Muita gente sabe (ou deveria saber) que a Rússia já foi dona do Alasca. Embora não tenham conseguido fazer muita coisa por lá — já que era preciso atravessar a Rússia inteira antes de por os pés do lado de cá do Estreito de Bering —, os russos também têm a duvidosa honra de quase terem conseguido ficar com o Havaí.
No começo do século XIX, a situação do Havaí lembrava muito a da Itália: cada ilha era praticamente um feudo. Como ocorreria com a Itália mais tarde, o Havaí foi unificado em 1810 e transformado em Reino por Kamehameha I, o Grande (1758-1819). Aí é que está o erro dos russos: eles chegaram um pouco atrasados.
Havaí, ou melhor, Гавайи
Em 1815, um ambicioso médico alemão, Georg Anton Schäffer (1779-1836), a.k.a. Yegor Nikolayevich, trabalhando como agente da gloriosa Companhia Russo-Americana chegou à Ilha Kaua’i. Ele deveria fazer apenas umas simples trocas comerciais, mas acabou se envolvendo em uma intriga golpista. Schäffer não tardou a saber do status recém-unificado do Havaí. Também soube que o chefe da ilha de Kaua’i, Kaumuali’i (1778-1824) estava bastante descontente com sua recente perda de poder. Com ajuda de Schäffer, Kaumuali’i assinou um “tratado” que transformaria Kaua’i em protetorado russo.
Com o tratado assinado, a dupla russo-havaiana tratou logo de duas coisas: construir um forte russo e ameaçar o resto do Havaí. A primeira parte foi fácil. Nikolayevich construiu rapidamente o Forte Elizabeth, em homenagem à então czarina russa, Elizabeth Alexeievna. Também não foi difícil construir um Forte Alexander, em homenagem ao czar. Difícil mesmo foi convencer Kamehameha I e sua corte de que a Rússia estava pronta para invadir o Havaí para defender o recém-formado protetorado de Kaua’i.
Em certo sentido, o Havaí foi salvo pela própria grandeza (e pela burocracia) da Rússia. Apesar de feito com base nos interesses da Companhia oficial russa, o tratado não era válido. O nome de czar Alexander I (1777-1825) era citado, mas Nikolayevich não era um procurador oficial do czar. E nem mesmo era cidadão russo! Mesmo que fosse, o czar levaria meses até ficar sabendo de sua nova “aquisição” no meio do Pacífico e outro tanto se passaria até uma resposta voltar.
Talvez por isso, Schäffer ainda conseguiria ficar enrolando por mais dois anos no Havaí, até que os nativos descobriram que ele não tinha apoio nenhum (muito menos reforço) da Marinha russa e expulsaram-no de seu próprio forte em maio de 1817.
Ironicamente, a essa altura, notícias sobre os feitos do “espetacular Doutor Schäffer” finalmente chagavam a São Petersburgo apenas para serem desprezados. A Companhia Russo-Americana não estava a fim de arcar com os custos de uma guerra de conquista no distante Oceano Pacífico. Ainda mais depois de saber que Schäffer sozinho havia desperdiçado uns 200 mil rublos em seu sonho havaiano enquanto os norte-americanos começavam a lucrar vendendo mantimentos havaianos para colonos russos no Alasca (Malditos capitalistas ianques!). Alarmados, e com razão, os russos voltaram sua atenção para o Alasca. Mas a história provaria que sem o comércio com o Havaí o Alasca seria sempre deficitário.
Curiosamente, o Dr. Schäffer terminaria a vida em outro reino exótico: ele morreria no Rio de Janeiro, enquanto trabalhava como agente de imigração para o Brasil junto ao(s) governo(s) da Alemanha.
E se…
Apesar dessa trapalhada diplomática (que dificilmente ocorreria se os russos já tivessem acesso ao telégrafo), seria interessante ver de que forma o Havaí seria administrado pelos russos.
Por boa parte do século XIX, é provável que fosse apenas um entreposto comercial, com talvez uma pequena base da Marinha. Não muito diferente do próprio Alasca. Eventualmente, poderia ser um local de degredo (aparentemente pior por ser mais longe, mas certamente melhor que a Sibéria para os condenados).
Seria ainda mais interessante se a família real russa não só conseguisse fugir em 1917, mas se refugiasse no Havaí. Nesse caso, mesmo com russos, o Havaí talvez tivesse apoio da América e se tornaria uma espécie de Taiwan soviético: uma província rebelde e distante, mas com forte influência americana.
A saideira de 2012 | hypercubic
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