamos uma curva que aumenta antes de diminuir.

E ENFIM, FAZ SENTIDO CALCULAR UM Rt ÚNICO PARA O BRASIL?
Conseguimos ver que em cidades diferentes a propagação da pandemia se dá de formas também diferentes. Com isso entendemos que quanto mais ampliamos o foco da análise, mais estamos agrupando cidades com comportamentos distintos nos valores de Rt. Assim, análises de cidades são mais precisas que análises que comparam estados; e quando consideramos um país grande como o Brasil vemos valores que não retratam os detalhes e as divergências.
Quando comentei no Twitter sobre este tema, recebi o contato do Rafael Lopes – que faz doutorado em física, é pesquisador na área de dinâmica epidemiológica e, também, membro do Observatório COVID-19 BR.
Lopes ressalta que “calcular valores de Rt para um país grande como o Brasil é errado por definição, uma vez que o Rt é uma razão entre os casos de hoje e os casos anteriores numa dada comunidade, supondo-se, assim, que todos os indivíduos da comunidade estão em contato uns com os outros. Pessoas em Manaus não estão em contato com pessoas de Porto Alegre, por exemplo. Logo, calcular um R único para o Brasil coloca essa suposição [pessoas de diferentes cidades em contato] como verdadeira, mas ela é claramente falsa”.
Como vemos abaixo, o Rt da COVID-19 no Brasil vem sendo calculado ao longo de toda a pandemia pelo Imperial College de Londres. Mas por qual motivo isso vem sendo feito?

Calcular o Rt agregado pode útil pois nos permite fazer uma análise geral da situação do país e uma comparação a nível global. Mas essa abordagem, apesar de funcionar bem para países pequenos (como os da Europa, por exemplo) é, também, criticada para países grandes (como o Brasil e os Estados Unidos) pelos motivos que já levantamos no texto.
Por fim, é importante lembrar que ao fazermos isso acabamos perdendo detalhes da pandemia e, portanto, esse valor não deve ser utilizado como única base para políticas públicas nacionais. Para essas situações, porém, devem ser consideradas as especificidades locais antes de tudo!
REFERÊNCIAS
- Castro et al. (2021). Social isolation relaxation and the effective reproduction number (Rt) of COVID-19 in twelve Brazilian cities. Ciência e saúde coletiva, 26(10). DOI: 10.1590/1413-812320212610.10502021
- Castro et al. (2021). Spatiotemporal pattern of COVID-19 spread in Brazil. Science, 372(6544). DOI: 10.1126/science.abh1558
- MRC Centre for Global Infectious Disease Analysis, Imperial College London. Situation Report for COVID-19: Brazil, 2021-12-05
- Notas e gravação da entrevista coletiva com a profa. Marcia Castro para a disciplina de Jornalismo Científico, coordenada pelo professor e jornalista Bernardo Esteves, no Curso de Especialização em Comunicação Pública da Ciência (Amerek), da UFMG.
- Observatório COVID-19 BR
- Ethel Maciel. A Epidemiologia no enfrentamento da pandemia de coronavírus – parte 7.
- Oxford Brazil EBM Alliance. “Quando Isso Acabará?”: Uma Introdução Aos Números De Reprodução Viral, R0 E Re”.
- Rafael Lopes (@rafalpx). Tweet 1 e Tweet 2.
Esse post foi escrito originalmente no blog Meio de Cultura

Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.
0 comentário