Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho
Você sabia que essa “troca” é um fenômeno fonológico muito comum na história do português?
Os linguistas deram até um nome pra ele e mostraram que todo esse estigma é, na verdade, um tipo de preconceito linguístico.
Existem casos em que crianças em fase de aquisição de sua língua trocam sons durante muito tempo sem que esta seja uma característica do sotaque das pessoas que estão à sua volta. Porém, em alguns dialetos, é muito comum que os falantes “troquem” o L pelo R e pronunciem naturalmente, palavras como “crima” no lugar de “clima”, “sór” no lugar de “sol” e por aí vai.
E mesmo que essa troca seja comum em alguns dialetos, muitas pessoas (inclusive alguns professores de língua portuguesa) afirmam que esse modo de falar é “errado” e deve ser corrigido a todo custo – quase como se esse modo de falar fosse um indício de distúrbios articulatórios, mas este não é o caso aqui, como veremos a seguir.
A fonologia é a área de estudos da Linguística que se interessa pelos fonemas, pelos sons (ou gestos no caso de línguas de sinais) presentes em uma língua.
Em português, por exemplo, temos, dentre vários outros, os fonemas L ou U (/l/ ou /w/) e R (/r/), que se diferenciam no sistema dessa língua. Desse modo, “calo” e “caro” são palavras diferentes, assim como /mal/ e /mar/, justamente porque, para nós, esses dois pares de fonemas são diferentes.
O que acontece (e bastante!) na língua portuguesa é que, em alguns dialetos, tanto o fonema L (mais tecnicamente /l/) no meio da sílaba quanto o fonema U (/w/, oriundo de /l/) no final da sílaba são produzidos como o fonema R (/r/).
Os linguistas chamam esse fenômeno de rotacismo.
Vejamos alguns exemplos:
A Linguística Histórica é a área que estuda a história das línguas: seu surgimento, suas mudanças e, em alguns casos, seu desaparecimento. Graças a essa área sabemos que o português é uma língua românica, ou seja, surgiu a partir do latim (mais especificamente, do latim popular). E desde esse surgimento, os falantes nativos de português já realizavam o rotacismo. São diversos os exemplos de palavras que, em latim, eram pronunciadas com L (/l/) no meio da sílaba e em português passaram a ser pronunciadas com R (/r/):
Tão disseminado foi o processo que, em “Os Lusíadas” de Luís de Camões (em domínio público), é possível encontrar várias palavras que hoje são, de modo geral, pronunciadas com L (/l/) escritas com R (/r/). Este é um grande indício de que, no século XVI, de fato se falava assim:
“E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa” (Canto I)
“Algüas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam” (Canto IX)
“O frecheiro que contra o Céu se atreve
A recebê-la vem, ledo e contente” (Canto IX)
Muitos anos depois disso, no século XX, diversos linguistas e filólogos, como Amadeu Amaral, estudaram o dialeto caipira do estado de São Paulo. Nesse dialeto, formas como “fror (flor)” (conservada do português mais antigo), “mér (mel)” e tantas outras que ouvimos/produzimos até hoje já eram muito comuns.
Portanto, é certo afirmar que o rotacismo faz parte da própria história da língua portuguesa.
Em qualquer sociedade, os grupos sociais se distinguem pela forma como falam, ou seja, têm uma norma linguística própria, que faz os falantes se identificarem uns com os outros e se sentirem pertencentes ao grupo (Faraco, 2002).
Na escola, o objetivo dos professores de português é ensinar a norma padrão, porque a padronização é importante (principalmente para um país de tamanho continental como o nosso). É preciso que os alunos saibam seus direitos e deveres como cidadãos e consigam se posicionar diante de injustiças sociais.
Mas o problema surge quando as pessoas afirmam que apenas a norma padrão deve ser utilizada e criticam qualquer coisa que não pertença a essa norma, como o rotacismo no dialeto caipira. Esse modo de pensar é, na verdade, preconceituoso, porque, como mostramos neste post, não tem fundamento no sistema próprio da língua.
Portanto, para combater esse e outros tipos de preconceito linguístico é preciso uma mudança de atitude: respeitar o conhecimento linguístico de todo e qualquer falante, valorizando o que ele já sabe, e reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolingüística & educação. Parábola, 2005.
ESPÍRITO SANTO, Júlia Maria França. Entre o campo e a cidade: rotacismo em São Miguel Arcanjo. Dissertação (Mestrado em em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 116. 2019.
FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 37-61.
Beatriz Sayuri Higuti e Viviane Carvalho são alunas do curso de graduação em Linguística da Unicamp
Como citar:
Higuti, Beatriz Sayuri e Carvalho, Viviane. (2024). Esse povo imprica com quarquér coisa… Revista Blogs Unicamp, Vol.10, N.1, Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/esse-povo-imprica-com-quarquer-coisa/. Acesso em: DD/MM/AAAA
Sobre a imagem destacada:
Foto: Colagem com bocas em movimento (Freepik – original) e elementos ilustrados.
Edição: clorofreela