Bigodes ariscos e neurônios em polvorosa

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Como os humanos, os ratos podem apresentar características do autismo, como a hipersensibilidade a estímulos. Essa semelhança permitiu aos pesquisadores entender o mecanismo por trás desse excesso de sensibilidade.

Pesquisa do MIT com roedores indica uma possível causa para a hipersensibilidade de pessoas com autismo

O que aconteceria se todos os sinais vermelhos de uma cidade deixasse de funcionar? Não é difícil prever o resultado: os carros começariam a trombar e o trânsito ficaria caótico e descontrolado. O cérebro também tem trânsito de estímulos que precisa ser coordenado por uma rede de semáforos, formada por neurônios que funcionam de forma complementar. Os chamados neurônios excitatórios são como o sinal verde, enquanto os inibitórios são os sinais vermelhos. Tudo anda bem se houver equilíbrio entre os dois sinais.

Semáforos não são apenas conjuntos de luzes que se acendem de qualquer jeito. Existe um sistema de controle por trás deles. No trânsito cerebral, uma autoridade de controle é a proteína Shank3. Quando essa proteína não está presente no cérebro, surgem características ligadas ao autismo inclusive a hipersensibilidade a estímulos sensoriais, como contato físico, luz e som.

Essa relação entre a falta de Shank3 e traços de autismo foi demonstrada em um modelo animal. Guoping Feng, Professor de Neurociência no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), descobriu que ratos em que o gene para Shank3 não se expressa apresentam muitos comportamentos autistas: eles evitam interações sociais e tendem a se comportar de modo compulsivo e repetitivo. Será que esses bichinhos também teriam o equivalente a hipersensibilidade autista?

Para entender melhor esse fenômenos, Feng realizou nova pesquisa, em colaboração com outro professor de Neurociência, Christopher Moore, da Brown University. Os trabalhos foram realizados com o cientista Qian Chen e o pós-doutorando Christopher Deister. Esse quarteto começou a observar algo que parece banal: os bigodinhos dos ratos de laboratório.

Nos roedores, os pelos do focinho são a principal fonte de estímulos sensoriais. Os bigodes são usados pelos ratinhos para se localizar e manter seu equilíbrio. Assim, para determinar a existência de hipersensibilidade nos bichinhos, Feng et. al. desenvolveram um método para medir a sensibilidade dos bigodes das cobaias. Os animais divididos em dois grupos, com e sem mutações no Shank3 foram treinados a demonstrar reações quando sentiam um toque em seus bigodes.

Os cientistas descobriram que os animais sem Shank3 reagiam a estímulos muito mais leves, que não eram notados pelos ratos comuns. Com a hipersensibilidade confirmada, Feng e sua equipe passaram à segunda etapa do estudo para entender a atividade neural por trás da descoberta.

Nessa fase da pesquisa, outra técnica foi utilizada: um imageamento baseado em níveis de cálcio, que serve para indicar a atividade em tipos específicos de células cerebrais. O que se observou foi meio contraintuitivo: os neurônios excitatórios ficavam em polvorosa quando um pelo do bigode era tocado num rato sem a proteína reguladora. O achado foi surpreendente porque, até então, acreditava-se que sempre que faltava Shank3 a atividade das sinapses cairia.

Acontece que, na falta de Shank3, quem se apaga são justamente os sinais vermelhos, os neurônios inibidores do sistema somatossensorial. Descontrolados, os neurônios excitatórios dão sinal verde a todo tipo de estímulos, gerando sobrecargas e, consequentemente, hipersensibilidade.

Para comprovar essa descoberta, Feng et. al. realizaram mais uma rodada de pesquisas. Nessa terceira etapa, foram criados ratos geneticamente modificados, cujos genes de Shank3 eram desligados apenas em neurônios inibidores. “Se você deletar o Shank3 apenas nos neurônios inibidores do córtex somatossensorial”, explica Feng, “e o resto do cérebro e do corpo continuam normais, você observa um fenômeno similar, em que se tem neurônios excitatórios hiperativos e sensibilidade sensorial amplificada nesses ratos”. Os resultados das pesquisas desenvolvidas por Feng e seus colaboradores foram publicados na Nature Neuroscience em março de 2020.

Para os pesquisadores, esses resultados podem levar ao reestabelecimento de uma atividade normal dos neurônios problemáticos. Isso pode ser feito através de medicamentos capazes de modular a sensibilidade dos neurônios inibidores. Drogas desse tipo já existem, mas apresentam efeitos sedativos quando aplicadas no cérebro como um todo. Com a descoberta da relação entre o gene Shank3 e a hipersensibilidade neural, abre-se a possibilidade de um tratamento mais específico, capaz de agir apenas nos neurônios inibidores.

Antes de chegar a esse ponto, porém, Feng e sua equipe pretendem entender como e quando surge esse problema durante o desenvolvimento do sistema nervoso. Ainda há, portanto, um longo caminho até o tratamento da sobrecarga sensorial que afeta os portadores de autismo. Mesmo assim, navegar no trânsito de uma cidade com semáforos desequilibrados pode ser mais fácil quando você sabe que os sinais vermelhos não funcionam.

[com informações do MIT News]

Referência

Chen, Q., Deister, C.A., Gao, X. et al. Dysfunction of cortical GABAergic neurons leads to sensory hyper-reactivity in a Shank3 mouse model of ASD [Disfunção de neurônios GABAérgicos leva a hiper-reatividade em um modelo de rato Shank3 de Transtorno de Espectro Autista]. Nat Neurosci 23, 520–532 (2020). https://doi.org/10.1038/s41593-020-0598-6

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