O Mistério do Homem de Somerton [parte 1: Circunstâncias]

SomertonMan2
Mr. Somerton

Um homem é encontrado morto numa praia, mas ninguém aparece para reconhecer o corpo. Embora seja comum que pessoas desapareçam, esse caso é o oposto: uma pessoa é encontrada, mas ninguém deu por falta dela. Esse é o enigma básico do Homem de Somerton, um dos maiores mistérios da Austrália (e talvez do mundo), que vamos apresentar numa série de três posts.

Quem era o Homem de Somerton? De onde ele veio? Como ele morreu? Muitos já tentaram responder essas perguntas ao longo das últimas décadas, com pouco sucesso.

Tudo começou em 1º. de Dezembro de 1948. Por volta das seis da manhã daquela quarta-feira, dois cavaleiros foram os primeiros a encontrar o cadáver deitado na areia da Praia de Somerton, em Adelaide, Austrália. O homem estava com a cabeça apoiada no muro de arrimo próximo de uma escadaria e positivamente morto. Na noite anterior, segundo algumas testemunhas, um homem, talvez um bêbado, estava dormindo naquele mesmo ponto (marcado com um X na foto a seguir).

SomertonManDeathSite

A autópsia revelou um homem com 40 e poucos anos, fisicamente em forma e com um coração saudável. Media 1,80m, tinha olhos castanho-claros, cabelo ruivo claro, ombros largos, cintura estreita, mãos sem sinais de trabalho manual; o primeiro e o quinto dedos dos pés eram encavalados, traço comum em usuários de calçados com ponta estreita, como dançarinos ou fazendeiros. Estava barbeado e não apresentava marcas de nascença ou cicatrizes. Vestia camisa branca, gravata vermelha e azul, calça marrom, meias e sapatos e, apesar do clima quente da época, um suéter tricotado marrom e um casaco cinza e marrom. Nenhuma peça de roupa tinha etiqueta. Não portava nenhum documento. No bolso de sua calça, havia uma passagem de ônibus que ele comprara mais cedo naquele dia, o que indicava que ele não deveria ter chegado à praia antes daquela tarde.

O corpo não tinha sinais de violência — por fora. Por dentro, segundo o laudo da autópsia, a coisa estava bem feia:

O coração estava em seu tamanho normal, e normal em todos os demais aspectos (…) pequenos vasos incomuns de serem encontrados no cérebro eram facilmente discerníveis com congestão. A faringe estava congestionada, e o esôfago coberto por branqueamento das camadas superficiais da mucosa, com uma trilha medial de ulceração. O estômago estava profundamente congestionado (…) havia congestão também na 2ª metade do duodeno. Havia sangue misturado ao alimento no estômago. Ambos os rins estavam congestionados, e o fígado continha grande excesso de sangue em seus vasos (…) o baço apresentava inchaço expressivo (…) de aproximadamente 3 vezes seu tamanho normal (…) exame microscópico revelou a destruição de lóbulos do fígado (…) hemorragia gástrica aguda, congestão extensiva do fígado e baço, e congestão do cérebro.

Exames indicaram que a última refeição do homem teria sido um pastel assado consumido umas três ou quatro horas antes do falecimento. Por estimativa da polícia, a morte teria ocorrido às duas da manhã de 01/12/1948. Havia suspeita de envenenamento mas exames toxicológicos não revelaram a presença de qualquer substância estranha em seu organismo. A morte foi considerada não-natural, com hipótese inicial de suicídio, o que não viria a se confirmar.

Como era de se esperar, o caso atraiu imediata atenção da mídia e uma intensa cobertura. O jornal adelaideano The Advertiser soltou uma notinha no mesmo dia da descoberta do corpo, identificando-o como E. C. Johnson, de uns 45 anos. Dois dias depois, Johnson, vivinho da silva, apareceu numa delegacia para se identificar. No começo de janeiro, duas pessoas o identificaram como sendo o ex-lenhador Robert Walsh, 63 anos. Embora o corpo tivesse a aparência de um lenhador aposentado, Walsh era velho demais (ou o corpo era jovem demais para ser Walsh) e foi descartado.

SomertonManSuitcase
Apresentação da mala descoberta na estação de Adelaide

A mala marrom

Em 14 de janeiro de 1949, a polícia australiana encontrou uma mala marrom esquecida num guarda-volumes da estação ferroviária de Adelaide. Embora também estivesse sem etiqueta, foi determinado que a mala havia sido guardada por volta das 11 da manhã de 30 de novembro de 1948. Em seu interior foram encontrados os seguintes objetos: um roupão vermelho listrado, um par de pantufas vermelhas, oito cuecas, pijamas e uma calça marrom-clara, com areia nas barras; uma chave de fenda, do tipo usada por eletricistas; um pincel de estêncil; uma faca improvisada, um par de tesouras e instrumentos de barbear.

Havia ainda uma embalagem de linha de costura laranja, similar à usada para remendar um dos bolsos da calça que o morto usava. Só três peças traziam alguma identificação: uma gravata gravada com “T. Keane”, “Keane” em um saco de lavanderia e “Kean” (sic) em uma camiseta. Tais pistas não deram em nada. Havia um marinheiro local, Tom Keane, que estava desaparecido. Seus colegas não reconheceram o cadáver. Detalhes da costura indicavam que a roupa seria proveniente dos EUA, mas não foi possível determinar se o figurino havia sido importado ou fora comprado na América.

Registros ferroviários foram verificados após a descoberta da mala. O homem havia comprado um bilhete de trem para Henley Beach, que partiria às 10h50. Tal bilhete não foi utilizado; o que foi encontrado com ele era uma passagem de ônibus. Com isso, foi determinado que o homem desconhecido chegou a Adelaide na madrugada do dia 30/11, vindo num trem noturno que teria partido de Melbourne, Sydney ou Port Augusta.

Os chuveiros da estação de trem estavam fechados para manutenção em 30 de novembro, forçando o homem a tomar banho e se barbear num banho público situado nas imediações da estação — o percurso de ida e volta à estação durava uma meia hora. Considerando o tempo do banho e do barbear, isso poderia explicar porque o homem perdeu o trem e resolveu tomar um ônibus. Não está claro se a mala foi deixada no guarda-volumes antes ou depois desse banho.

Nos primeiros meses de 1949, outras falsas identificações ocorreram: o corpo seria de um homem desaparecido vindo de Darwin; um ajudante de estábulo também desaparecido; um funcionário de um navio a vapor e um sueco… Mas ninguém foi capaz de reconhecê-lo e nenhuma destas identidades foi confirmada. Em 14 de junho de 1949, o inquérito foi encerrado, concluindo que tanto a causa mortis quanto a identidade do homem eram desconhecidas. Com isso, o corpo foi enterrado num cemitério de Adelaide, sob uma lápide onde se lê “Aqui jaz o Homem Desconhecido, descoberto na Praia Somerton em 1º. de Dezembro de 1948”. Um busto de gesso havia sido feito no começo de 1949 e foi preservado para possíveis investigações. Em março de 1958, o caso foi reaberto apenas para ser arquivado pouco depois por falta de novas evidências.

De tempos em tempos, o caso é aberto — e fechado por falta de provas conclusivas. Nos últimos anos, investigadores passaram a aplicar as mais recentes técnicas das ciências forenses ao caso, na esperança de encontrar respostas. Um desses investigadores recentes é Derek Abbott um professor de Engenharia Elétrica e Eletrônica da Universidade de Adelaide, na Austrália. Abbott dedica-se ao Mistério de Somerton desde 2009. Para Abbott, o maior motivador na identificação do Homem de Somerton é uma espécie de princípio de moral humana: mesmo quando uma pessoa perde tudo, incluside a vida, ela ainda deveria manter seu nome.

Ainda assim, o caso está longe de ser esclarecido…

[Parte 2: Dois códigos]

[Parte 3: Química, Fotografias e outras evidências]

chevron_left
chevron_right

Join the conversation

comment 0 comments

Leave a comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comment
Name
Email
Website