Darwin e os alienígenas

Darwins Aliens
Moléculas auto-replicantes. Células. Organismos. Uma vez iniciada a marcha da vida, surgem pressões naturais para a formação de estruturas e organismos cada vez mais complexos – e pouco importa qual seja a bioquímica básica do código genético onde tudo começa.

Estudo da Universidade de Oxford busca definir a vida e suas complexidades e aplica a seleção natural para facilitar o reconhecimento de seres extraterrestres — se existirem, claro.

Quando botou os pés em Galápagos, foi como se Charles Darwin desembarcasse em outro mundo. Tudo ali era muito diferente de sua Inglaterra natal: o relevo, o clima, a fauna, a flora. E no entanto, tudo era reconhecível: os peixes nadavam, os vegetais eram fixos e os pássaros, embora tivessem bicos diferentes conforme a ilha, ainda voavam. Foi nesse ambiente diverso que Darwin percebeu que os seres vivos só têm sucesso quando se adaptam bem ao ambiente onde estão.

Um século e meio depois, estamos descobrindo milhares de ambientes exóticos — os exoplanetas. Naturalmente, também nos perguntamos se esses mundos distantes seriam capazes de abrigar vida. Se sim, como seriam os seres vivos de outros planetas? Fazer previsões sobre vida extraterrestre é difícil. Só temos um exemplo a partir do qual extrapolar — a Terra, cujas condições dificilmente serão iguais às de outros planetas habitáveis. Mas algumas condições para a vida podem ser universais, como a seleção natural e a complexidade observadas por Darwin em Galápagos.

Imaginar criaturas bizarras de outros planetas pode ficar mais fácil se não nos apegarmos muito aos nossos detalhes específicos. Essa é a conclusão que se pode tirar de um estudo intitulado Darwin’s aliens, publicado por Samuel R. Levin no International Journal of Astrobiology em setembro do ano passado. Neste paper, Levin e seus colegas da Universidade de Oxford (Reino Unido) defendem a aplicação dos princípios genéricos da seleção natural à astrobiologia.

Antes de tudo é preciso definir alguns termos. Delimitar o significado de vida é sempre complicado, mas Levin e seus colegas a definem como como um sistema capaz de replicação, metabolismo e complexidade. Talvez seja difícil dar uma definição de vida porque a própria definição de complexidade é complicada. Para os pesquisadores britânicos, a seleção natural pode ser considerada como uma combinação de hereditariedade + variação + sucesso diferencial. Tais fatores independem do sistema genético ou do ambiente planetário. Por isso, em teoria, nada impede o surgimento de uma criatura desprovida de olhos (mas com sentidos totalmente inéditos) com uma bioquímica baseada em silício num planeta que nos seria hostil.

Moléculas auto-replicadoras podem ser comuns, mas só poderiam ser consideradas vivas, segundo Levin et. al., se estiverem submetidas à seleção natural. Sem a seleção e seus mecanismos, tal entidade não se adaptaria às mudanças ambientais (e portanto não seria duradoura) nem conseguiria acumular adaptações como metabolismo, locomoção ou órgãos sensoriais. Uma vez iniciada a marcha da seleção natural, surgem pressões pela complexidade.

Acontece o seguinte: quando o número de seres vivos chega num certo ponto, a disponibilidade de recursos cai. A saída pode ser competir ou cooperar. Como competição demais pode levar à extinção, a tendência é formar entidades cooperativas cada vez mais complexas: genes juntam-se em genomas, organismos unicelulares em seres multicelulares, animais formam sociedades e diferentes espécies coexistem num ecossistema. Esse fenômeno é chamado por Levin e seus colegas de Grande Transição Evolucionária e permite não apenas a sobrevivência mas o surgimento de adaptações a diferentes nichos ambientais. Apesar de importantes, as Grandes Transições não são obrigatórias — se fossem, seres unicelulares já não existiriam porque essa etapa já teria sido superada.

Octomites
Esta criatura imaginária concebida por Levin et. al. é chamada de Octomites – e como todo ser vivo complexo, é formado por uma cadeia irreversível de mutualismos e especialização entre células, tecidos, órgãos, etc.

Para serem complexas, tais transições devem ser irreversíveis: uma célula do seu braço (ou do corpo de um Octomites como o retratado acima), por exemplo, não pode pedir demissão e passar a viver por conta própria. Em níveis superiores, há animais que não vivem fora de seu ecossistema (como os pinguins, por exemplo) e em níveis inferiores, temos moléculas que não funcionam fora de um organismo (um DNA, por si só, não consegue se replicar). Note que a complexidade biológica é hierárquica, com um nível contido dentro de outro. Como dá pra perceber, as Grandes Transições levam a saltos de complexidade. Cada parte da superestrutura viva vai se tornando mais especializada, o que por sua vez pode levar a novas rodadas de mutações e evolução.

Mas não basta limitar os recursos disponíveis para forjar uma relação cooperativa entre organismos vivos. É preciso por freios às tendências competitivas. Parte disso ocorre pelo chamado alinhamento de interesses. Esse alinhamento é o que permite a convivência harmônica entre as células dentro de um indivíduo, por exemplo. Nesse caso, elas estão geneticamente alinhadas, já que todas compartilham o mesmo genoma. Mas há outras possibilidades: os participantes de uma relação mutualista não têm relação genética mas podem ter interesses alinhados (comida em troca de proteção, por exemplo). O alinhamento de interesses pode ocorrer por limitações impostas pelo ambiente (como uma fonte de energia restrita), que pode levar a relações de cooperação. Na prática, a complexidade é filha da cooperação e da limitação.

Segundo Levin e seus colegas, podemos esperar esse mesmo mecanismo de complexidade crescente em seres extraterrestres. As partes não seriam exatamente como as que nos formam: seres de outros mundos teriam algo diferente, porém similar no lugar do código genético, proteínas, células, tecidos, órgãos, organismos, etc. Em alguns casos, pode haver níveis de Grandes Transições (e hierarquias) superiores aos nossos — pense numa espécie de sociedade de sociedades, formada por colônias em diferentes planetas. Independente disso, só haverá saltos de complexidade quando houver alinhamentos de interesses capazes de eliminar os conflitos internos entres as partes que formarão um todo maior. Um meio de fazer essas partes cooperar entre si por um bem maior deve ser o efeito gargalo, que tornaria cada uma dessas partes aparentadas entre si, o que diminuiria os níveis de conflitos internos.

Da mesma forma que nós crescemos a partir de um único zigoto, todo organismo complexo precisa passar por um gargalo relacional. Isso quer dizer que toda nova geração deve ter uma origem única, capaz de frear as mutações dentro do organismo, dificultando a separação das partes.

Talvez a parte mais interessante do artigo de Levin et al. seja seu lado imaginativo. Embora o texto seja marcado pelo rigor argumentativo, não faz extrapolações individuais. Como isso pode dificultar a compreensão (ou mesmo ser apenas chato), os pesquisadores ilustraram alguns pontos com as imaginativas figuras de possíveis organismos extraterrestres de diversos níveis de complexidade. O objetivo dos cientistas de Oxford é bastante nobre — ajudar a reconhecer e classificar criaturas de outros mundos — mas ainda está longe de ter aplicação prática. Por um motivo muito simples: primeiro temos que descobrir se esses seres realmente existem em algum exoplaneta por aí…

Referência

rb2_large_gray25Levin SR, Scott TW, Cooper HS, West SA. Darwin’s aliens [Alienígenas de Darwin]. International Journal of Astrobiology https://doi.org/10.1017/S1473550417000362

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comment 2 comments
  • Paulo Werner

    Posso utilizar o texto em nossa revista? Com os créditos e referências. Aguardo.

    • Renato Pincelli

      Fique à vontade para reproduzir o texto, com os créditos. 🙂

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