Na selva de pedra, cada tribo fala de um jeito diferente, que é facilmente aprendido pelas crianças. O mesmo acontece com aquelas criaturinhas que vivem penduradas de cabeça pra baixo, os morcegos.
Dentre as muitas coisas que aprendemos com nossas mães está o modo de se comunicar. O termo “língua materna” reflete o fato de que é da mãe que herdamos o idioma em que nos expressamos. Só que o modo de falar da mãe não é o único que existe e possível de ser aprendido, sobretudo em seres sociais. Desde cedo as crianças também são expostas à comunidade onde nasceram, e essas comunidade têm peculiaridades linguísticas — como o R caipira do interior de São Paulo — que acabam sendo naturalmente absorvidas pela criança. Mas existe outro mamífero social que também tem sotaques que influenciam seus filhotes.
Algumas espécies de morcegos vivem em florestas enquanto outras abrigam-se no interior de cavernas. Em ambas, os filhotes aprendem a se comunicar por meio da mãe. Mas morcegos não vivem sozinhos: dentro de uma caverna existem centenas ou milhares de morcegos, que se dividem em subgrupos, como os que preferem ficar mais próximos à saída do abrigo e os trevosos que preferem ficar no mais completo breu. O que acontece quando o filhote de um grupo for exposto ao “modo de falar” de outro?
Para descobrir isso, uma equipe formada pelo Dr. Yossi Yovel (Universidade de Tel-Aviv, Israel) e seus alunos Yosef Prat e Lindsay Azoulay, capturaram fêmeas grávidas de morcegos-da-fruta-do-Egito (Rousettus aegyptiacus). As fêmeas geraram 14 filhotes, que foram divididos em três colônias mantidas em três câmaras idênticas e acusticamente isoladas. Dessa forma, os pesquisadores puderam expor os morceguinhos de cada comunidade formada a gravações com três diferentes subtipos de vocalizações de morcegos. Esse arranjo foi mantido ao longo de um ano, até que os filhotes alcançassem a vida adulta.
A princípio, Yovel e seus colegas observaram o óbvio: os morceguinhos aprendendo a se comunicar com a linguagem padrão de suas respectivas mães. No entanto, com o passar do tempo, cada um dos três grupos passou a se comunicar com um dialeto semelhante ao das gravações às quais haviam sido expostos. Publicados na revista PLoS Biology, esses resultados se assemelham ao caso de uma criança caipira que passa a morar numa comunidade predominantemente carioca e muda seu jeito de falar. Da mesma forma que o nosso caipirinha não perderia inteiramente o seu sotaque, os morceguinhos continuam a se comunicar com a mãe da maneira que aprenderam com ela.
Como destaca o professor Yovel em comunicado ao Phys.org, “a capacidade de aprender vocalizações com outros é extremamente importante para a aquisição de linguagem nos humanos, mas acreditava-se que fosse rara entre os animais.” O problema é que muitas das pesquisas do crescente campo da comunicação animal baseiam-se em pássaros.
Embora tenham cantos específicos similares às nossas diferentes línguas, os pássaros costumam aprender apenas com seus pais e têm pouca influência social. O que a pesquisa com os morcegos revela é que essa flexibilidade linguística — que nos permite falar de um jeito com a nossa mãe e de outro com nossos colegas — não é exclusividade nossa.
Se morcegos podem aprender a falar com sotaques diferentes, será que são capazes de aprender a língua de grupos ou mesmo de espécies diferentes? Ou será que, com a chegada de novos membros, o dialeto de uma comunidade de morcegos também muda? Essas implicações sociais mais amplas serão estudadas a partir de agora por Yovel e seus colaboradores. Pesquisas como essa podem esclarecer não apenas como os animais se comunicam mas também como nós nos adaptamos quando nos movimentamos entre diferentes grupos sociais ou somos forçados a migrar para países com uma língua diferente da nossa língua-mãe.
Referência
Prat Y, Azoulay L, Dor R, Yovel Y (2017) Crowd vocal learning induces vocal dialects in bats: Playback of conspecifics shapes fundamental frequency usage by pups [Aprendizado vocal de multidões induz dialetos vocais em morcegos: playbacks de formas fundamentais coespecíficas modela uso de frequência pelos filhotes]. PLoS Biology 15(10): e2002556. DOI:doi.org/10.1371/journal.pbio.2002556
Jan Andrade
Adorei a reportagem. Amo tudo relativo às ciências. Parabéns pelo trabalho