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Febre do Oropouche: Um Alerta Científico para a Região Norte do Brasil

Imagem contém uma foto do Mosquito que transmite a Febre do Oropouche
Descubra as causas do surto da febre do Oropoche no norte do Brasil. Conheça o vírus, seus sintomas e como se dissemina.

Autoria

Mariene Amorim

Aumento de casos de febre do Oropouche na região Norte

O Brasil sofre com doenças causadas pelos arbovírus, que são vírus transmitidos por artrópodes, como os mosquitos. Caso exista alguma dúvida: de fato, estamos vivendo uma epidemia de Dengue, com incidência cerca de 2x maior que a observada no ano passado (Informe semanal de arboviroses). Outros arbovírus conhecidos são o Zika, Chikungunya e Febre Amarela. Mas hoje nós vamos falar sobre um vírus descoberto há mais de 60 anos, que causa doença em humanos, principalmente na região Amazônica. Dessa forma, esse é mais um vírus que causa uma doença que faz parte das chamadas “doenças tropicais negligenciadas”.

Recentemente, em 2023, casos de uma doença de caráter febril transmitida por artrópodes têm sido diagnosticados nos estados do Amazonas, Roraima, Rondônia e Acre. 

Trata-se da febre do Oropouche, já ouviu falar?

Se você é da região norte do Brasil, provavelmente sim.

Esse último surto, o qual ainda está acontecendo, já contabilizou mais de 2.000 casos. Até o dia 6 de março, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) contabilizou 1.821 casos no Amazonas, 172 em Rondônia, 51 no Acre e 12 em Roraima. A prefeitura de Manaus reportou 829 casos confirmados por critério laboratorial até o dia 2 de março de 2024 e o óbito de uma jovem, que apresentou infecção pelo vírus Oropouche (OROV) e que também estava com covid-19.

Aqui vale ressaltar: a emergência e reemergência de arboviroses não é trivial. Dessa forma, serve de alerta para as intervenções humanas sobre o meio ambiente. Assim como para o descuido, carência em diagnóstico e a negligência em se entender o real impacto de muitas doenças tropicais.

Entre o início de janeiro de 2024 e o dia 09 de abril de 2024 foram identificados 3.324 casos, divididos entre os estados da região Norte Amazonas (2.575),  Rondônia (592), Acre (110), Roraima (18), Pará (29). Um aumento de 400% em relação a 2023.

Oropouche, que vírus é esse?

Para entender a composição de um vírus, talvez seja importante entender que ele é divido em duas partes: o envelope e a partícula viral. No Oropouche o envelope é lipoproteico. Isto é, a parte de fora do vírus é uma camada composta por gordura (“lipo”) e proteínas (“proteico”).

Já a partícula viral,  seu material genético, é de RNA de fita simples, dividido em três fragmentos: um pequeno (S), um médio (M) e um mais longo (L). A partícula possui glicoproteínas em sua superfície, e uma enzima responsável pela replicação viral, uma RNA polimerase RNA dependente (RdRp). Ou seja, uma enzima capaz de fazer molécula de RNA usando como molde uma outra molécula de RNA (Figura 1).

Este vírus pertence à família Peribunyaviridae, junto com outros vírus causadores de doenças em seres humanos e animais. Foi descoberto em 1955, em um paciente febril na vila Vega de Oropouche em Trindade e Tobago. Desde então, já foram identificados surtos em países como Brasil, Peru, Colômbia, Guiana Francesa e Panama. Mais de 500 mil casos da doença foram reportados anteriormente. 

Figura 1. Febre do Oropouche: partícula viral e sintomas comuns. S = fragmento pequeno, do inglês small; M = fragmento médio, L = fragmento longo; RdRp = RNA polimerase RNA dependente.

É um número bem alto para uma doença infecciosa pouco conhecida, não acham? E não para por aí… 

Estudos de vigilância imunológica, que avaliam a presença de anticorpos no sangue das pessoas indicando que houve uma infecção prévia, apontam que muitos outros casos podem ter passado despercebidos, sem diagnóstico, ao longo dos anos. Por exemplo, algumas regiões na Amazônia indicam uma alta soroprevalência (proporção de pessoas em uma população que têm anticorpos específicos em seu sangue, em um determinado momento), com até 50% das pessoas tendo anticorpos para Oropouche, indicando uma resposta à exposição prévia ao agente infeccioso.

Características da Febre do Oropouche

A doença, conhecida como febre do Oropouche, tem um período de incubação de 4 a 8 dias. Ou seja, desde a transmissão até o aparecimento dos sintomas. Os sintomas mais comuns são febre em torno de 39॰C, dores musculares (mialgia), dores nas articulações (artralgia), calafrios, náuseas, vômito e tontura.

Além disso, algumas pessoas podem apresentar uma condição denominada fotofobia, que é quando os olhos se tornam muito sensíveis à luz, causando desconforto. Mas, também podem aparecer dor na região dos olhos, anorexia e fraqueza.

Os sintomas duram em torno de 7 dias, sendo que aproximadamente 60% das pessoas podem apresentar recidiva (reaparecimento dos sintomas após um período de remissão ou recuperação) cerca de duas semanas depois, os quais podem voltar mais severos. Isto é, os sintomas podem voltar a aparecer como consequência desta infecção, não se configurando em uma nova infecção.

Sintomas menos frequentes

Sintomas menos frequentes descritos na literatura incluem fenômenos hemorrágicos como sangramento gengival e aparecimento de manchas vermelhas na pele, período menstrual intenso ou prolongado (menorragia) e aborto espontâneo.

Por fim, o Oropouche é capaz de causar infecção no sistema nervoso central, como observado em surtos anteriores, com evidências também levantadas em estudos realizados em laboratório. Dessa forma, é importante ficar atento às dores de cabeça intensas. Este sintoma em particular torna-se relevante, uma vez que pode preceder o desenvolvimento de meningite asséptica ou viral. Assim, neste caso, os sintomas incluem rigidez no pescoço, tonturas, náuseas, vômitos, letargia, visão dupla (diplopia) e um movimento involuntário e repetitivo dos olhos (nistagmo), que podem persistir por até duas semanas.

Apesar desta lista longa de sintomas (e alguns bem graves), a febre do oropouche pode ser tratada, sem deixar sequelas. Destacamos, nesse sentido, a importância da realização do diagnóstico e acompanhamento médico.

Esse vírus tem grande potencial de disseminação?

Primeiramente, vamos observar os dois ciclos de transmissão do vírus, como mostrado na figura 2. O Oropouche circula em regiões de floresta (ciclo silvestre), podendo infectar animais silvestres como preguiças, primatas não-humanos, pequenos roedores e pássaros. Os vetores do vírus, ou seja, os responsáveis por transmitir a doença, são mosquitos, que ainda são pouco estudados pela ciência.

Além disso, o Oropouche também circula em áreas urbanas (ciclo urbano) em seres humanos, transmitido pela picada de pequenas moscas hematófagas, também conhecidas como maruim ou mosquito-pólvora. A espécie Culicoides paraensis, encontrada principalmente na região Norte do Brasil, é apontada como vetor principal (Figura 2). Os seres humanos, ao adentrar as florestas, podem contrair o vírus e levar para a área urbana, funcionando como uma “ponte” entre os dois ciclos (Figura 2).

Figura 2. Os ciclos silvestre e urbano do vírus Oropouche.

Figura 2. Culicoides paraensis, o maruim ou mosquito-pólvora. Créditos da imagem: Maria Luiza Felippe-Bauer, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Figura 3. Culicoides paraensis, o maruim ou mosquito-pólvora. Créditos da imagem: Maria Luiza Felippe-Bauer, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Sempre é relevante lembrar que as alterações severas no ambiente são parte do aumento de doenças como esta!

Como as intervenções humanas sobre as florestas e vida silvestre tem se intensificado ao longo dos anos, as chances de aparecerem novos surtos também aumentaram. De fato, estudos apontam para um aumento do número de casos de Oropouche em regiões impactadas por queimadas e outras atividades que promovem o desmatamento.

Agora temos um segundo ponto: os vetores. Além disso, sobre o C. paraensis já foi demonstrado que mosquitos mais comuns, como a espécie Culex quinquefasciatus (a famosa e insolente muriçoca), encontrada em diversas regiões do Brasil, nas Américas, entre outros continentes, também é um vetor potencial do vírus.

Ou seja, precisamos ficar atentos, não é mesmo?

Afinal, a diversidade de vetores pode favorecer a circulação do vírus além da região Amazônica. E casos de Oropouche já foram identificados em outros locais, como São Paulo, Bahia, Curitiba e mais recentemente no Rio de Janeiro, oriundos de viajantes que estiveram na região Norte. 

Os rearranjos dos genomas e a variabilidade genética

O universo dos vírus, assim como a sua história, é algo intrigante! E já sabemos o quanto é importante estudar a sua estrutura submicroscópica. Pesquisadores em Manaus conseguiram identificar uma particularidade no genoma do vírus Oropouche que está causando o surto atual.

O que seria?

Veja bem, depois da pandemia da covid-19, ficou claro que precisamos de uma vigilância genômica atrelada à vigilância epidemiológica, para acompanhar variações nos genomas virais que podem favorecer sua disseminação. E o que foi observado em amostras de Oropouche do surto atual foi uma variação genética em que houve um rearranjo dos segmentos virais, fenômeno conhecido como “rearranjo gênico”, do inglês reassortment

Esse fenômeno pode acontecer entre vírus de genoma segmentado, em que duas partículas da mesma espécie, porém com algumas diferenças genéticas, infectam a mesma célula. Nesses casos, ocorre um rearranjo dos segmentos no momento da produção de novos vírus. Isso resulta na geração de descendentes virais híbridos, com uma combinação única de características genéticas (Figura 4).

Figura 4. Rearranjo genético, ou reassortment. 

É importante saber que isso pode ter um impacto no surgimento de novos surtos.

Os vírus Influenza A, por exemplo, também são segmentados, podendo ocorrer rearranjo entre duas variantes, o que confere variabilidade genética. Esse evento é chave para o surgimento de novos vírus Influenza A causadores de grandes pandemias. 

E o que sabemos sobre o aumento da variabilidade genética no contexto dos vírus?

Sabemos que isso pode ocasionar alguns benefícios para o vírus, entre eles escape da resposta imunológica, ou até mesmo uma melhor adaptação a vetores, o que também é algo preocupante e precisa ser investigado!

Mas esse assunto vai ficar para o nosso próximo texto!

Sendo assim, vamos ficar alerta a emergência e reemergência das arboviroses, que são muitas. Você já conhecia a febre do Oropouche?

Para mais informações

Chiang, JO et al (2021) Neurological disease caused by Oropouche virus in northern Brazil: should it be included in the scope of clinical neurological diseases? Journal of NeuralVirology, v 27, p. 626–630.

Naveca, FG et al (2024) Emergence of a novel reassortant Oropouche virus drives persistent outbreaks in the Brazilian Amazon region from 2022 to 2024. Virological

Organização Pan-Americana da Saúde / Organização Mundial da Saúde. Atualização Epidemiológica: Oropouche na Região das Américas, 6 de março de 2024. Washington, D.C.: OPAS/OMS; 2024.

Romero-Alvarez, D & Escobar, LE (2017) Vegetation loss and the 2016 Oropouche fever outbreak in Peru Mem Inst Oswaldo Cruz, v112, n4, p 292-298. 

___ Oropouche fever, an emergent disease from the Americas Microbes and Infection, v20, n3, p135-146.

Secretaria Municipal de Saúde (Semsa Manaus) (2024) Boletim Arboviroses 2024. Semsa.Wesselmann, KM et al (2024) Emergence of Oropouche fever in Latin America: a narrative review, Lancet Infectious Disease, p1-14.

Bonora Junior, M (2023) O que é Dengue?, Blogs de Ciência da Unicamp, EMRC.

Sobre quem escreveu

Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

Como citar:  

Amorim, Mariene. (2024). Febre do Oropouche: Um Alerta Científico para a Região Norte do Brasil. Revista Blogs Unicamp, Vol. 10, N.1. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/revista/2024/05/02/febre-do-oropouche-um-alerta-cientifico-para-a-regiao-norte-do-brasil/. Acesso em: DD/MM/AAAA 

Sobre a imagem destacada:

Foto: Reprodução de figura integrante da tese: Fauna de Culicoides (Diptera: Ceratopogonidae) do estado de Rondônia, Brasil / Luis Paulo Costa de Carvalho. — Manaus: [s.n.], 2016.

Edição: clorofreela