Conflitos Esquecidos — Guerra Óptica

“Telescópio holandês” (1624). Gravura de Adriaen van de Venne e Jan Pieters van de Venne

Não foi um conflito militar, é claro. Ninguém saiu por aí armado de lunetas, microscópios e lentes. Essa pequena e esquecida guerra aconteceu nos jornais de Londres no começo do século XVIII. De um lado, a ambiciosa e talvez inescrupulosa jovem guarda da óptica, armada de uma autoconfiança cega; de outro, os veteranos do ramo, munidos de um ceticismo científico. No centro da disputa, a suposta performance de certos instrumentos, como um telescópio de dois pés. Não houve feridos, a não ser orgulhos.

No Daily Courant de 24 de março de 1707 apareceu um informe que era pura hipérbole, vindo do estabelecimento de G. Willdey e T. Brandreth, o “Arquimedes e o Globo”, em Ludgate Hill. Entre outras coisas, a jovem dupla de ópticos anunciava um microscópio que ampliaria objetos mais de dois milhões de vezes  — uma potência maior do que muitos dos microscópios eletrônicos que surgiram no século XX; um telescópio óptico dificilmente passa de ampliações de 1000X — e um refletor côncavo de metal que unia os raios solares tão vigorosamente que em um minuto derreteria aço e vitrificaria a mais dura substância.

“Ainda”, prosseguia o anúncio, “insistimos que não pretendemos impossibilidades nenhumas e que desprezamos a impostura sobre qualquer gentleman, mas o que nós fazemos e vendemos deve realmente ser bom e respondemos até o fim pelo que propomos em nossos anúncios.” Eles também ofereciam lunetas através das quais, “modestamente falando”, poder-se-ia observar objetos a vinte ou trinta milhas de distância e sobre as quais “nós estamos agora escrevendo um tratado com auxílio de sábios que dá os motivos para tal [desempenho] e que será dado de graça aos nossos consumidores.”

Evidentemente, o anúncio de instrumentos ópticos tão exorbitantes não convenceu todo mundo, a começar pelos ex-mestres dos anunciantes. No dia 16 de abril, no mesmo Daily Courant, apareceu um anúncio que mais parecia uma réplica de uma polêmica opinativa:

Por John Yarwell e Ralph Sterrop, Lentes Corretivas, de leitura e outros vidros ópticos foram levados à perfeição por sua própria arte e não necessitam do impulso inventivo de nossos dois aprendizes como recomendação para o mundo. Ambos, fraudulentamente apropriando-se do que nunca fizeram, e obstinadamente fingem o que nunca poderiam fazer, com não outra finalidade a não ser impressionar os ignorantes, enganar os crédulos e divertir o público. Por essas razões e a pedidos de diversos gentlemen já enganados, bem como para prevenir mais abusos que possam decorrer dos repetidos anúncios desses dois bons atores, nós, John Yarwell e Ralph Sterrop, informamos ao público e a qualquer pessoa que se incline a dispor de um momento para fazer o experimento, que estamos à disposição e que iremos demonstrar minuciosamente a insuficiência dos instrumentos e a vaidade de seus fabricantes pela comparação de seu miraculoso Two-Foot [Dois-Pés] com nossos Telescópios de Três e Quatro Pés [de diâmetro]. E, portanto, até que tal telescópio [tão poderoso quanto o do outro anúncio] seja feito, como deve ser do caráter desses executores sem paralelo, nós devemos declarar que tal é coisa muito impossível.

Willdey e Brandreth reagiram, claro, e publicaram novo anúncio no dia 25 de abril, no jornal já citado. Eles explicam que:

Considerando Mr. Yarwell, Mr Sterrop e Mr Marshall, os 2 primeiros dos quais foram nossos Mestres a quem servimos como Aprendizes e que por diversos anos fizemos para eles e Mr. Marshall o melhor do nosso trabalho. E que agora eles, com inveja de nossa prosperidade, têm publicado diversos anúncios falsos, enganadores e maliciosos, onde afirmam que trapaceamos todos os que compram nossos bens e que nós fingimos coisas impossíveis para fazer imposturas sobre o público; eles, que distorceram as palavras e o sentido de nossos anúncios, pretendem que nós afirmamos que um Telescópio de 2 Pés de nossa fabricação se sairá tão bem quanto um de 4 Pés da obra de qualquer outro; e eles, fraudulentamente, expõem em sua loja um de seus melhores 4 Pés contra um menor dos nossos e ainda apregoam contra a insuficiência de nosso instrumento. Agora nós, G. Willdey e T. Brandreth, tendo sido notoriamente abusados, declaramos que nunca prometemos tais coisas, ou que pretendêssemos impossibilidades; mas que faremos o melhor em cada detalhe em todos os artigos (“impossíveis”, “inacreditáveis”, “miraculosos”, “maravilhosos” e “surpreendentes”) mencionados em nossos anúncios; tais coisas podem mesmo parecer impossíveis, inacreditáveis, miraculosas, maravilhosas e surpreendentes para eles, mas asseguramos que não o são para nós. Pois nós temos pequenos telescópios milagrosos, como gostam de chamá-lo, que faz tais maravilhas que eles dizem ser impossível fazer um; com auxílio deste, nós pagaremos £10 a qualquer pessoa que, em vez das duas milhas mencionadas, nós lhe indicaremos a hora do dia a 3 ou 4 milhas de um relógio como o de St. James ou Bow.

Dessa vez, Yarwell & Sterrop foram mais precavidos: já haviam preparado um novo informe publicitário que apareceu nas folhas do Daily Courant logo no dia seguinte, 26 de abril. Os dois velhos mestres descreviam as maneiras de um médico charlatão e lamentavam que, em seu ramo, também houvessem charlatões. Houve uma escalada de violência bem britânica – uma aposta:

E estamos tão longe de desencorajar qualquer aperfeiçoamento que receberíamos um de qualquer mão e, independente do preço, colocaríamos em prática qualquer invenção que seja verdadeiramente vantajosa à arte. Mas as apresentações de Willdey são tão distantes de um aperfeiçoamento que nós estamos prontos a opor nosso trabalho ao seu sob julgamento de um homem hábil. E já que ele fala tanto de seu telescópio de dois pés, para deixar que o mundo veja que nada tem nessa fanfarronada, nós apostamos 10 guinéus em um telescópio de dois pés dos nossos contra o mesmo dele. E ainda, para afastar qualquer pretensão de preparação da nossa parte, se qualquer gentleman tiver um telescópio de dois pés adquirido de nós no prazo de um ano e sem danos pelo uso, vamos pôr 5 guinéus sobre sua performance contra um dos dele da mesma data. Isto é botar o assunto em equilíbrio e, esperamos, mostrará ao mundo que não somos piores que os aprendizes que ensinamos.

Os dois mais jovens aceitaram a aposta e em anúncio de 1º. de maio de 1707, ofereceram “20 guinéus contra os 10 deles, que nem eles nem Mr. Marshall podem fazer um telescópio melhor do que nós.” Não sabemos se houve uma nova aposta nem se as propostas chegaram a ser executadas. Uma semana mais tarde, porém, quem entrou na briga foi Mr. Marshall, indiretamente envolvido no conflito. Marshall afirmou ter descoberto “sob grandes custos e dores” um método de fabricação de lentes que ele apresentou “à Real Sociedade no ano de 1693, sendo por ela aprovado”; e que “desde então fabriquei lunetas, telescópios e microscópios para as Cortes de todos os Reis e Príncipes da Europa”. Em relação aos dois novatos do ramo, “que insinuam ao mundo que foram meus melhores operários durante anos: um eu nunca empreguei e no outro encontro tantas dúvidas quanto muitos gentlemen encontram em ambos, que são apenas fanfarrões e não realizadores do que anunciam”.

Depois disso, ambos os lados da disputa ainda publicaram mais dois longos anúncios trocando acusações e injúrias num intervalo de poucos dias. Os profissionais mais experientes, porém, foram os primeiros a se retirar da polêmica, em meados de maio. Mas não se pode dizer que os novatos venceram. Talvez a retirada tenha sido estratégica e aconteceu porque a disputa deve ter ficado muito cara de se manter — os anúncios eram cada vez maiores em extensão — ou talvez por que Yarwell & Stirrop se deram conta de que quanto mais barulho fizessem, mais propaganda gratuita acabariam dando a Willdey & Brandreth. Portanto, seria melhor o desprezo demonstrado por um silêncio solene.

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