Patentes Patéticas (nº. 110)

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Um barril rola no rio. Um avião faz um barulhão. Parecem frases de cartilhas de alfabetização, mas talvez descrevam coisas que podem ter inspirado Alessandro Dandini a inventar seu Spherical Rolling Hull Marine Vessel [Navio Marítimo de Casco Esférico Rolante]:

Um navio marítimo com um caso esférico rolante dotado de um eixo rotavelmente montado e disposto horizontalmente através dos pólos da esfera. Um esqueleto armado é rigidamente fixado ao eixo no interior da esfera e carrega um aparato de propulsão e cargas. O aparato de propulsão opera para girar as rodas que sustentam o esqueleto armado e correm sobre um par de trilhos anulares na superfície interior da esfera, de modo a rotacionar a esfera. Esse efeito rotacional propele o barco por meio de barbatanas ou nadadeiras instaladas na superfície exterior da esfera. Aeropropulsores, elevadores e lemes para auxiliar a navegação são montados no exterior de um par de cabines alongadas que são destacavelmente conectadas aos terminais do eixo nas laterais do casco. Passageiros e carga são levados nessas cabines, que também podem servir como embarcações marinhas em condições de navegar quando destacadas da nave-mãe. Para acelerar o manuseio de cargas, elevadores são colocados no trem de pouso [undercarriage] de cada cabine.

Sim, podemos resumir isso como um enorme barril que rola num rio. Exceto que Dandini projetou o barrilzão rolante como embarcação marítima e não fluvial. Alessandro O. Dandini é (ou foi) um ítalo-americano de Reno, Nevada e conseguiu uma patente para seu navio-barril em  20 de janeiro de 1976, sob nº. 3.933.115 [pdf]. O inventor descreve, um tanto obviamente, que há três tipos de navios marítimos — comerciais, navais e recreacionais:

Embarcações comerciais e navais são usualmente grandes por necessidade e quando movem-se são retardados pelas forças de arrasto que consomem energia. Quanto maior a profundidade do calado [a parte do navio abaixo do nível da água], maior essa resistência se torna, o que limita a velocidade prática da embarcação. Barcos recreativos, porém, normalmente têm um baixo calado, resultando na possibilidade de altas velocidades. Entretanto, eles geralmente não têm a capacidade de carregar grandes cargas ou passageiros e isso limita sua utilização prática. […] A presente invenção disponibiliza uma embarcação marinha de casco esférico aperfeiçoada para transporte ágil de cargas e passageiros, e é particularmente adaptada para carga e descarga rápida.

O princípio apontado por Dandini, portanto, é bastante simples: “obter altas velocidades ao viajar sobre em vez de na água” (grifos nossos). Para conseguir isso, ele propõe uma grande esfera de aço que role sobre a superfície do mar. Como tal esfera teria um calado desprezível, seria, ao menos em tese, capaz de alcançar grandes velocidades. Aliás, quando fala em aperfeiçoamento, Dandini estava apenas melhorando uma ideia parecida que ele mesmo já tivera quatro décadas antes e que havia patenteado (vide a patente nº. 1.905.345, de 25/04/1933).

A diferença mais notável entre as duas patentes é justamente a tal cabine externa, que se parece com um (hidro)avião sem asas mesmo. Na patente dos anos 1930, há apenas uma cabine, que se liga ao navio-esfera por uma grande haste arqueada que termina nas extremidades do eixo de rotação. No entanto, essa cabine única não parece ser destacável. Nas décadas seguintes, Dandini deve ter percebido que essa cabine externa poderia muito bem ser destacável e funcionar como nave salva-vida. Isso seria ainda mais exequível ser fossem duas cabines, uma em cada pólo do navio-bola. De quebra, haveria um aumento da eficiência logística, já que duas cabines podem transportar mais passageiros e/ou cargas do que uma só. As dimensões não são especificadas em nenhuma das patentes, mas devem ser bem grandes. Segundo o inventor, seu navio poderia transportar automóveis, tanques e até pequenas aeronaves.

Em termos de meios de propulsão não houve grande aperfeiçoamento. Ambas as patentes descrevem o uso de um motor a diesel que atua como gerador elétrico. Alimentados pela energia do gerador armazenada em baterias, os motores elétricos movem as rodas pelo trilhos anulares do interior da esfera. É um sistema realmente visionário, considerando que ainda hoje navios híbridos são raros. No entanto, não fica claro, por exemplo, como os gases da queima do diesel seriam lançados para fora do casco esférico. Dandini também parece desconsiderar que tanto os tanques de combustível quanto as baterias ocupariam grande parte do espaço de dentro da esfera motora.

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É tipo uma roda de rato, só que em escala monumental

Quanto à dirigibilidade, as hélices e lemes das cabines seriam responsáveis por manter o rumo do navio, mesmo sem qualquer contato com a água. Para virar a embarcação, por exemplo, seria necessário ligar ou acelerar mais as hélices de um lado. As hélices das cabines — uma é dianteira e aérea enquanto outra é traseira e aquática — são movidas por motores próprios e independentes do sistema motriz da esfera. Possivelmente esses motores são de combustão interna, talvez a diesel mesmo, embora isso não seja esclarecido por Dandini em sua patente. Caso a esfera sofra alguma avaria ou corra o risco de afundar, as cabines laterais podem ser soltas e atuar como barcos salva-vidas.

O navio esférico de Dandini não é muito diferente dos futurísticos meios de transporte monumentais e quase fantásticos que vez por outra apareciam até meados do século XX nas páginas de revistas como a Modern Mechanix. Entretanto, por mais engenhoso que possa parecer, o navio-barril é essencialmente imprático.  Ainda que, graças ao seu baixo calado, possa entrar em qualquer tipo de porto carregando grandes cargas ou um bom número de passageiros, uma esfera de navegação seria muito mais difícil de conduzir do que um navio cargueiro comum.

Fazer essa coisa rolar sobre a água na direção e velocidade corretas é mais complexo do que parece. Pra começar, seria necessário coordenar os esforços de três sistemas motores independentes (o da esfera e o das cabines). Se um desses motores falhar, a coisa toda se torna praticamente inviável. Especialmente se for o motor de uma das cabines, o que só permitiria manobras para um dos lados. Para fazer curvas, seria mais simples ter dois hemisférios em vez de um casco esférico único. Assim, bastaria acelerar um dos lado da esfera para fazer mudanças de rota. No entanto, um sistema assim tornaria a construção ainda mais complicada do que já deve ser.

Quanto ao transporte de cargas, as duas cabines poderiam até ser relativamente ágeis para carga e descarga. Não seria muito difícil, por exemplo, içar uma delas e colocá-la, como um contêiner, sobre um caminhão ou um trem de dimensões adequadas. Já a esfera motora não seria tão útil quanto parece. Haveria muito espaço, mas seria complicado colocar e tirar grandes cargas da bola de aço flutuante. Em tese, ela poderia servir facilmente ao transporte de grãos, líquidos ou gases, mas isso exigiria adaptações que talvez a tornassem tecnicamente inútil.

Na prática, o navio-barril de Dandini não é muito diferente de um brinquedo e sua concepção é mais ingênua que engenhosa. Um aerobarco ou hidrofólio consegue resolver o problema do arrasto de forma muito mais simples — colocando o navio sobre esquis. Como esses esquis têm uma área muito menor do que a parte da esfera em contato com a água, fica claro quem consegue um arrasto desprezível e velocidades maiores. Outro tipo de aerobarco, os Hovercrafts são melhores ainda, já que evitam completamente o atrito do contato direto com a água e deslocam-se sobre um colchão de ar.

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  • Uma jornada inesperada | hypercubic

    […] dia, a postagem mais recente era uma patente patética — mais precisamente, esta aqui. O Belda caiu de amores pelo post e eu expliquei que era parte de uma série e que já tinha mais […]

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