O erro fundamental: agora a culpa é do Carnaval.

ResearchBlogging.orgTrês anos atrás, um casal de amigos meus sofreu um acidente de carro gravíssimo exatamente no dia do casamento deles. Lembro que na época, escutei coisas do tipo: “nossa, que pena! Vai ver que foi um sinal para não se casarem!”, Outras pessoas disseram: “às vezes não estavam ainda preparados e foi uma forma de serem avisados disso”. O tempo passou, eles se casaram e infelizmente, algum tempo depois se divorciaram. Evidentemente, como é de se esperar, muita gente viu o divórcio como uma confirmação da profecia mostrada pelo acidente de carro.

Um tema recorrente que sempre menciono aqui no Cognando é a necessidade natural e definidora do ser humano de sempre querer explicar a causa das coisas. Por que sofreram um acidente logo no dia do casamento? Temos uma necessidade, quase visceral, de estabelecer correlações entre fatos aparentemente isolados, mesmo que não haja qualquer correlação aparente — a gente acaba “inventando” essas correlações. No caso acima, as pessoas precisavam estabelecer alguma correlação entre “acidente”, “casamento”, “mesmo dia” e “divórcio”.

Aparentemente, isso não tem problema. Digo aparentemente, pois algumas vezes essas correlações criadas (e são sempre criadas por algum motivo — mesmo que esse motivo seja simplesmente “entender” o que está acontecendo) mascaram as correlações reais e realmente explicativas do fenômeno. O divórcio do casal, por exemplo, está muito mais ligado ao fato de que eles não tinham uma estabilidade financeira para constituir família, do que com o acidente que sofreram anteriormente. Mas, uma vez que essa correlação entre o acidente e o divórcio é criada, qualquer outra explicação é vista como pouco plausível ou inválida.

Em psicologia social esse fenômeno é conhecido como “fundamental attribution error” ou (desculpem pela tradução ‘tabajara’) “erro atribucional fundamental”. Explicando de maneira bem simplista, esse conceito tem haver com a idéia de que, sistematicamente, e por motivos variados, atribuimos causa e estabalecemos correlações entre fatos que, na verdade, não existem.

Eu comecei a semana assistindo à um vídeo que, para mim, é um exemplo clássico de tal fenômeno. Um amigo me enviou por e-mail o vídeo da jornalista Rachel Sheherazade da emissora TV Tambaú e apresentadora do Tambaú Notícias, onde ela tenta fazer uma crítica às festividades do Carnaval no Brasil (veja o link para o vídeo no final dessa postagem). A jornalista “revela” algumas verdades com relação ao Carnaval e depois tece uma série de correlações entre “pobreza”, “falta de estrutura no sistema de saúde brasileiro”, “policiamento”, “qualidade das músicas que tocam no Carnaval” e obviamente o “carnaval” propriamente dito. Nenhuma dessas correlações fazem sentido. Nenhum dos fatos tem relação causal direta um com o outro — pelo menos que eu conheça. Apesar de os fatos isoladamente serem bem informativos e, em certa medida, verdadeiros, a relação estabelecida entre eles pela jornalista é fundamentalmente inócua.

Ainda assim, a grande maioria das pessoas que comentaram no blog pessoal da jornalista — bem como as pessoas que comentaram na publicação do vídeo — concordaram com o argumento tal como tecido pela jornalista. Principalmente — o que não é supresa para mim — as pessoas que não gostam muito das festividades do Carnaval no Brasil. Para mim, um indício da pervasividade do fenômeno ‘erro atribucional fundamental’.

Na minha opinião isso é problemático de duas maneiras. Primeiro, cognitivamente. Feito falei antes, estabelecer essas relações falaciosas causam o mascaramento das reais causas e correlações entre os fatos. Em termos atitudinais, não ter conhecimento — ou pelo menos uma idéia — das relações causais dos fenômenos que nos cercam nos leva à atitudes inadequadas e equivocadas. Segundo, socialmente. O jornalista — com o papel social de disseminador de “fatos” — deve tentar ser imparcial. Caso isso não seja possível (o que é perfeitamente plausível), ele deve tentar ilumiar e desvendar as reais correlações e causas dos fatos. Isso pode ser feito de várias maneiras, sendo um delas, a pesquisa e o estudo sistemático dos fatos, suas correlações e causas.

Muita gente concordou com a jornalista quando ela diz que o Brasil não tem um sistema de saúde que consegue suprir a demanda da população. Muita gente também concordou com a idéia de que o policiamento e a segurança no Brasil deixam muito a desejar. E certamente, muita gente concordou com ela quando ela disse que as músicas que caracterizam o Carnaval no Brasil são de qualidade degradadente. Mas o que tem isso haver com o Carnaval? Ele é comemorado, ela mesma diz, em várias partes do mundo, inclusive na Europa. Por que será que a Europa não apresenta os mesmos problemas sociais que ela aponta como pertencentes ao Brasil? Qual é a relação real entre as festividades de Carnaval e os problemas que ela levanta? Será que se ano que vem não tivermos Carnaval, o policiamento e a segurança pública irão aumentar durante o ano?

Eu acredito que a configuração que o Carnaval tem no Brasil (os “bêbados de plantão”, “a violência”, “o não acesso do pobre à roupinha colorida”) é fruto de outros fatores sociais peculiares ao Brasil. Basta ter acesso a qualquer estudo sociológico, ou até mesmo cognitivo, para ver que a real causa do nosso “atraso” não tem nada haver com o Carnaval (veja um exemplo aqui).

A responsabilidade da segurança nacional, do policiamento das ruas, da qualidade do sistema de saúde e, principalmente, da educação das pessoas é do Estado. Se alguma mudança nessas áreas é desejada, ela deve começar pelo Estado e deve ser cobrada do Estado. Mudanças são feitas a partir de atitudes. Atitudes adequadas requerem um conhecimento e compreensão adequada da situação. Não ter conhecimento das causas reais e diretas dos fatos nos leva a agir de maneira inadequada. Na minha opinião, a jornalista só contribuiu para o mascaramento das reais causas da situação social do Brasil —  o que, por sua vez, alimenta uma gama de atitudes inadequadas, inclusive dos que detém o poder no país. Em outras palavras, o Carnaval não tem nada haver com os problemas sociais que ela levantou.

O Carnaval, no final das contas, pode até ajudar. Quem sabe no próximo ano alguma escola de samba de São Paulo não presta uma homenagem ao eleitor brasileiro? Talvez assim, as pessoas entenderiam que o pobre que não tem dinheiro para comprar o abadá, o bêbado que se mete em confusão e o investimento de milhões de Reais do dinheiro público em segurança e cuidado médico para os foliões, estão muito mais diretamente relacionados com o fato de que 1.350.000 brasileiros deram uma cadeira ao Tiririca no Congresso Nacional do que com as festividades de Carnaval propriamente ditas. Quem sabe alguém não lê essa postagem para o Tiririca e dá essa idéia para ele?

Vídeo da jornalista – clique aqui

Referência:

Langdridge, D., & Butt, T. (2004). The fundamental attribution error: A phenomenological critique British Journal of Social Psychology, 43 (3), 357-369 DOI: 10.1348/0144666042037962

Esta entrada foi publicada em Psicologia Cognitiva. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

3 respostas para O erro fundamental: agora a culpa é do Carnaval.

  1. Gilson Reis disse:

    >Oi André! Achei interessante a sua postura em relação à crítica da jornalista. É bem incomum ir de encontro a opinião dela, ainda mais quando se tem a seu favor os bom olhos daqueles (muitos) que odeiam o Carnaval.Mas queria levantar algumas questões que acho que, se bem exploradas, nos levam a entender que os argumentos dela são de certa forma fundamentados.Mais importante é esclarecer o contexto. A crítica dela foi feita em tom editorial, logo, não tem relação ao noticiário (este sim, deve ter a obrigação de imparcialidade).O essencial da crítica que ela faz ao Carnaval é o investimento massivo do governo para manter escolas-de-samba, trios elétricos, etc., tudo em nome do Turismo.Como vi, você não está em nossas terras nesse momento, então é perfeitamente possível que você não saiba do grande corte no orçamento do governo federal. Tal corte teve, naturalmente, uma parcela para a educação. Uma das consequências (cito a que mais me afeta) é o cancelamento de diversas bolsas de estudo pelo CNPq. Junto a isso as alegações da FAPESP (Órgão estadual, que também se compromete a manter as escolas de samba do Estado) de falta de verba, frequente "desculpa" para não oferecer bolsas de níveis diversos à estudantes.Note que comentei apenas o que é relacionado ao ensino superior. Acho que não preciso dizer o que acontecerá com as camadas mais básicas do ensino.Quanto ao Carnaval, por aqui, meu amigo, o corte de verbas só atingiu os biquínis das "celebridades", cada vez mais "econômicos" (o que não de todo ruim).Pensar sobre essa questão essencialmente rebate a sua comparação entre o Carnaval brasileiro e o europeu.Podemos também arriscar dizer que as versões do Carnaval no primeiro mundo não têm lá a importância que o nosso tem aqui. Basta observar que o nosso carnaval vira manchete em jornais nacionais e internacionais.Poderia passar horas escrevendo sobre o papel deplorável dos veículos midiáticos na celebração da estupidez, tão intensa nesta época, mas este comentário já está grande demais.Queria apenas ressaltar que, ao defender a opinião daquele editorial, não concordo inteiramente com os seus pontos de vista. O Carnaval brasileiro é, na teoria, a celebração da alegria típica do nosso povo. A manifestação deve portanto ser agarrada e defendida, não abandonada e substituída por manifestações "importadas". O problema está no Carnaval brasileiro assim como ele é - na prática - uma atividade distorcida, imposta pelos veículos midiáticos. Um retrato caricato de nós mesmos.

  2. Andre L Souza disse:

    >Oi Gilson,Primeiramente, muito obrigado pela visita ao Cognando pelo comentário postado. Esse espaço é exatamente para isso! :-)Entendo perfeitamente o seu ponto de vista e a sua linha de argumentação. Foi muito bem colocada e, acredito, mostra as verdadeiras 'correlações' e 'mediações' entre as festividades do Carnaval e os problemas sociais que a jornalista levanta no editorial dela (a propósito, obrigado pela distinção).Note que no seu comentário, você fez exatamente o que eu esperaria que ela tivesse feito no editorial dela: falar do Brasil, dos seus problemas e sua relação com o Carnaval. Porém de uma maneira bem menos sensacionalista.Concordo plenamente que o investimento massivo do dinheiro público nas festividades de carnaval é absurda. E apesar de estar longe da terrinha brasileira, acompanho bem de perto os cortes orçamentários na educação superior. Acompanho tão diretamente quanto você. Tenho projetos de pesquisa no Brasil -- financiandos pelo CNPq e Fapemig -- que estão sofrendo cortes substanciais. Até mesmo a minha escolha pela Universidade do Texas está diretamente ligada à falta de financiamento à minha pesquisa de doutorado em terras brasileiras.No entanto, o governo que cortas as verbas da educação superior, que gasta nos "biquinis" minúsculos das celebridades, e que investe milhões nas escolas-de-samba é o mesmo governo colocado lá por nós.Talvez seja por isso que a relação entre o carnaval e os problemas sociais/culturais seja outra nas terras européias.Assim como você, eu concordo com a maior parte dos fatos que a Rachel apresenta, concordo até mesmo com a revolta e indignação dela. Acredito que não concordei -- e foi o ponto do minha postagem -- com a forma como ela relacionou esses fatos e indignações.O seu argumento aqui utilizou praticamente os mesmos fatos por ela utilizados, mas com uma organização relacional inteiramente mais coerente, informada e menos sensacionalista!Isso sim é uma opinião responsável! Obrigado, novamente, pelo comentário.

  3. Anonymous disse:

    >André, você tentou dar um bom fundamento às suas opiniões e o seu artigo é muito interessante. No entanto, concordo em gênero, número e grau com o Gilson Reis. Acho que a Rachel simplesmente deixou implícitas estas conexões entre o Carnaval e os absurdos problemas sociais do nosso país e o modo como são tratados. O editorial dela reflete o estado de espírito de uma cidadã indignada e, eu diria até, impaciente. Aliás, estado de espírito este compartilhado por cada vez mais cidadãos em todo Brasil. Ao analisar o que a Rachel disse, acho que fica claro que ela não quis em nenhum momento dizer que o Carnaval é responsável pelos nossos problemas sociais. E, por acaso, até o povo brasileiro tem consciência de que estes problemas provêm, por exemplo, da gestão precária do nosso Estado. Não subestimemos tanto a nossa população. Argumentação coerente realmente é algo muito importante em qualquer tipo de discussão. Mesmo assim, mantenhamos os pés no chão e não nos percamos em metadiscussões. O Brasil e a sua população têm problemas demasiadamente urgentes para isso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *