Desconstruindo Gödel

Kurt Gödel podia ser bem paranoico às vezes — motivos para isso não lhe faltavam.

Por Romeo Vitelli, no Providentia. Tradução de Renato Pincelli.

Nascido em 1906, no que então era o Império Austro-Húngaro, ele se tornou cidadão da Checoslováquia aos 12 anos, quando a Austria-Hungria se esfacelou. Após sobreviver a um surto de febre reumática aos seis anos de idade, Gödel passou o resto da vida temendo que seu coração tivesse sido permanentemente danificado. Aos 18, ele se mudou para Viena a fim de estudar Física Teórica. Inspirado pelos trabalhos de David Hilbert e Wilhelm Ackermann, Gödel mudou de curso, graduando-se em matemática e lógica e concluindo o doutorado aos 30 anos.

Foi sua tese de doutorado, sobre o cálculo de predicado de primeira ordem (mais conhecido como Teorema da Completude de Gödel) que lhe deu fama como lógico. Estabelecendo uma correspondência entre a verdade semântica e a probabilidade sintática na lógica de primeira ordem, Gödel logo alcançou provas para seus teoremas de incompletude, que demonstram as limitações inerentes da maioria dos sistemas matemáticos. Num artigo de duas páginas que publicou em 1932, Kurt Gödel também refutou os aspectos finitos da lógica intuicionista e foi o primeiro a demonstrar o que mais tarde ficou conhecido como lógica difusa.

Apesar de sua crescente fama como parte do “Círculo de Viena” de filósofos, a vida de Gödel foi rapidamente atribulada pelas mudanças no cenário político da Áustria. Como ele se considerava austríaco de nascimento, naturalizou-se aos 23 anos. Infelizmente, isso automaticamente o transformou em cidadão alemão após o Anchluss, em 1938. A influência do regime nazista o marcaria pelo resto da vida. Entre os matemáticos vienenses, houve um expurgo generalizado de ideias e acadêmicos “anti-germânicos” (i.e., judeus) e muitos membros do Círculo de Viena fugiram para os Estados Unidos.

Depois que o orientador de Gödel, Moritz Schlick, foi assassinado por um estudante pró-nazista em 22 de junho de 1936, houve uma chuva de propaganda anti-judaica para justificar o assassinato — apesar do fato de que Schlick nem era judeu. Esse assassinato e o subsequente frenesi midiático fez Gödel entrar em parafuso emocional, uma experiência que seus biógrafos descreveriam, mais tarde, como uma “severa crise nervosa”. Ele passou meses num sanatório e desenvolveu os primeiros sintomas paranoicos que iriam atormentá-lo a partir de então — como seu medo de ser envenenado.

Ficar na Áustria provou ser uma escolha cada vez mais arriscada para Gödel. Ele não só teve dificuldades para manter um cargo universitário por causa de suas antigas ligações com os judeus do Círculo de Viena como também poderia ser convocado para prestar serviço militar. Em 1939, com o começo da II Guerra Mundial, Gödel cedeu. Junto com sua esposa, Adele, ele viajou discretamente para os EUA, onde aceitou uma posição no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Bastante conhecido naquela cidade por suas frequentes visitas como palestrante convidado, Gödel se estabeleceu com facilidade e logo pôde retomar seu trabalho matemático. Ele e Albert Einstein tornaram-se amigos íntimos em pouco tempo e Einstein mais tarde diria que “voltar para casa com Gödel” era um dos melhores momentos de sua rotina no Instituto.

Infelizmente, as experiências de Gödel com os nazistas haviam lhe marcado profundamente e sua paranoia nunca seria atenuada. Embora fosse capaz de prosseguir com sua obra matemática, o temor de que os EUA se tornassem uma ditadura era algo que lhe assombrava. Mesmo durante o teste de naturalização, quando ele confidenciou a Einstein e Oskar Morgenstern (que o acompanharam no exame como testemunhas) que havia encontrado uma inconsistência na constituição americana que poderia permitir uma ditadura.

Apesar de Einstein e Morgenstern terem lhe aconselhado a não mencionar nada disso durante a cerimônia de juramento, Gödel botou tudo pra fora quando o juiz da cerimônia casualmente comentou a experiência de Gödel com a ditadura, afirmando que “uma ditadura maligna” como aquela seria impossível na América. Foi a gota d’água para o matemático, que prontamente expôs sua explicação de como uma ditadura seria constitucionalmente possível. O comportamento descontrolado de Gödel exigiu os esforços de Einstein, Morgenstern e do próprio juiz, que levou muito tempo para concluir o que seria apenas uma formalidade de rotina.

Kurt e Adele (c. 1938)
Kurt e Adele (c. 1938)

Quem deu suporte a Gödel pelo resto de sua vida foi sua esposa, Adele, que era sua principal apoiadora. Desde o começo do casamento deles, em 1938, Adele era defensora feroz do marido. Certa vez, ao ser confrontada por camisas-pardas nazistas, Adele literalmente lutou contra eles — com seu guarda-chuva. Quando Gödel passou a ter medo de ser envenenado, ela fez questão de preparar todas as suas refeições pessoalmente e de agir como provadora da comida dele. Após a mudança para Princeton, os Gödels compraram uma residência modesta numa vizinhança de imigrantes, longe de onde os colegas de Kurt viviam — Adele preferia viver entre vizinhos germanófonos. Depois da guerra, ela voltou à Europa algumas vezes para visitar seus parentes, mas Kurt jamais deixou os EUA e recusou um cargo de professor-visitante oferecido pela Áustria em 1966.

Nos anos finais de sua vida, Gödel tornou-se cada vez mais esquisito. Ele prosseguiu com seu trabalho mas também abriu novos e surpreendentes caminhos, como um crescente interesse pela metafísica e pelo ocultismo. Durante os anos 1950, enquanto sua saúde se deteriorava, ele fez vários autodiagnósticos, o que piorou sua paranoia. Seu médico pessoal, Dr. Ramona, comentou mais tarde que “ele era realmente um paciente muito difícil. Certa vez me chamaram em sua casa porque ele estaria cuspindo sangue. Fiz diagnóstico de úlcera, mas ele se recusou a ir ao hospital, cedendo apenas após a arte da persuasão de Einstein”. Quando Albert Einstein faleceu, em 1955, Gödel perdeu seu amigo mais próximo em Princeton, ficando mais isolado do que nunca.

Kurt continuou trabalhando em Princeton e acabaria recebendo a Medalha Nacional de Ciência em 1976 e aposentado como professor-emérito em 1976. Mesmo assim, ele tornou-se completamente dependente de Adele, que representava sua única família — os Gödels nunca tiveram filhos e Kurt raramente via o irmão que ficou na Áustria. Seu medo de ser envenenado só piorava, chegando ao ponto de às vezes ele só sentir segurança das refeições que ele mesmo preparava. Ele também passou a se sentir culpado e ansioso, achando que havia decepcionado as expectativas do Instituto. Apesar das consultas com o psiquiatra Richard Huelsenbeck, houve pouca melhora e até Adele ficou desesperada com o comportamento estranho do marido.

A crise final veio em 1977, quando Adele teve que passar seis meses hospitalizada depois de uma cirurgia. A doença e a longa internação dela a impediram de cuidar do marido. Na ausência de Adele, Gödel recusava-se a comer qualquer comida que não fosse feita por ela e começou a ficar desnutrido. Em 29 de dezembro de 1977 Hassler Whitney — um dos colegas de Gödel no Instituto — ligou para o Dr. Ramona e disse que o matemático estava severamente desidratado e numa condição lastimável. Em seguida, Whitney levou Gödel à emergência do Hospital Princeton, onde ele foi internado.

Só que mesmo no hospital ele se recusava a comer e continuou perdendo peso. Ao falecer, em 14 de agosto de 1978, Kurt Gödel estava profundamente emaciado e a causa mortis em seu atestado de óbito foi descrita como “desnutrição e inanição causada por distúrbio de personalidade”. Segundo o Dr. Ramona, “ele havia recusado todos os alimentos. Nunca foi de comer muito mas seu peso final era por volta de apenas 60 libras [cerca de 27 kg]. Ele morreu em posição fetal.” Gödel foi enterrado no cemitério de Princeton, com sua esposa, Adele, que faleceu em 1981.

Foram necessários dois anos para catalogar as sessenta caixas de documentos e papeis pessoais deixados por Kurt Gödel. Parte da coleção permanente de Princeton, muitos desses papeis e correspondências já foram publicados em cinco volumes, além de diversos comentários e biografias. Em 1987, foi fundada a Kurt Gödel Society, com o objetivo de promover pesquisas sobre lógica, filosofia e a História da Matemática. No fim das contas, é um legado digno de um sujeito tão complexo.

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