Quem quer rasgar dinheiro?!

Meu pai sempre foi motorista de ônibus. E é óbvio que, como admirador de carteirinha do meu pai, eu queria ser era motorista de ônibus também. E criança, como todos nós sabemos, começa a praticar a profissão dos sonhos bem cedo. Lá em casa tinha um beliche. Eu costumava sentar em uma das extremidades da cama de baixo e, com uma tampa de panela servindo como volante, eu fazia do beliche meu ônibus. Com o tempo a paradeza do beliche foi me enchendo a paciência, daí eu resolvi ficar “dirigindo” pela casa, ainda usando a tampa da panela como volante.

A verdade é que criança vive fazendo isso: utilizando objetos que têm uma certa função em outras funções. Tampa de panela vira volante, o socador de alho vira microfone (essa foi a fase em que eu queria ser cantor) e a caixa de sapato vira filmadora (a época que eu queria ser repórter da Globo). Agora imagina eu, hoje, utilizando uma tampa de panela como volante de ônibus. Tenho certeza que vou escutar comentários do tipo: “Vixe! Aquele ali é doido. Ele deve até rasgar dinheiro“.

A pergunta que eu sempre me faço é a seguinte: por que rasgar dinheiro é associado com loucura? A idéia é a mesma da tampa da panela. A tampa da panela tem uma função específica: obstruir a entrada da panela. Uma pessoa que supostamente sabe dessa função, não deve, em sã consciência, utilizar a tampa de panela em uma outra função (como volante de ônibus, por exemplo). Da mesma forma ocorre com o dinheiro. O dinheiro é uma “ferramenta” que tem uma função muito específica: representar o valor de produtos e serviços. Se alguém utiliza o dinheiro para alguma outra coisa (rasgar por exemplo, ou limpar a mesa da sala), essa ação é vista com estranheza, pois o dinheiro não está sendo utilizado em sua função.

Mas será que neuro-cognitivamente vemos mesmo o dinheiro como uma ferramenta? Apesar de “ser considerado uma ferramenta”, as propriedades físicas do dinheiro não estão ligadas à função que ele exerce, assim como acontece com a tampa da panela, ou o socador de alho. Não existe nada, absolutamente nada, na forma física do dinheiro que justifique seu uso como índice de valor. O que possibilita essa função do dinheiro é o consenso entre as pessoas de que ele é esse tipo de ferramenta.

Em neurosciência, já existe um corpo robusto de evidências mostrando que existe uma região cortical (do nosso cérebro) especialmente associada com a representação que fazemos de ferramentas e suas funções. Essa região (parte da região premotora do lobo frontal e parte da região posterior do lobo parietal) tem um padrão de ativação diferenciado quando observamos o uso funcional de ferramentas.

Para investigar se o dinheiro é representado funcionalmente de maneira semelhante às outras ferramentas do nosso dia-a-dia, um grupo de pesquisadores de vários centros de pesquisa na Dinamarca, Itália e Inglaterra fizeram o seguinte experimento: fotografaram o cérebro de um grupo de pessoas — utilizando a Ressonância Magnética Funcional (fMRI) — enquanto elas observavam vários usos do dinheiro, incluindo usos funcionalmente válidos (tipo: dobrar dinheiro e verificar o seu valor) e usos não-válidos (tipo: rasgar e cortar o dinheiro). O estudo foi publicado esse mês no Journal of Neuroscience, Psychology, and Economics.

Eles conseguiram mostrar que, a região cortical conhecida por sua ativação especial durante a observação do uso de ferramentas também estava envolvida quando os participantes viram o dinheiro sendo rasgado. E mais interessante ainda: quanto maior era valor monetário da nota sendo rasgada, maior e mais intensa era a ativação dessa região. Em outras palavras, o estudo sugere que neuro-cognitivamente falando, o dinheiro é sim representado como se fosse uma ferramenta, assim como é uma chave-de-fenda e uma tampa de panela.

Agora, vai saber que região da minha cabeça vai se ativar quando eu resolver sair andando pelas ruas de Austin com uma tampa de panela como se eu estivesse dirigindo um ônibus (e obviamente fazendo o barulho do motor do ônibus com a boca…).

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Referência:

Becchio, C., Skewes, J., Lund, T., Frith, U., Frith, C., & Roepstorff, A. (2011). How the brain responds to the destruction of money. Journal of Neuroscience, Psychology, and Economics, 4 (1), 1-10 DOI: 10.1037/a0022835

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