Multiversos Medievais

Xilogravura de autor desconhecido que ilustra L'atmosphère: météorologie populaire (1888), de Camille Flamarion.
Xilogravura de autor desconhecido que ilustra L’atmosphère: météorologie populaire (1888), de Camille Flamarion.

No século XIII, um conflito entre fé e ciência teve um resultado surpreendente: uma teoria medieval sobre universos paralelos

Por Sarah Laskow, no Atlas Obscura. Tradução de Renato Pincelli.

Etienne Tempier tinha um problema. Em 1277, ele era o Bispo de Paris e ouviu boatos de que, na Sorbonne, os membros da faculdade de artes — os professores do lado não-teológico da universidade — estavam ensinando ideias heréticas, derivadas das obras de Aristóteles. O próprio papa [João XXI, único papa português], que havia sido professor de teologia na Sorbonne, escreveu uma carta pedindo a Tempier [?-1279] que verificasse esses rumores.

O bispo respondeu com uma lista contendo 219 proposições que ele condenou como heréticas. Docentes de qualquer faculdade de artes que as ensinassem deveriam ser excomungados da Igreja e perder seu cargo de professor. Para uma mente moderna, isso não cheira bem: um líder religioso censurando o cânone de um dos mais influentes filósofos ocidentais.

No século XXI, é fácil pensar na Europa medieval como um lugar atrasado em termos intelectuais, numa época em que a religião governava e os progressos científicos e artísticos eram sufocados. Mas esse desentendimento entre dois departamentos universitários — artes e teologia — do século XIII iria levar os pensadores medievais a considerar ideias que parecem surpreendentemente modernas. Ao rejeitar um princípio-chave do aristotelismo, Tempier inspirou os estudiosos medievais que o sucederam a desenvolver uma teoria de multiverso e a considerar as possibilidades de mundos distantes habitados por seres alienígenas.

“Pode-se pensar que é sorte ou insight, mas derrubar um dogma científico faz crescer novas ideais, renovando o cenário”, diz Christopher Clemens, professor de astronomia na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Clemens está estudando as “ideias medievais de multiverso”, título que ele deu a uma palestra recente. Astrofísico estelar, ele oficialmente estuda anãs-brancas mas há cerca de dez anos ele começou a ler sobre o pensamento científico medieval como parte de um esforço da universidade para criar classes multidisciplinares. Seu guia para esse mundo foi Pierre Duhem [1861-1916], cientista e historiador que o deixou fascinado.

No século XIX, Dunhem reexaminou a história do pensamento científico medieval e propôs uma tese controversa: não houve, essencialmente, uma “revolução científica” durante o Renascimento e sim uma continuação do que já havia começado a acontecer no pensamento medieval da “era das trevas”. Dunhem, em particular, pensou que as condenações de Tempier em 1277 liberou os pensadores da Europa cristã da influência de Aristóteles, abrindo caminho para o desenvolvimento da ciência moderna.

Historiadores convencionais costumam ser céticos diante de Dunhem, mas Clemens pensa que ele descobriu alguma coisa. No caso dos multiversos medievais, pelo menos, é possível seguir uma trilha que vai de uma das condenações de Tempier até ideias que surgiram mais de um século mais tarde sobre mundos infinitos repletos de criaturas alienígenas.

Entre as ideias condenadas por Tempier estava um princípio do pensamento aristotélico segundo o qual a “causa primeira” (ou, como diriam os estudiosos medievais, Deus) não poderia ter feito mais de um mundo. A lógica era mais ou menos assim: a terra era um dos quatro elementos e um de seus princípios era de que ela se movia no sentido do centro do mundo. Porém, se houvesse um mundo vizinho ao nosso, com a terra no seu centro, aquela terra não estaria se movendo ao redor do centro da Terra. Como isso viola as regras de comportamento do elemento terra, só poderia haver um único mundo.

Para Tempier, no entanto, essa ideia ia de encontro a um princípio teológico muito importante: Deus seria todo-poderoso e poderia realizar qualquer coisa que quisesse. Como não pode haver limites aos poderes de Deus, não pode haver limites ao número de mundos, que poderiam ser múltiplos, se Ele quisesse. Alguns pensadores medievais tomaram isso como um desafio. “Imediatamente, eles começaram a dizer ‘Vamos dar uma olhada minuciosa no que Aristóteles disse’”, explica Clemens. Eles começaram a observar mais detalhadamente, por exemplo, em antigos comentários em aramaico sobre Aristóteles e consideraram o que mais seria possível. “Eles descobriram novas ideias que estavam além dos limites da física aristotélica da época”, diz Clemens.

Richard de Middleton, por exemplo, que viveu na segunda metade do século XIII [c.1249–c.1308], respondeu a Tempier afirmando ser possível a existência de mais de um universo: “Deus poderia e pode ainda agora criar outro universo”. Ele tentou reconciliar isso com o pensamento aristotélico argumentando que a matéria do segundo mundo ficaria separada em seu próprio universo, sendo que a terra se aglomeraria no centro de cada um.

Um estudioso mais tardio, William de Ware, desenvolveu ainda mais essa ideia. O que significa falar em outro mundo? — ele se perguntou. Ele não pensava na possibilidade de dois universos vizinhos: por definição o universo deveria conter toda e qualquer criação já feita. Então como poderia haver mais de um mundo? Ele argumentou que os múltiplos mundos teriam que ser inteiramente separados, sem quaisquer meios de interação — algo que hoje em dia chamaríamos de universos paralelos.

“Esse é o modo no qual pensamos em multiversos hoje”, diz Clemens em sua palestra. “Nós pensamos, no jargão moderno, que eles são espaços causalmente desconectados que não podem interagir.”

Por volta do século XV, as ideais medievais sobre o universo já estavam longe do ideal aristotélico de um mundo único com a Terra no seu centro. O teólogo e astrônomo Nicolau de Cusa (1401-1464) acreditava que se fôssemos capazes de sair do planeta, veríamos múltiplos corpos luminosos além do nosso próprio mundo — estrelas, planetas e luas distantes. Ele chegou até mesmo a imaginar que esses planetas poderiam ser habitados, atribuindo ao sol habitantes brilhantes e intelectuais enquanto a lua abrigaria uma população de “lunáticos”. Isso foi cerca de um século antes de Galileu ganhar fama ao rejeitar a ideia de um mundo geocêntrico e colocar o sol no centro do universo.

Esses pensadores medievais estavam trabalhando a partir de uma ideia religiosa sobre o poder divino. No entanto, essa linha de investigação também promoveu uma abertura científica a diferentes ideias sobre a estrutura e o funcionamento do mundo físico. Seguir o modelo de Tempier levou os pensadores medievais a algumas ideias surpreendentemente modernas sobre universos paralelos e exoplanetas — algo que, no mínimo, faria Aristóteles rir.

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