Música, espaços de sociabilidade e sociologia

Em 1906, a American Sociological Association (ASA) realizou, em Rhode Island, o seu primeiro encontro anual. Mais de cem anos depois, a sociologia mudou muito o seu escopo, pois a disciplina acompanhou transformações políticas, sociodemográficas e estéticas. A ASA continua a promover esses eventos, no entanto, o tipo de programação mostra o nível de complexidade da produção sociológica contemporânea, mais extensa e heterogênea do que no início do século XX. Esta brevíssima introdução serve apenas para começar a desenvolver o tema desta postagem: a relação entre música, espaços de sociabilidade e sociologia. Por que escrevi sobre a ASA? A resposta é a fascinante performance do “All Star Jazz Quartet” da sociologia em 2009, quando Becker, Douglas Mitchell, Robert Faulkner e Don Bennett tocaram juntos em um dos momentos de confraternização dos congressistas.

Nesse ano, o congresso da ASA foi sediado em San Francisco, com o tema “The New Politics of Community”. A programação completa está disponível aqui, quem tiver interesse, poderá conferir as mesas com Howard Becker como debatedor: uma sobre a interseção entre cultura e economia e outra sobre os desafios da integração de análises quantitativas e qualitativas. Nas ciências sociais, o caso mais citado de pesquisador com atividade musical é Howard Becker. Como sociólogo que estudou as convenções do inconvencional, sucinta definição apresentada no perfil publicado por Adam Gopnik na revista The New Yorker, Becker é o principal exemplo de cientista social que alia a produção intelectual com sua atividade musical. Em seu site, ele divulga seus textos, suas fotos de juventude e suas músicas: http://www.howardsbecker.com/music.html

Com Faulkner, trompetista que apresentou suas habilidades no vídeo acima, Becker também publicou “Do You Know…?”: The Jazz Repertoire in Action em 2009, ano do congresso acima citado. Em relação ao livro, o título do primeiro capítulo (como músicos fazem música juntos) já indica quão pertinente é este trabalho, mais uma das muitas publicações de Faulkner e Becker sobre arte e relações sociais. E tem mais jazz no site com informações sobre as atividades de Faulkner: http://www.robertfaulkner.org/jazz.html.

No Brasil, além do grande conjunto de compositores e intérpretes que ingressaram na carreira acadêmica, tornando-se assim docentes nos departamentos de música, também podemos citar exemplos de especialistas em outras áreas de pesquisa que lapidaram a sua vocação artística. Nascidos, respectivamente, em 1948 e 1951, José Wisnik (do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculos) e Luiz Tatit (aposentado do Departamento de Linguística), ambos com carreira na FFLCH da USP, possuem grande reconhecimento como compositores, com atuação próxima a nomes consagrados como Ná Ozzetti, Palavra Cantada (a dupla formada por Sandra Peres e Paulo Tatit) e Guinga.

Além dessas duas trajetórias baseadas em um traço de vocação ambivalente (com as palavras e os sons), há outros modos de relação com a música. Essa expressão artística tem apreciação multiforme, sempre dependente e condicionada pelo gênero ou pelo estilo de apresentação. É maior a difusão dos conhecimentos musicais do que o de outras expressões artísticas (dança e artes plásticas, por exemplo). Classificamos como música um show naqueles festivais com milhares de pessoas, todas assistindo em pé em um autódromo, assim como o concerto de uma camerata. Pararei agora com a tergiversação para chegar ao ponto central. Expressões musicais promovem ajuntamentos de pessoas e, evidentemente, também fomentam clivagens a partir dos gostos e formam panoramas coletivos ou horizontes compartilhados. Memória, espaços de sociabilidade e trajetórias são temas interconectados de duas experiências recentes que aproximam música e sociologia.

O lançamento do primeiro CD do sociólogo Renato Ortiz, com 12 composições autorais, é, ao mesmo tempo, uma estreia no universo musical e um retrato memorialístico. “Paris, São Paulo” (2019), cujas faixas contam com pequenas introduções que contextualizam cada composição, imprime forte tom pessoal à experiência musical do autor. Cada música ilumina alguns momentos dos itinerários de Ortiz, passando por São Paulo, Paris e João Pessoa, misturando temporalidades, costurando referências intertextuais. De acordo com a minha avaliação, ao CD, quase todo gravado somente com voz e violão de modo bastante “intimista”, faltou uma maior aposta na inserção de instrumentos que, com novos arranjos, valorizariam as canções e na inclusão de vocais de apoio.

É possível ouvir este álbum aqui: https://open.spotify.com/album/2GdhvCQBGHZkk0pKXJcRnV.

No Rio de Janeiro, foi criado um conjunto musical cuja base de seu fandom está sediada no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP). Quem me avisou sobre a formação desse grupo de pagode foi Victor Piaia, assim como eu, um egresso da FGV. O perfil oficial do “Humilde Malícia” no Instagram o define como “o maior grupo de pagode das ciências sociais do Brasil (e do mundo)”. Esses meus “companheiros de geração” possuem um repertório (ou um horizonte de referências, uma teia de citações e de ressonâncias) bastante diferente das paisagens sonoras evocadas no álbum “Paris, São Paulo”. Quais clivagens explicam tal diferenciação?

View this post on Instagram

Pagodeiros e doutorandos nas horas vagas

A post shared by Humilde Malícia (@humildemalicia) on

Engajamento em determinadas práticas culturais, origem de classe, geração, gênero, trajetórias de ascensão social, tipo de socialização, escolaridade, inserção na paisagem sonora, identificação étnico-racial, nacionalidade, língua(s) falada(s) no domicílio familiar: quais fatores conformam tais diferenças dos “universos de referência” (extremamente diversos) em um mesmo período histórico? Mesmo entre contemporâneos, em quaisquer contextos, a experiência musical é tão heterogênea quanto as formas de experiência social. Pensar as expressões musicais e os espaços de sociabilidade, por um viés sociológico, significa entender em que medida a cultura (mais especificamente, o conjunto de bens culturais) serve como indicadores que nos classificam, nos aproximam e nos distanciam. Em texto sobre John Blacking, e sua “aversão […] às análises formais dos sons”, Elizabeth Travassos sumariza os binômios abordados por esse autor, figura fundamental da etnomusicologia:

A inter-relação entre música, cognição, afeto,
cultura e sociedade foi expressa por Blacking
numa retórica de binômios (processos e
produtos musicais, estruturas profundas e de
superfície, habilidade humana e sistema cultural). 

E, ainda segundo a autora, Blacking assim definia a “inteligência musical”:

A inteligência musical
agrega indivíduos em grupos, coordena ações,
integra os hemisférios do cérebro. Em apoio à
hipótese do valor evolucionário da música,
citava o ensaio de Alfred Schutz sobre a atividade
musical conjunta: evidência da capacidade
humana de entrar em fluxos intersubjetivos, a
música em conjunto supõe uma sintonização
mútua (mutual tuning-in) não-verbal cujo
entendimento seria de grande valor para a sociologia,
já que é quase um paradigma da relação
social.
Sobre Luã Leal 31 Artigos
Luã Leal é o responsável pelo blog Vértice Sociológico. Mestre e doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Ciências Sociais/CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV). Meus interesses de pesquisa estão relacionados à sociologia da cultura e ao pensamento social.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*