Ferrovias intracelulares

Microtúbulos em processo de construção. As bolhas em torno desses trilhos moleculares são cargas que serão transportadas pelas cinosinas. [Imagem: Universidade de Warwick/divulgação]
Microtúbulos em processo de construção. As bolhas em torno desses trilhos moleculares são cargas que serão transportadas pelas cinosinas. [Imagem: Universidade de Warwick/divulgação]

Redes ferroviárias têm construção mais difícil mas quanto mais são usadas, mais fácil fica sua manutenção. Algo parecido ocorre dentro de nossas células.

Tal como um país, uma célula tem zonas de produção localizadas em áreas distintas: as usinas de energia (mitocôndrias), as indústrias químicas (lisossomos, ribossomos, complexo de Golgi), as seções administrativas (núcleo celular, RNAm). Interligar essas diferentes áreas é fundamental para o bom funcionamento do sistema, seja ele um país ou uma célula. Em termos de país, um bom meio de fazer isso é através de ferrovias.

Embora seja muito mais útil que uma estrada asfaltada para o transporte de cargas, uma estrada-de-ferro tem construção bem mais complicada: o relevo deve ser estudado com mais cuidado, a montagem dos trilhos é mais demorada e os custos com a mão-de-obra, maiores. Por um lado, quando bem utilizado, o transporte por trilhos sai mais barato: trocar trilhos ou dormentes aqui e acolá costuma ser mais barato do que fazer uma operação tapa-buracos ao longo de quilômetros de rodovias. Por outro, sai bem caro quando a linha torna-se obsoleta em pouco tempo e os trilhos, em vez de conduzir trens e cargas acabam virando matagais enferrujados.

Dentro de cada uma de nossas células também existem ferrovias (ou até mesmo metrôs, como no caso dos neurônios). Como explica o prof. David Cross ao Phys.org, essas redes ferroviárias intracelulares são “quase inimaginavelmente pequenas — têm apenas 25 nanômetros de largura (um nanômetro é um milionésimo de metro”. Professor de mecanoquímica celular na Universidade de Warwick (Reino Unido), Cross se perguntou como é que as células evitam a ociosidade de suas ferrovias.

Nesta concepção artística, fica clara a analogia ferroviária: os trens de carga são as cinesinas, que caminham sobre os trilhos de microtúbulos. Note que pode haver mais de um trem por trilho que se unem em estações (centrossomos ou centríolos)
Nesta concepção artística, fica clara a analogia ferroviária: os trens de carga são as cinesinas, que caminham sobre os trilhos de microtúbulos. Note que pode haver mais de um trem por trilho e que estes se unem em estações (centrossomos ou centríolos).

Para investigar isso, Cross construiu, com ajuda de seus colegas de laboratório, um microscópio open source específico para a observação dos microtúbulos, suas redes e suas cargas. A pesquisa revelou que os microtúbulos funcionam como uma espécie de ferrovia inteligente. Quando entram em contato com a cinesina — a maria-fumaça molecular —, os microtúbulos sofrem uma tração minúscula, que os estica. A variação de comprimento observada pode ser pequena — 1,6% de alguns nanômetros — mas parece ser cumulativa. Assim, quanto mais cinesinas passam, mais longos (e mais estáveis) vão ficando os trilhos de microtúbulos. Quando poucas ou nenhuma cinesinas aparecem, os microtúbulos começam a se desmontar e suas peças moleculares ficam livres para serem reutilizadas na construção de micro-ferrovias onde houver mais demanda.

Vista assim, bem de perto, a cinesina em movimento chega até a parecer fofinha.
Vista assim, bem de perto, a cinesina em movimento chega até a parecer fofinha.

Publicada na Nature Nanotechnology, a pesquisa de Cross et. al. pode abrir novos caminhos para o entendimento de doenças relacionadas às disfunções dos microtúbulos, como o mal de Alzheimer e o câncer — além do transporte, microtúbulos ajudam a estabilizar as estruturas celulares, especialmente durante as fases de divisão. Talvez o maior potencial esteja nas aplicações oncológicas: Cross e sua equipe perceberam que o mecanismo de estabilização dos microtúbulos funciona de maneira muito parecida com o Taxol, um remédio usado em quimioterapia. Além desses avanços na área de saúde, não e difícil imaginar uma aplicação logística da descoberta, capaz de inspirar soluções para melhorar a manutenção de ferrovias de verdade — poderíamos substituir as cinesinas por sensores de movimento nos trilhos — e impedir seu sucateamento transferindo os trilhos conforme a demanda.

Referência

rb2_large_gray25Daniel R. Peet et al. Kinesin expands and stabilizes the GDP-microtubule lattice [Cinesina expande e estabiliza a rede de microtúbulos-GDP], Nature Nanotechnology (2018). DOI:10.1038/s41565-018-0084-4

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