Stanley Lloyd Miller. Ao ler ou ouvir esse nome, qualquer estudante de Química ou Bioquímica deve se lembrar de um dos experimentos mais importantes do século XX. Mas antes de morrer, Miller deixou uma caixinha de surpresas que os bioquímicos do século XXI estão começando a abrir. As novas análises de velhas amostras — algumas inéditas — confirmam os resultados do célebre experimento de Miller (e Urey) de 1953 e ainda revelam outros caminhos de reação para a formação de moléculas orgânicas na Terra primitiva.
No experimento de 1953, Stanley L. Miller e Harold C. Urey — na época, ambos estavam na Universidade de Chicago — buscaram simular as condições da atmosfera terrestre primitiva, conforme postuladas por Aleksandr Oparin e J. B. S. Haldane. Para essa demonstração experimental, Miller usou um sistema fechado contendo os principais gases atmosféricos primordiais, como hidrogênio, amônia, metano e vapor d’água. Em meio a descargas elétricas (que simulavam raios) essa mistura foi submetida a diversos ciclos de aquecimento e condensação de água (o que simulava a chuva). O resultado, publicado num artigo na revista Science sob autoria de Miller, demonstrava empiricamente a síntese de moléculas orgânicas a partir de componentes da atmosfera primitiva da Terra.
No segundo episódio da série clássica Cosmos, Carl Sagan explica e comenta a experiência de Miller. Se o leitor tem alguns minutos, acompanhe, entre aproximadamente 47:00 e aprox. 52:48 no vídeo a seguir.
Stanley Miller podia deitar nos louros da fama, mas não parou por aí. De maneira mais discreta, ele continuou fazendo variações de seu experimento mais famoso nos anos seguintes. Numa experiência realizada em 1958, quando atuava no Departamento de Bioquímica do Colégio de Medicina e Cirurgia da Universidade de Colúmbia, em Nova York, Miller teve a ideia de usar um composto orgânico chamado cianamida. Os cientistas da época já suspeitavam que a reação com cianamida poderia funcionar para produzir aminoácidos e peptídeos — mas apenas em condições ácidas, o que, pensava-se, seria pouco provável na Terra primitiva.
Não sabemos ao certo de onde Miller tirou a ideia de experimentar com cianamida — um composto usado pela indústria farmacêutica —, mas novas análises de amostras inéditas provam que o experimento de 1958 deu certo e que a acidez não seria pré-condição para a reação com a cianamida.
O homem por trás dessa redescoberta de Miller é um de seus discípulos. Seu nome é Jeffrey Bada e ele foi o segundo estudante de graduação a ser orientado por Miller. Os dois tornaram-se íntimos e colaboraram diversas vezes ao longo de suas carreiras. Quando Miller sofreu um sério derrame em 1999, Bada recebeu do laboratório do antigo mestre várias caixas. Eram verdadeiras caixinhas de surpresas deixadas por Miller.
Não faz muito tempo, Jeffrey Bada começou a abrir essas caixinhas de supresas. “Eu abri [uma das caixas] e nela havia todas aquelas caixinhas”, explicou Bada ao Phys.org. “Comecei a revirá-las e percebi que eram todas de seus [de Miller] experimentos originais.” Nas caixinhas, havia amostras do famoso experimento de 1953 e de outros relacionados. As caixas estavam bem preservadas e haviam sido cuidadosamente marcadas pelo próprio Miller, incluindo detalhes como o número da página onde o experimento foi descrito no diário de laboratório do cientista.
Atualmente, Bada trabalha como professor de Química Marinha no Scripps Institution of Oceanography da Universidade da Califórnia em San Diego. Para um estudo recém-publicado, Bada forneceu amostras do material do experimento com cianamida de 1958. Essa reavaliação de Miller contou com colaboradores do Center for Chemical Evolution, do Instituto de Tecnologia da Georgia, da Fundação Nacional da Ciência (dos EUA) e do Programa de Astrobiologia da NASA.
As amostras de 1958 foram analisadas por Eric T. Parker e seu orientandor, Facundo M. Fernández, ambos da Escola de Química do Instituto de Tecnologia da Georgia. As amostras de mais de meio século foram submetidas a análises por cromatografia e espectrometria de massa. Segundo as análises — cujos resultados foram publicados online em 25 de junho na edição internacional do jornal Angewandte Chemie —, a experiência de Miller de 1958 foi bem-sucedida, pois a reação com cianamida formou peptídeos.
Com adaptações para permitir o uso de equipamentos modernos, a experiência de 1958 também foi replicada, confirmando os resultados originais e esclarecendo o funcionamento da reação. “Descobrimos alguns dos mesmos produtos de polimerização que observamos nas amostras originais. Isso corrobora os dados que coletamos na análise dos originais.”, explicou Parker ao Phys.org.
Apesar das surpresas, essa não é a primeira replicação ou reavaliação dos antigos experimentos de Miller com técnicas modernas. Em 2008, uma equipe encontrou amostras da experiência clássica de 1953 e sua análise demonstrou que a síntese de peptídeos havia sido mais eficiente do que Miller conseguiu publicar na Science em 1953. Em 2011, Parker analisou amostras de outro experimento de 1958, no qual Miller usou sulfeto de hidrogênio como reagente numa experiência com o balão de descargas elétricas. Este outro experimento também produziu mais aminoácidos do que o famoso estudo de Miller de 1953. Será que outras caixinhas guardadas pelo professor Bada armazenam novas surpresas?
Referências
MILLER, Stanley L. A Production of Amino Acids under Possible Primitive Earth Conditions [Uma Produção de Aminoácidos sob Possíveis Condições da Terra Primitiva]. Science, New Series, Vol. 117, nº. 3046 (15 de maio de 1953), p. 528-29. doi:10.1126/science.117.3046.528. [Desse artigo original, há uma cópia digitalizada, em pdf]
PARKER, Eric T., et al., A Plausible Simultaneous Synthesis of Amino Acids and Simple Peptides on the Primordial Earth. [Uma Síntese Simultânea Plausível de Aminoácidos e Peptídeos Simples na Terra Primordial]. Angewandte Chemie, 25 de junho de 2014. dx.doi.org/10.1002/anie.201403683
Anderson Arndt
Muito, muito legal!!!