Alma suja, corpo sujo: a corporificação de atos imorais.

ResearchBlogging.orgEu acredito que todo mundo tem um amigo ou um conhecido com a “boca porca”. Aquele que perde o amigo, mas não perde o palavrão. Ou então tem um amigo ou conhecido com a “mente poluída”: aquele que só pensa em sacanagem. Se pararmos para pensar, várias expressões na nossa língua diretamente relacionam a noção de “sujeira” à algum conceito negativo ou imoral. É por isso que é comum dizer, por exemplo, que quando alguém faz alguma “sacanagem” com a gente, essa pessoa fez uma “sujeira” com a gente. Mas de onde vem isso?

Uma explicação possível tem haver com o que chamamos de “cognição corporificada” (Embodied Cognition). Segundo essa noção, os nossos conceitos e raciocínio são essencialmente fundamentados na nossa experiência corpórea (veja os trabalhos iniciais de George Lakoff and Mark Jonhson). Em outras palavras, mesmos as noções mais abstratas do nosso pensamento (questões de moralidade, por exemplo) estão ligadas ao nosso sistema sensório-motor (sistema que coordena nossos movimentos). Vários estudos em psicologia cognitiva tem mostrado que isso é verdade (veja essa postagem do Cognando de 2009).

Segundo a teoria da cognição corporificada, pensamentos e atitudes imorais estariam diretamente ligadas ao nosso sistema sensório-motor, de maneira que, mesmo de forma inconsciente, temos a tendência à querer “limpar” o corpo quando praticamos alguma atitude imoral. Será que a parte do corpo envolvida na atitude imoral é a parte do corpo que tentamos “limpar” primeiro? Essa pergunta foi investigada pelos pesquisadores Spike Lee e Norbert Schwarz da Universidade de Michigan nos Estados Unidos. O estudo foi simples, mas muito criativo e interessante.

Os pesquisadores disseram aos participantes que eles imaginassem que trabalhavam em uma firma de advocacia e que estavam competindo com um colega (Chris) por uma promoção na empresa. Além disso, eles tinham que imaginar que encontraram um documento importante que o Chris perdeu e estava procurando. Se eles entregassem o documento ao Chris, eles o ajudariam na promoção (e consequentemente atrapalhariam a própria promoção). Depois disso, os participantes foram dividos em quatro grupos. O primeiro grupo foi instruído a ligar para o Chris e dizer que não encontraram o documento. O segundo grupo foi instruído a ligar e dizer encontraram o documento. O terceiro grupo foi instruído à enviar um e-mail para o Chris dizendo que não encontraram o documento. Finalmente, o quarto grupo foi instruído a escrever um e-mail para o Chris e dizer que encontraram o documento.

Basicamente, os participantes foram divididos entre aqueles que cometeram uma atitude imoral (mentiram sobre o documento) e uma atitude moral (disseram que encontraram o documento). As atitudes (morais e imorais) foram cometidas ou com a boca (os participantes que ligaram) ou com as mãos (os participantes que escreveram o e-mail).

Após essa parte do experimento, todos os participantes receberam uma lista de produtos variados e tinham que escolher os que mais desejavam comprar naquele momento. Dentre os produtos havia um álcool para limpar as mãos e desinfetantes bocais. A hipótese é de que as pessoas que cometeram o ato imoral com a boca desejariam mais os desinfetantes bucais, ao passo que as pessoas que cometeram o  ato imoral com a mão desejariam mais o álcool para limpar as mãos. As pessoas que não cometeram atos imorais, não teriam esse mesmo padrão. E esse foi exatemente o padrão de resultado que os pesquisadores encontraram, sugerindo que a parte do corpo envolvida no ato imoral é a que sentimos necessidade de limpar. E isso mesmo inconscientemente.

Existem vários desdobramentos que esse estudo pode tomar. Seria interessante, por exemplo, investigar se o ato de lavar a parte do corpo envolvida no ato imoral influencia o sentimento de culpa que geralmente é associado à prática do ato imoral em si. Em outras palavras, será que escovar os dentes depois de falar uns bons palavrões aliviaria a sensação de “boca suja”???

Referência:
Lee, S., & Schwarz, N. (2010). Dirty Hands and Dirty Mouths: Embodiment of the Moral-Purity Metaphor Is Specific to the Motor Modality Involved in Moral Transgression Psychological Science, 21 (10), 1423-1425 DOI: 10.1177/0956797610382788

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